Índice
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Introdução
1 – Se as paredes do Palácio de Belém falassem, que nos contariam? Cavaco Silva contar-nos-á muito, sob a forma de Memórias que começaram aliás já a ser redigidas. Quando no final dos anos noventa o Presidente da República publicou dois livros referentes à década vivida em S. Bento, como chefe de três governos (1985/1995), não se podia esperar tudo: Cavaco sabia que voltaria à política activa para o seu último acto, cujo cenário seria agora um silencioso palácio frente ao Tejo e o argumento, a mais alta magistratura da nação. Com o pano prestes a cair de vez sobre tão intensa vida politica não custa adivinhá-lo a sair de Belém, regressar de vez à Travessa do Possolo, sentar-se à secretária e munido de (organizadíssimos) papéis, dossiers, documentos, decretos, pareceres, notas, cartas, bilhetes, deixa a memória vir ter consigo. A sua é prodigiosa, mas avisado e rigoroso como é, está “tudo” devidamente arquivado, por áreas, temas, datas e o “tudo” é obviamente esta última década presidencial.
Ainda bem. Há muito para explicar, dizer, aclarar, confirmar, desmentir e Cavaco sabe-o. Muitas vezes vilipendiado e outras intencionalmente deturpado – a esquerda nunca lhe perdoou a eleição – talvez nunca como nestes últimos anos os seus mais próximos lhe tenham ouvido, mesmo que de forma quase imperceptível, uma ou outra alusão a que “isso estará nas minhas Memórias”, ou “quando se ler o que escreverei, ficarão a saber o que realmente se passou.”
2 – Esperaremos. E depois abriremos esse livro e procuraremos determinado capítulo para ler a versão presidencial do que agora, em Outubro de 2015, tão inusitadamente ocorre entre nós. Agora, que o ar do tempo político se cobriu de sombras e nuvens, que o país parece (inverosimilmente) dividido quanto aos resultados eleitorais de 4 de Outubro e que é urgente procurar (e encontrar) a estabilidade governativa que Portugal tão claramente reclama. Sim, agora, quando todos os olhares se viram justamente para o Presidente da República. Entre a expectativa e a ansiedade, fazem-se perguntas e apostas: como irá Cavaco obter um entendimento governativo com a paisagem partidária tão arruinada por árvores doentes, plantas carnívoras, ervas daninhas, jardineiros desavindos e maus praticantes de botânica? Penderá para o cumprimento da legitimidade eleitoral ou para as estridentes reclamações da esquerda desunida?
Valerá por isso a pena olhar para trás e recuar no tempo, para recordar um histórico e empenhado pedido presidencial. Endereçado em Julho de 2013, aos três partidos do (ex?) arco da governação, pedia o Presidente a construção de um entendimento politico para um acordo de salvação nacional. Belém via-o como absolutamente imprescindível e o país − segundo Cavaco − reclamava-o como pão para a boca. Sucede porém que tal como a guerra de Tróia, o acordo não teve lugar, deixando no ar o perfume da polémica e o cheiro da pólvora. O Presidente “decidira em consciência” e “em nome do interesse nacional”, há quem assegure que o entendimento esteve por um fio, mas a conclusão foi uma derrota onde culpa e responsabilidade se confundem ainda hoje: todos acusam todos de nem acordos – nem entendimentos – terem chegado a porto algum.
Ao mesmo tempo em que, na sua redoma de silêncio, o Presidente da República se prepara hoje para enfrentar solitariamente sua última decisão política de vulto e importância, recordem-se as peripécias e as razões desses tão próximos e tão longínquos dias de Julho de 2013.
Um sombrio baile de máscaras
Fazia calor naquele dia no edifício da Escola da Polícia onde o Presidente da Republica almoçava na cerimónia comemorativa do Dia da PSP. O verão já era entrado, estava-se a 2 de julho de 2013, o ministro das Finanças Vítor Gaspar demitira-se na véspera com uma carta imediatamente considerada uma bomba política mas nessa mesma tarde (a vida continuava) o mais alto magistrado da Nação daria posse à nova titular das Finanças, Maria Luís Albuquerque. A carta de Gaspar, fora considerada “ambígua” mas a sua demissão estava prevista no Governo, o próprio Presidente conhecia-a há semanas. Cavaco nunca apreciou sobressaltos e detestava ter de lidar com eles. Fazia-o com aparente serenidade mas alguma coisa no seu íntimo se crispava quando, embora raramente, era confrontado com uma novidade, um imprevisto, um erro.
