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A caminho do inferno ao volante de um SUV

Reza o aforismo que o caminho para o inferno está pavimentado com boas intenções – nada o ilustra melhor do que as opções que fazemos quando queremos deslocar-nos.

No Portugal de há 40 anos, a sigla SUV evocaria a organização Soldados Unidos Vencerão, uma iniciativa do Partido Revolucionário do Proletariado que pretendia mobilizar os soldados contra a deriva burguesa e as maquinações reacionárias que estavam a fazer perder o ímpeto à Revolução de Abril. O manifesto do SUV proclamava que este lutava “com todos os trabalhadores pela preparação de condições que permitam a destruição do Exército burguês e a criação do braço armado do poder dos trabalhadores: o Exército Popular Revolucionário”. Passados 40 anos, dir-se-ia que a revolução falhou, pois soldados e trabalhadores estão de tal modo aburguesados que o SUV que está no foco das suas aspirações é agora o Sports Utility Vehicle.

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O entretanto extinto Hummer H2: um SUV “a sério”, com 3 toneladas de peso e até 393 HP de potência

O SUV nasceu nos EUA na década de 80 como uma versão ligeiramente mais civilizada e menos desconfortável do jipe clássico, mas sofreu mutações que o tornaram numa das maiores fatias do mercado automóvel mundial. Nos EUA, a percentagem de SUVs no total de veículos vendidos passou de 30% em 2000, para 38% em 2014, ano em que destronou o sedan (ou berlina – o clássico “três volumes”) como o tipo de veículo mais vendido.

Mas é a Austrália o país em que o SUV mais ordena: em fevereiro de 2015, representavam 44% das vendas de automóveis, culminando uma tendência de crescimento que se mantém desde 2006 e tem simetria numa queda continuada das vendas de automóveis “convencionais”. Até os chineses, que até há pouco tinham as aspirações de transporte particular circunscritas à bicicleta, estão embeiçados pelos SUVs, que passaram de 3% do mercado automóvel chinês, em 2003, para 21% em 2014.

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O que começara por ser um mercado de nicho é hoje um dos mais apetecidos e disputados, com os grandes fabricantes a proporem uma miríade de modelos e nem as pequenas marcas de ultra-luxo, cujos produtos nunca tinham passado por veículos todo-o-terreno, quiseram ficar fora da corrida ao ouro, pelo que em breve estarão disponíveis no mercado SUVs da Maserati, Lamborghini e Bentley.

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Lamborghini Urus: a partir de 2016 poderá brincar na lama por uma quantia entre 150.000 e 200.000 euros

Em Portugal, país de rendimentos mais modestos, combustíveis mais caros, menor prevalência do espírito cowboy e menos neve e montanhas do que os EUA (e menos desertos do que a Austrália), os tops de vendas continuam a ser dominados por pequenos utilitários – em 2014, os veículos mais vendidos foram o Renault Clio, o Volkswagen Golf e o Peugeot 208. e só um SUV, o Nissan Qashqai, conseguiu insinuar-se no top 10. Ainda assim, a presença e prestígio dos SUVs nas nossas paragens não tem parado de crescer.

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Nissan Qashqai, o SUV mais vendido em Portugal

Terá este fenómeno resultado da mudança do perfil dos compradores de veículos, tendo a fração de proprietários agrícolas ou florestais que necessita de um veículo com aptidões todo-o-terreno para os seus afazeres, aumentado? Claro que não, o comprador de veículos está mais urbano e pacato do que nunca, e o próprio conceito de SUV foi sendo progressivamente suavizado: as linhas angulosas típicas dos jipes deram lugar a curvas harmoniosas e os interiores despojados e aptos para uma elevada capacidade de carga têm agora todos os luxos e confortos dos automóveis urbanos.

Na verdade, boa parte dos SUVs – e em particular os que agora são designados por crossovers – até perderam a tração às quatro rodas, distinguindo-se dos restantes automóveis urbanos apenas pela maior distância ao solo, pelas jantes de grande diâmetro e pelo aspeto robusto e “desportivo”. Mas até essa distinção está cada vez mais diluída, já que, arrastados pela popularidade dos SUVs, alguns pequenos e anódinos utilitários começaram a parecer-se com arremedos de SUVs, mesmo que as suas capacidades todo-o-terreno sejam equiparáveis às de um porco sobre o gelo (sobretudo se conduzidos por quem não tenha experiência sobre pavimentos irregulares).