Iria ser o caso e de que maneira, logo após aquele almoço. Há longos minutos que o primeiro-ministro tentava − em vão − entrar em contacto com ele, o telemóvel do Presidente mantinha-se desligado. Passos Coelho tinha pressa em avisar Cavaco que, inopinadamente, Portas também abalara nessa mesma manhã, deixando o Executivo amputado da sua metade, ameaçando a utilidade da tomada de posse, os alicerces da governação e a saúde da própria coligação, agora ferida de morte.
Regressado apressadamente ao Palácio de Belém, Cavaco Silva toma conhecimento pelo próprio primeiro-ministro da (inexplicável) demissão de Portas mas, institucional até à medula e fiel ao seu registo do “fazer tudo como programado”, o Presidente, recorrendo à habitual frieza que usa nos momentos de convulsão, opta por empossar a nova ministra.
Intimamente algo contrariado, porém: consta que nunca achara Maria Luís uma escolha óbvia, considerando-a mesmo polémica, no puzzle da época. O puzzle era a crise, a polémica adivinha de se tomar como “bom” que uma secretária de Estado do Tesouro sem currículo tomasse posse como Ministra das Finanças. E pior agora, face a um governo amputado e diante de uma coligação de cuja durabilidade Cavaco duvidava. Et pour cause: há quanto tempo não a sabia o Presidente capturada por dissonâncias graves entre os partidos que a compunham?
Em Belém, nessa tarde, o cenário era soturno: errando como fantasmas nos corredores do Palácio, os secretários de Estado do CDS que seriam empossados com Maria Luís, pálidos de embaraço, não sabiam que destino os esperava. Sem conseguir falar com Paulo Portas, sem indicações de como agir, desmultiplicavam-se em telefonemas e conciliábulos. Pior: em face da publicação dos decretos de nomeação assinados pelo Presidente − e já aliás tornados públicos electronicamente – Nunes Liberato informa os (relutantes) futuros secretários de Estados de que “uma vez já nomeados pelo Presidente, teriam mesmo de tomar posse”. Não havia saída de emergência.
A máquina não podia parar e não parou, graças à “presidencialização”, por breves horas, de todo este processo, com o Chefe de Estado a chamar a si o controlo – e os riscos – da situação. Hoje há quem relembre que o Chefe de Estado “não vacilara na linha certa” e esta mesma garantia fora aliás dada ao primeiro-ministro, momentos antes da posse.
A cerimónia foi sombria, os semblantes estavam carregados, a perplexidade cruzava-se com a aflição: que era aquilo? Que fizera mover Paulo Portas? Onde estava o ministro dos Negócios Estrangeiros?
O ministro não estava mas o primeiro-ministro nunca deixou de estar e foi isso mesmo que o país – mal refeito do pasmo e do susto – percebeu ao ouvi-lo dizer aos portugueses “eu estou aqui”. Há quem diga que Passos ganhou aí a indiscutibilidade dos seus galões como líder político e chefe do governo. Outros preferiram dizer que Passos “já era assim resiliente e determinado” lembrando outros episódios de “firmeza e resistência na governação”. E em Belém admitia-se que, se o primeiro-ministro tivesse sido “vacilante” a complexidade teria subido de grau mas (sub-entendido) a César o que é de César. Isto é, as honras deveriam sobretudo caber a Cavaco enquanto de caminho se sublinhava a “determinação” do primeiro-ministro na tempestade…
Fosse como fosse o Presidente da República não ficara satisfeito e há muito não estava tranquilo: via a unidade da coligação dar de si como um tecido gasto, Gaspar assumira através de uma carta aberta “o semi fracasso da sua política”, o governo parecia que fraquejava, o ambiente do país era tenso.
E quando, dias depois, a “irrevogável” saída de Portas se transforma numa revogável reentrada no clã governamental, Cavaco, apesar de ter recebido em Belém as desculpas pessoais de Paulo Portas quarenta e oito horas após a sua demissão, diz simplesmente “não” à solução governativa com que Passos Coelho lhe aparece à frente. Na qual, o mesmíssimo Portas ascendia a vice-primeiro-ministro.
Um acordo e não um governo
Solução apresentada, nomeação imediata? Não.