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Dacia Duster, 1160-1280 Kg, 86-135 HP: um caniche com pele de lobo

De qualquer modo, as aptidões todo-o-terreno desta fauna raramente serão postas à prova, já que a esmagadora maioria dos proprietários de SUVs (neste texto, por facilidade de linguagem, o termo SUV é usado, salvo indicação em contrário, na aceção mais abrangente, englobando SUVs, mini-SUVs, SUVs compactos e crossovers) nunca chegará a conduzi-los fora do alcatrão, e a maior parte dos seus trajetos terão como destino a escola dos miúdos, o ginásio, o hipermercado e o centro comercial.

Os SUVs são apreciados pelos homens pela mensagem de liberdade e inconformismo que emitem (“a minha profissão pode ser contabilista e posso parecer inofensivo de fato e gravata, mas quando saio da rotina sou um animal feroz”); basta ver os nomes sugestivos de inconformismo, evasão ou exotismo com que os modelos de SUV são batizados: Renegade, Wrangler (sinónimo de cowboy nos EUA), Cherokee, Touareg, Yukon, Discovery, Expedition, Escape.

Já as mulheres gostam deles sobretudo porque a posição de condução elevada e a robustez e dimensão ampla proporcionam uma sensação de segurança que é muito bem-vinda numa arena frequentada por condutores impacientes e agressivos e a transbordar de testosterona.

E se os SUVs grandes que dominam o mercado americano podem parecer um mausoléu ou uma mastaba (o que apela a quem privilegia a segurança e a respeitabilidade, mas afasta outros clientes), os SUVs mais ligeiros do mercado europeu tendem a exibir um design jovial e irreverente, com algo de brinquedo em tamanho grande. Para o casal a entrar na meia-idade e com miúdos é um achado: combina o desafogo e o aspeto robusto e seguro de uma station wagon com o look traquinas do carro que gostariam de ter tido aos 18 anos.

No caso de casais com filhos, é provável que a opção por um SUV de ar espevitado receba mais um voto entusiástico: o dos miúdos. Os estudos de mercado mostram que eles são cada vez mais influentes nas decisões de compras da família: não nas gamas de preços, mas na escolha de marcas, modelos e cores. Começou pelos cereais do pequeno almoço e, num ápice, chegou aos automóveis – um estudo da agência publicitária Digitas, em 2014, revelou que em uma em cada cinco famílias, as crianças têm voto na escolha do novo carro.

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Nissan Juke: um sonho de um miúdo de 14 anos em forma de carro

No cáustico High  and Mighty: The Dangerous Rise  of  the  SUV (2002), Keith Bradsher traça, com base nos estudos de mercado efetuados pelos fabricantes, um perfil nada caridoso (e talvez demasiado assertivo) dos condutores de SUVs nos EUA: tendem a ser “inseguros e frívolos […] nervosos em relação ao casamento e desconfortáveis em relação à parentalidade […] inseguros quanto aos seus dotes de condução […] auto-centrados e narcisistas, com escasso interesse pelos vizinhos e pela comunidade […] e a ser mais atraídos por bons restaurantes do que pela condução fora da estrada.”

As reviews a SUVs nos suplementos de lifestyle dos jornais portugueses acabam por deixar implícito que a maioria dos condutores nunca os levará para terrenos instáveis quando sugerem que uma das vantagens deste tipo de veículos é “a facilidade em galgar lancis elevados”. Galgar lancis e outros obstáculos dá jeito para encontrar um lugar de estacionamento inacessível aos “rodas baixas”, mas estacionar sobre passeios é um comportamento anti-social, que, por cá, é encarado com bonomia ou indiferença.

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Demonstração da utilidade de um SUV em ambiente urbano

Também é com bonomia ou indiferença que os proprietários de SUVs, maioritariamente da classe média-alta e, como tal, tendendo a ver-se a si mesmos como “ambientalmente conscientes”, encaram as desvantagens ecológicas deste meio de transporte.

Importa aqui diferenciar as situações europeia e norte-americana: os SUVs europeus são, em média, mais pequenos e económicos do que os SUVs americanos. No mercado europeu a presença de bestas da envergadura do Toyota Sequoia, do Nissan Armada, do Chevy Suburban ou do Hummer – com potências entre 320 e 420 HP e pesos entre 3,5 e 4 toneladas – é rara.