A esse novo governo, para o qual o Palácio olhara como um periclitante remedeio, uma espécie de “como nada se tivesse passado”, o Presidente contrapõe a necessidade de um “compromisso de salvação nacional”. Tratava-se de uma excelente “oportunidade” de repor a questão do apelo ao compromisso com o PS. Belém considerava que o interesse nacional reclamava muito mais do Presidente da República do que a decorativa função de notário de um re-casamento no êxito do qual o próprio Presidente era o primeiro a duvidar. Era preciso visar mais longe, promovendo “uma nova partida” e dando-lhe os meios para a concretizar um acordo entre as três forças políticas do arco governamental, onde constava também a promessa presidencial da dissolução do Parlamento, um ano depois, encurtando o termo da legislatura para 2014.
Visava tal acordo assegurar a conclusão do Programa de Assistência Económica e Financeira em Junho de 2014; as condições de sustentabilidade das contas públicas e a transição para o pleno acesso ao financiamento de mercado.
Belém olhava também para esta possibilidade de entendimento inter-partidário como um “teste” à coligação. Subentendido: para que duas forças se entendam com uma terceira têm de estar coesas entre si… O compromisso seria então não só um “complemento” de coesão entre os parceiros da coligação governamental mas entre estes e o PS. Não era verdade que o PS fizera chegar a Belém alguns sinais, mesmo que esparsos, de “disponibilidade” e que era preciso agarrá-los com ambas as mãos para “veicular os socialistas ao Programa de Ajustamento”? Era.
Passos Coelho foi de longe o menos entusiasta: com as boas maneiras do costume, aceitou educadamente o repto presidencial, “indigitou” Jorge Moreira da Silva como representante do PSD, enquanto no seu íntimo nunca acreditou na bondade da empreitada. Nem sequer na própria empreitada. Já antes não pedira ele ao socialista Schulz, presidente do Parlamento europeu, que intercedesse junto de António José Seguro para que o PS activasse o seu empenho na aceitação das duras medidas do Programa de Ajustamento, subscrito em primeiro lugar pelo punho de José Sócrates em nome do governo socialista de então? O pedido do primeiro-ministro português não obtivera sombra de sucesso – Seguro dissera um não rotundo a Schulz – e não era agora que Passos iria acreditar numa tardia bondade do PS, mesmo tendo em conta a surpreendente moeda de troca proposta por Belém: eleições oferecidas de bandeja ao país, um ano antes do termo da legislatura. Para gáudio das oposições.
Jorge Moreira da Silva recorda ter participado nas negociações “por convicção e não por conveniência”, tendo aliás feito questão de usar estas mesmíssimas palavras na sua declaração final sobre o (falhado) encerramento deste diálogo a três vozes. Ou seja, saíra daquela semana invulgar com o mesmo espírito com que nela entrara.
Quanto ao CDS, Mota Soares lembra-se hoje de ter posto “rapidamente” e “convictamente” o país à frente das aflições partidárias então vividas no Largo do Caldas e também à frente da agenda do Congresso centrista já há muito convocado (e que seria entretanto adiado.)
O empenho de Alberto Martins, chefe da delegação socialista − onde estavam também Eurico Brilhante Dias e Óscar Gaspar − era porém o mais evidente. Em Belém ainda hoje se recorda como esse afã marcou a prestação socialista. Alberto Martins acreditava: “Conversei com António José Seguro e apercebemo-nos de que concordávamos ambos que o acordo seria benéfico para país. Parti para as negociações determinado a alcançá-lo, cabendo-nos até a proposta mais vasta e detalhada”.
Na grelha de partida tudo parecia bem encaminhado. A operação podia ter início.
Na boca do lobo
Guardada no segredo dos deuses, a primeira reunião, antecedida de preparativos delicados e uma meticulosa organização logística a cargo da Casa Civil, teve lugar, off all places, um domingo à tarde, 12 Julho, na própria… Casa Civil (nos dias seguintes as reuniões ocorreriam alternadamente nas três sedes partidárias).
Com a verdade me enganas… diz o adágio: quem adivinharia que era ali, no coração do Palácio ou na boca do lobo, que se haveria de sentar o terceto negociador – Moreira da Silva, Mota Soares, Alberto Martins e as respectivas delegações –, rodeando David Justino, observador do Presidente da República e o anfitrião Liberato?