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Disparidades: à esquerda, um Toyota Camry, à direita, um Ford Excursion, entretanto substituído pelo não menos imponente Expedition

Na verdade, o mercado europeu tem poucos SUVs “puros”, sendo dada preferência aos crossovers, mais pequenos, leves e económicos. Mas mesmo os crossovers consomem muito mais recursos para desempenhar as suas funções típicas do que um banal utilitário. Os utilitários pequenos têm hoje pesos a rondar uma tonelada e potências de 75-80 HP, enquanto o Nissan Qashqai (um peso-pluma entre os SUVs) anda pelos 1400-1800 Kg e 110-150 HP.

Subindo de escalão temos, por exemplo, o Volvo XC60, com 1600-1700 Kg e 130-300 HP, e, mais acima, o Volkswagen Touareg com 2100-2300 Kg e 200-340 HP. Quem precisa de todo este metal e potência para levar os miúdos à escola e ir às compras?

Quanto à segurança adicional proporcionada pelos SUVs, há que considerá-la numa óptica abrangente: sim, os passageiros do SUV estão, em média, mais bem protegidos, mas o maior peso e a estrutura mais rígida do SUV faz com que a viatura “comum” que com ele colida sofra maiores danos. A maior altura ao solo do SUV leva também a que, num embate, o ponto de impacte seja mais elevado, ou até a que o SUV galgue sobre o outro veículo. No acima mencionado High and Might, Bradsher afirma que, em situações de colisão, cada vida salva num SUV causa cinco mortes nos outros automóveis.

 [Vídeo: Os SUVs ficam quase sempre por cima]

Os testes de segurança (EuroNCAP ou o similar americano), em que os SUVs costumam ter bom desempenho, só contam um lado da história. E deixam de fora que, pelo facto de possuírem um centro de gravidade mais elevado, os SUV são mais suscetíveis de capotar: em High and Might, Bradsher reporta que, em 2000, 62% das mortes em acidentes com SUVs nos EUA resultaram de capotamento.

Os acidentes envolvendo o Chevrolet Tahoe (2000 a 2500 Kg, 400 HP) causam em média 122 mortes por cada milhão de veículos em circulação, enquanto o rácio no Honda Accord é de 21 mortes. Porém, um estudo de 2011 do Insurance Institute for Highway Safety (EUA), envolvendo dezenas de modelos, não mostra uma tendência clara na comparação entre utilitários e SUVs – embora aponte claramente que os veículos com menos acidentes (por milhão de veículos em circulação) são os mini-vans.

Em situações de colisão, cada vida salva num SUV causa cinco mortes nos outros automóveis.

Também a maior visibilidade que a posição de condução elevada do SUV proporciona é apenas um lado da história: para os outros automobilistas, a maior largura e altura do SUV que segue à sua frente ou está estacionado junto ao cruzamento são um fator de obstrução da visão.

Mas mesmo a perceção de segurança que o SUV proporciona ao seu condutor, decorrente do peso, altura e amplo espaço interior, pode virar-se contra ele, ao torná-lo demasiado confiante e descuidado e levando-o a adotar uma atitude passiva perante os riscos de condução. Malcolm Gladwell, no artigo “Big and bad”, na The New Yorker de 12 de Janeiro de 2004, lembra que é importante que um veículo faça o seu condutor sentir-se inseguro (dentro de limites razoáveis), pois isso deixa-o em estado de alerta e, por contra-intuitivo que possa parecer, diminui o risco de acidente.

Os SUV “verdes”

Regressemos ao SUV na perspetiva ecológica: se o peso e potência dos SUVs compactos e crossovers não costumam ser suficientes para causar polémicas ou induzir sentimentos de culpa, os SUVs-mastodonte, abundantes no outro lado do Atlântico, são tão ostensivamente perdulários que era inevitável que atraíssem censuras ásperas e criassem problemas de consciência aos condutores das classes mais instruídas e inclinação ecológica. Em resposta a estas críticas e inquietações, alguns fabricantes lançaram o SUV híbrido.

Em 2004, a Ford apresentou o primeiro SUV híbrido (e também o primeiro veículo híbrido de um fabricante americano), o Escape Hybrid, combinando um motor a gasolina de 155 HP e um motor elétrico de 94 HP, o que permite desempenhos comparáveis ao Escape convencional, que possui um motor de 200 HP (para se perceber a diferença de perspetiva entre os dois lados do Atlântico, note-se que nos EUA o Ford Escape é classificado como “small SUV”).

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Ford Escape Hybrid, um SUV para apaziguar consciências

O discurso publicitário em torno do Escape Hybrid era muito revelador: “um SUV com uso eficiente de combustível deixou de ser um oxímoro” ou “o SUV com o uso mais eficiente de combustível do planeta”. Num anúncio ao modelo de 2008, o sapo Cocas coaxava: “é fácil ser verde”.

A prestidigitação foi bem acolhida pelos compradores “ecologistas” e os principais fabricantes apressaram-se a desenvolver variantes híbridas dos seus SUVs. Porém, é digno de nota que a “hibridização” se concentra nos modelos topo de gama: o Lexus RX450h tem uma potência combinada de 300 HP (mas descanse, tem também “Super Ultra-Low Emission”), o Volkswagen Touareg Hybrid tem uma potência combinada de 375 HP e o Porsche Cayenne S e-Hybrid soma um motor a gasolina de 333 HP a um (decorativo) motor eléctrico de 95 HP (o que são 95 HP para quem já tem 333 HP?). Ao lado destas “feras”, o Subaru Crosstek Hybrid, com “apenas” 160 HP, é um cordeirinho.

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Conduzir um Porsche Cayenne S e-Hybrid é uma forma de poupar na conta do combustível e assegurar o futuro do planeta, dizem-nos

O amante dos prazeres da vida e da ostentação mundana, que acalenta o sonho de fazer-se transportar num veículo com a compleição exterior de um carro de assalto e um interior tão amplo e confortável como um clube inglês de gentlemen, com revestimentos em nogueira e couro genuíno, mas que é atormentado pelo receio de que tal luxo possa ser visto como um atentado contra o ambiente e o futuro da vida na Terra e tenha de vir a expiar tais pecados nas profundezas do Inferno, encontra refrigério na Santa Madre Tecnologia, neste caso sob o rosto benigno dos grupos propulsores híbridos, que proporciona ao endinheirado com pretensões ecologistas o equivalente moderno das indulgências que a Santa Madre Igreja dispensava na Idade Média. Dai larga aos vossos apetites sem regra ou comedimento, irmãos, que não há pecado ou remorso ambiental que o dinheiro não possa resgatar. O SUV híbrido garante a eco-santidade sem auto-flagelação, cilícios, penitências, jejuns e outras privações e mortificações da carne.

O SUV híbrido é um dos expoentes do jogo de auto-ilusão consumista em que a humanidade, e em particular o mercado automóvel, vive, com a pressurosa ajuda da indústria e das agências de publicidade. Os progressos tecnológicos na indústria automóvel permitem hoje obter de uma mesma cilindrada de motor um rendimento muito superior ao de há quatro ou cinco décadas, mas a maior eficiência, em vez de ser canalizada para a poupança, foi parcialmente desviada para a ostentação. Há 40 anos, 100 HP seria uma potência que apenas se encontraria em veículos desportivos completamente fora do alcance do cidadão comum, enquanto hoje é a potência usual em qualquer utilitário de gama média.

No artigo “Fuel for thought”, publicado na The New Yorker de 2 de Julho de 2007, James Surowiecki faz as contas e conclui que, nos EUA, no período 1984-2002, os automóveis tornaram-se 20% mais pesados e aumentaram em 25% o seu desempenho de aceleração dos 0 aos 100 Km/h, mas estagnaram na eficiência energética. E atribui as culpas, em última análise, não aos fabricantes de automóveis, mas aos consumidores, pois é para os satisfazer que os fabricantes trabalham. Os compradores, segundo Surowiecki, comportam-se como esquizofrénicos (“hipócritas” será uma alternativa a considerar) que proclamam que são pela proteção do ambiente mas atuam como se tal não passasse por eles: “We buy gas guzzlers but vote for gas sipping.”

A Europa, que sempre foi mais comedida nos automóveis que os EUA, tem desempenhos mais ecológicos: a Agência Europeia de Ambiente contabilizou um aumento de 9% na eficiência energética só entre 2009 e 2012. Mas tal não impediu que as emissões de CO2 decorrentes do tráfego rodoviário europeu tivessem aumentado 21% entre 1990 e 2011. Na verdade, tem-se observado que os progressos reais obtidos na poupança energética (nos automóveis ou noutros setores) acabam por ser anulados por um mecanismo psicológico de compensação: se o novo veículo gasta menos combustível por quilómetro, a tendência do proprietário é para fazer mais quilómetros.