De início, nota curiosa, tão empenhado estaria de facto o PS na negociação e porventura tão certo num feliz desfecho que logo no dia da primeira ronda “oficial” – segunda-feira, 13 Julho – o PS estampava no seu site em parangonas bem legíveis “ACORDO DE SALVAÇÃO NACIONAL”. Seria expeditamente apagado dias depois mas o gesto traduzira, sem dúvida, a vontade política inicial de Seguro.
O PS aceitou de boa-fé – dizem eles – o repto de um diálogo interpartidário porque assumiu que seria do interesse nacional um compromisso que retirasse o país da crise económica, social e política que se vivia. “Estávamos em plena crise política aberta pela demissão do Dr. Paulo Portas e o momento poderia ser oportuno para uma mudança de políticas. Os portugueses deviam poder ser ouvidos sobre o rumo do país, depois do Governo estar a levar a cabo uma política contrária às suas promessas eleitorais.”
A pressão presidencial era intensa. Cavaco sempre vira no núcleo político dos três partidos comprometidos com o Programa de Ajustamento um “activo fundamental de Portugal nas reuniões internacionais”. O maior activo. Como tal, apostava na transferência para o plano político do que ocorrera já em sede de concertação social onde, com a única a excepção da CGTP, todos os parceiros, liderados pelo empenho “patriótico” (Belém dixit) de João Proença, haviam logrado um compromisso entre eles. O mesmo “empenho” fora aliás reeditado com a divulgação, por aqueles dias, de um (inequívoco) comunicado da UGT de apoio a esta iniciativa presidencial de sentar a uma mesma mesa socialistas, sociais-democratas e centristas, com o país em fundo.
Sim, tudo parecia encaminhado salvo as dúvidas – ou deveria dizer “reservas”? – de Pedro Passos Coelho. Ao tomar conhecimento do documento inicial apresentado pelos socialistas – cada um dos partidos avançou para os trabalhos munido de um documento de intenções – terá desconfiado: apesar da disponibilidade do PS para se sentar a mesa das negociações, pareceu-lhe ver ali “pouca vontade de veiculação” às medidas que o país teria que continuar a aplicar, além do tom algo “panfletário” do texto vindo do Largo do Rato. Sem alarde como sempre, aguardou que os dias passassem, suspeitando aliás que lhe viriam a dar razão.
O fracasso
“Nos primeiros dois dias de negociações, no domingo e na segunda-feira, houve uma excessiva concentração nas questões de metodologia tendo sido quase nulos os avanços no conteúdo. Mas depois as negociações avançaram a bom ritmo”, recorda Jorge Moreira da Silva que teve ao seu lado Miguel Poiares Maduro, Carlos Moedas e até uma vez a (simbólica) presença da própria Ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque.
“Talvez logo de início houvesse um ambiente algo contido, mas depois, avançou-se”, lembra-se Luís Pedro Mota Soares, recordando quando face a determinadas “posições desavindas” entre o PSD e o PS, os centristas tentaram – e conseguiram – uma ‘zopa’ (zone of possible aggremment) entre eles. Com o país suspenso do resultado das negociações, o certo é que elas ocorriam numa concha onde fatalmente desaguariam diferentes sensibilidades partidárias, distintos olhares políticos e posições rivais no xadrez politico. Mesmo que Mota Soares insista ainda hoje que “de um ponto de vista negocial o importante era que se pensasse no país e não nos respectivos partidos políticos”.
A partir das ilhas Selvagens para onde entretanto viajara numa fragata numa missão de soberania, Cavaco Silva está inteirado − ao momento e ao milímetro − da evolução do diálogo interpartidário. Tem informações que aquele grupo tripartido tinha dado passos firmes a caminho de um entendimento mas também as percebe divididas.
Sabe que António José Seguro começa a ser alvo de “evidentes” pressões no PS, vindas de diversas fontes e que eram aliás do domínio publico; que Passos Coelho não fora meigo, bem pelo contrário, com o PS num Conselho Nacional do PSD ocorrido nessa mesma semana e não por acaso aberto aos media; ou ainda que o rasto que a demissão de Portas deixara no país poderia afectar ainda mais o CDS.
Na quinta-feira, farejando o perigo, o Presidente desmultiplica-se em entrevistas televisivas a partir do Atlântico, onde sem abrandar os apelos ao entendimento, não hesita em falar de “pressões”. Nunca ignorando o grau de dificuldade desta operação nem a sua complexa delicadeza, não se “perdoaria a si mesmo” se não insistisse nela. Era preciso salvar o compromisso! Acreditava firmemente nas virtudes do acordo. Sobretudo acreditava infinitamente mais nas vantagens que dele adviriam para amparar a rota do país, no penoso cumprimento do programa de ajustamento, do que numa solução governativa “remendada” por uma coligação débil e desunida (era assim que Cavaco via uma e outra).