É também sintomático da mentalidade dominante no mercado automóvel que alguns dos modelos mais económicos e populares dos anos 60-70, como o Carocha e o Mini, tenham reencarnado como carros-brinquedo de luxo.

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VW Carocha de 1966

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O “carro do povo” deixou de ser acessível ao povo; a versão mais potente (na foto) do New Beetle (já descontinuado) tinha 221 HP

Uma série de mutações improváveis converteu o acanhado e espartano Morris Mini, que, quando nasceu, em 1959, media cerca de 3 metros de comprimento por 1,4 metros de largura, 1,34 metros de altura e tinha 580-660 Kg de peso e uma potência de 34-55 HP, no Mini Cooper Countryman de 2015 (mais um SUV), com 4 metros de comprimento, 1,8 metros de largura, 1,56 metros de altura e 1250-1350 Kg de peso e cujos motores debitam 100-215 HP.

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Morris Mini Minor de 1959

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Quem deixou os esteróides anabolizantes à mão do miúdo? Mini Cooper Countryman de 2015

Também o humilde Fiat 500 renasceu no século XXI como brinquedo de luxo com múltiplas facetas, que incluem um “500 by Gucci”, “customizado” pelo director criativo da Gucci, um “500 by Diesel”, cujo nome não tem a ver com o combustível usado mas com a marca de roupa (edição limitada de 10.000 exemplares), uma Barbie Edition (o carro ideal para uma top model ir às compras) e uma versão com 100 HP que a Ferrari disponibiliza aos seus clientes enquanto o Ferrari está na oficina.

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Fiat 500 de 1966 (esquerda) e Fiat 500 de 2008 (direita)

Boa parte desta escalada de potência, desempenho e luxo tem sido acicatada pelas revistas especializadas e suplementos de lifestyle, para as quais nenhuma extravagância é excessiva e o extra do ano passado já é um item indispensável deste ano. Hoje, qualquer veículo de gama média oferece, de série, mais gadgets e confortos do que a limusine de um sheik de há 40 anos (excluindo o jaccuzzi, por falta de espaço).

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Interior do Morris Mini de 1959

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Interior do Mini Cooper Countryman de 2015

Se falta o volante multifunções regulável, a câmara de visão traseira, os sensores de estacionamento dianteiros e traseiros, os espelhos retrovisores rebatíveis electricamente, o computador de bordo, o auxílio ao arranque em subida, a conexão Bluetooth e a porta USB, ou se nos revestimentos interiores dominam os plásticos de fraca qualidade, logo se erguem vozes de desagrado e até acusações de forretice.

Fez-se um longo caminho desde que Henry Ford anunciou, referindo-se ao Model T, que “qualquer cliente poderá escolher a cor que desejar para o seu carro, desde que seja preto” (a anedota poderá ser apócrifa, mas é verdade que, entre 1914 e 1926, o Model T foi comercializado apenas em preto, para minimizar os custos).

Nas gamas altas já se considera inadmissível que os bancos e o volante (em couro) não sejam aquecidos ou que os cabriolets não ofereçam, quando têm a capota recolhida, um fluxo de ar quente em torno do pescoço dos afortunados ocupantes. Nestas gamas, cada um dos extras (alguns de utilidade duvidosa ou enigmática) custa mais do que um pequeno utilitário em segunda mão e a soma de todos os equipamentos opcionais representa facilmente dois ou três anos de salário médio nacional português.

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Note-se o detalhe das saídas de ar quente ao nível do pescoço/nuca dos ocupantes dos bancos dianteiros – lamentavelmente, ainda se fabricam cabriolets que não incluem este conforto entre o equipamento de série!

Por outro lado, as facilidades de “info-entretenimento” e “conectabilidade”, a copiosa informação sobre o funcionamento do veículo e as indicações do dispositivo de GPS convertem o painel de instrumentos do veículo moderno numa feérica árvore de Natal que disputa à estrada a atenção do condutor – é frequente que os críticos reclamem da sobrecarga de informação nos tabliers, mas também reclamam quando o veículo não está equipado com aviso de colocação do cinto de segurança.

O leitor atento de jornais e revistas reparará que os anúncios a automóveis privilegiam invariavelmente modelos que se situam acima dos rendimentos médios dos leitores dessas publicações e, mesmo num país remediado como Portugal, raramente incidem sobre veículos de gama baixa e média-baixa. Não se julgue que tal resulta de uma deficiente análise de mercado do anunciante ou da agência publicitária: o segredo do negócio está precisamente em titilar o potencial comprador com algo acima das suas possibilidades – ao ser confrontado regularmente com automóveis de 50.000 ou 60.000 euros, o consumidor sente-se mais que justificado para gastar 30.000 euros num automóvel, mesmo que um de 10.000 ou 12.000 euros – a base da gama – chegasse para as suas necessidades e correspondesse mais fielmente às suas disponibilidades financeiras.

Por outro lado, as margens de lucro nos veículos de gama alta são muito maiores do que na gama baixa, pelo que o fabricante obtém mais lucro da venda de um veículo de 60.000 euros do que da venda de 20 veículos de 10.000 euros. E se o feliz proprietário da nova “bomba” decidir presentear-se com um tecto de abrir eléctrico, um forro de tejadilho em tecido especial e bancos dianteiros ergonómicos, só a margem de lucro correspondente aos extras equivalerá à da venda de um ou dois pequenos utilitários.

Portanto, compensa sempre anunciar o luxo – e também compensa convencer os jornalistas auto a fazerem testes preferencialmente às gamas média-alta e alta. Afinal de contas, quem compra veículos de 10.000 euros não lê jornais e revistas e, se o faz, não gasta tempo a comparar minudências entre marcas e modelos.

A bicicleta portuguesa não pedala

O resultado desta paixão pela ostentação sobre rodas leva a que o verdadeiro Sport Utility Vehicle — a bicicleta — não seja tão utilizada como deveria. Portugal tem nesse domínio um mau desempenho: apesar de o clima ameno ser favorável à bicicleta, os portugueses situam-se a meio da tabela europeia no que diz respeito à aquisição de bicicletas, mas no fundo da tabela no que diz respeito ao seu uso.

Pior ainda: fora da Grande Lisboa, onde a bicicleta tem, nos últimos anos, vindo a ganhar voga como meio de deslocação quotidiana, em boa parte do país o uso das duas rodas é sobretudo recreativo, exibicionista, competitivo e masculino. Aos fins de tarde e aos fins de semana, grupos de homens vestidos de lycra de cores berrantes lançam-se em esforçadas tiradas de dezenas de quilómetros, mas o resto da população não usa a bicicleta nas deslocações para o trabalho ou para a escola ou para outros afazeres do dia-a-dia – aliás, na maior parte dos casos, nem sequer o pelotão da lycra usa a bicicleta fora do contexto de convívio/desafio entre machos.

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Holanda

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Holanda

Paradoxalmente, é na Europa fria e chuvosa que se encontram os maiores utilizadores de bicicletas: Holanda (onde representam 30% das deslocações), Dinamarca (20%), Alemanha (12%), Suíça (10%) e Suécia (10%). Quando se contabilizam os quilómetros percorridos por dia e por pessoa, o ranking é semelhante: Holanda (3 Km), Dinamarca (1,7 Km), Suécia (0,9 Km), Alemanha (0,8 Km), Finlândia (0,7 Km). É o uso, não a posse de bicicleta, que conta: os 310 milhões de norte-americanos possuem 100 milhões de bicicletas, o que sugere que 1/3 da população usa a bicicleta, mas na realidade apenas 0,9% das deslocações nos EUA são realizadas de bicicleta.

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Dinamarca

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Dinamarca

Os pretextos invocados para, nas cidades pequenas ou médias que dominam a geografia portuguesa fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, as crianças não irem a pé ou de bicicleta para a escola são tão esfarrapados como os usados pelas famílias urbanas para comprar SUVs.

1) O trânsito é infernal

É verdade, mas boa parte dele é constituído por automóveis conduzidos por pais que levam os filhos à escola. Outra boa parte é constituída por adultos que usam o automóvel para deslocações que poderiam ser feitas de bicicleta ou a pé. Os riscos resultantes do restante trânsito podem ser minimizados impondo condicionamentos ao tráfego automóvel e inculcando nos condutores uma atitude de respeito por ciclistas e peões. Nos trajetos que envolvam trechos pouco seguros para a circulação a pé ou de bicicleta, ou quando as crianças são muito novas, pode haver um adulto que se reveze, ao longo da semana, a conduzir um grupo de crianças a pé ou de bicicleta. A partir do momento em que os ciclistas são em número significativo e o automóvel perde preponderância e arrogância, os riscos diminuem: não é por acaso que os países com menor mortalidade de ciclistas são a Holanda (1,6 mortes por 100 milhões de Km percorridos), a Suécia (1,8) e a Dinamarca (2,3).

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Holanda

2) As nossas cidades não favorecem as bicicletas

É verdade: nas últimas décadas, Portugal acolheu de braços abertos o modelo norte-americano, fomentando a construção de grandes centros comerciais fora das cidades (que são inimigos do uso da bicicleta) e deixou proliferar um urbanismo concebido exclusivamente em função de Sua Excelência o automóvel particular. Há que rever os conceitos de planeamento urbano e criar redes funcionais de ciclovias.

3) Na rua as crianças estão sujeitas a todo o tipo de criminosos e predadores

É falso: as ruas do mundo ocidental nunca foram tão seguras, para adultos e crianças. As taxas de homicídio atingiram mínimos históricos. Os casos de abuso sexual de menores não aumentaram, passaram foi a ser noticiados com estrépito – hoje, a maioria dos pais entra em histeria quando ouve falar de “pedofilia”, mas há 20 anos nem saberia o que a palavra significava, o que não quer dizer que o fenómeno não fosse frequente. O que as estatísticas também dizem claramente é que a maioria dos abusos sexuais de crianças são cometidas não por estranhos, mas por familiares, amigos da família e vizinhos. De qualquer modo, as ruas começam a tornar-se perigosas quando se esvaziam de gente, e o primeiro passo para tal ocorre quando as crianças deixam de ir a pé ou de bicicleta para a escola.

4) As crianças são irresponsáveis

As crianças precisam de aprender a ser autónomas e não é vivendo dentro de uma bolha que farão essa aprendizagem. Ao fazerem as suas deslocações quotidianas a pé e de bicicleta ganham autonomia, aprendem a tomar decisões e avaliar riscos, desenvolvem o sentido de orientação e conhecem melhor a comunidade em que se inserem. No processo, é bem provável que esfolem os joelhos e os cotovelos algumas vezes.

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5) As bicicletas são caras

As bicicletas para uso quotidiano nunca foram tão baratas, leves, cómodas e fáceis de usar. As bicicletas caras são as do pelotão da lycra colorida, que competem entre si para ter o último grito tecnológico e gostam de debater os méritos e deméritos de quadros em carbono vs. quadros em titânio.

Mais uma vez, é no topo de gama que há lucros chorudos a extrair, daí que os fabricantes de automóveis de luxo também entrem na liça do mercado de topo para duas rodas, tentando tirar partido do prestígio conquistado nas quatro rodas. Assim, a BMW M-Bike (um aceno aos automóveis desportivos da série M) vendia-se (foi uma tiragem limitada) por 1400 euros; a Mercedes-AMG, a divisão de alto desempenho da marca alemã, aliou-se à Rotwild para lançar em maio passado a GT S, que está equipada (dizem) com travões de disco derivados dos usados na Fórmula 1 e custa 10.000 euros. Em 2012 Aston-Martin lançou a One-77 (o nome evoca o do automóvel homónimo que debita 750 HP), que inclui computador de bordo (para onde são canalizados “100 canais de dados”) e conexão Bluetooth – custa 25.000 euros, um preço razoável quando comparado com o do homónimo de quatro rodas, que é de 1,3 milhões de euros (mais impostos e taxas).

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Aston-Martin One-77: se não fez reserva, já é tarde – só se fabricaram 77

É fácil que os meios se convertam em fins e que o consumismo se imponha a qualquer consideração racional ou que fabrique pseudo-racionalidades para justificar as suas opções irracionais. O automóvel é, na perspectiva do jogo social, menos um meio de transporte do que uma expressão de estatuto ou aspiração social ou uma afirmação da personalidade e atitude do condutor – aliás, é nestes eixos que toda a publicidade a veículos assenta.

Não há nada de “pecaminoso” em ser-se seduzido por este discurso e os proprietários de SUVs não são necessariamente (ao contrário do que Keith Bradsher sugere) pessoas egocêntricas ou anti-sociais – a sede de prestígio e reconhecimento, a competição com os pares e a permanente insatisfação que alimentam o ímpeto consumista estão profundamente enraizadas na natureza humana. Mas, por favor, escusam de proclamar, do alto dos vossos 10 ou 15 centímetros adicionais, que se preocupam imenso com o ambiente.

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