Mesmo sabendo que nos processos negociais nada é “totalmente preto ou inteiramente branco”, era imperdoável falhar aquela oportunidade “única”. Nem de resto haveria outra e Cavaco Silva sabia-o melhor do que ninguém. Não desistir, acreditar até ao fim.
Ao mesmo tempo que, na sexta-feira, o Presidente da República e a sua comitiva aterram em Lisboa, vindos das ilhas, o PSD e o CDS deixam o Largo do Rato satisfeitos:
“Quando saí do Largo do Rato pelas 13 horas, tive a nítida sensação de que poderia haver entendimento ainda que isso envolvesse a necessidade de uma reunião final entre os três líderes, mas na minha opinião, o mais difícil estava alcançado e traduzia um acordo no essencial entre as três partes”, relembra Moreira da Silva, enquanto Mota Soares parece guardar a mesma memória dos acontecimentos:
“A minha convição pessoal quando saí da sede do PS era que haveria um entendimento”. David Justino, que os acompanhava, estava bem-disposto. Cada um deles poderia ir almoçar descansado: os sinais recebidos na sede socialista tinham sido muito animadores, pela parte de Belém podia até dizer-se que “estava tudo arrumado”.
Na casa socialista (afinal?) não era assim.
Óscar Gaspar − embora “sem querer entrar em pormenores” − contrapõe hoje: “As reuniões entre os três partidos terminaram quando todas as partes reconheceram que a aproximação possível estava feita e que estavam identificados os termos da divergência pelo que se deveriam levar as conclusões dos trabalhos ao Presidente da República. Na resenha dos trabalhos ficou claro desde a intervenção do Dr. Passos Coelho no Conselho Nacional de quinta-feira, que ele subitamente abriu à comunicação social, que o PSD não tinha qualquer interesse num acordo.”
Alberto Martins, mantém hoje o mesmo guião: “basta revisitar as declarações do primeiro-ministro Passos Coelho na discussão da moção de censura no Parlamento, ou voltar a ouvir a intervenção do lider do PSD no seu Conselho Nacional ocorrido nessa semana e que todo o pais ouviu porque a media estava presente, para perceber que se não houve acordo a responsabilidade política foi do líder do PSD”.
A reunião do PSD fora aberta aos media e fora-o “intencionalmente”: o primeiro-ministro não queria “filtros” entre a sua mensagem e o país. Na semana em que o seu partido se sentava à mesa com o PS, recusava-se a correr o risco de ser mal interpretado ou que lhe deturpassem enviesadamente o “aviso à navegação” que pretendia fazer nessa noite. O qual se resume aliás (cito de memória) em duas palavras: estava fora de questão que o acordo viesse a destinar-se a que coligação ficasse sozinha com o ónus das duras medidas a aplicar e que o PS ficasse… com as eleições.
Eurico Brilhante Dias também discordou dos propósitos do primeiro-ministro no Conselho Nacional, achando até “deselegante” que ele os usasse ao mesmo tempo que decorriam as negociações interpartidárias. E quanto aos “termos de divergência” , é ainda mais claro que Óscar Gaspar:
“Estranho que o professor Justino possa ter saído do Rato com a impressão de que haveria acordo quando nessa manhã era já claríssimo que ele seria impossível. É que o grande ponto de discordância não se encontrava no perímetro negocial proposto pelo Presidente da República mas nos célebres quatro mil milhões de euros que seria necessário cortar e que o PS recusava que incidissem em salários e pensões. Era o chamado “Program Expenditure Review” (PER) que levou até o engenheiro Carlos Moedas a passar pela mesa das negociações. Eu próprio me lembro de ter perguntado por três vezes, na manhã de sexta-feira, ao Moreira da Silva ‘se sim ou não havia revisão na intenção do corte de salários e pensões?’ e de ele nunca me ter respondido de forma cabal. O ponto era este e foi ele que inviabilizou o acordo”.
O mistério das pressões sobre Seguro
Se o coro socialista presente nas negociações não desafina sobre as razões do seu fracasso, omite porém e disfarça quanto pode as “pressões” entretanto sofridas por António José Seguro.
Num encontro a dois que o líder do PS teria tido com Mário Soares, este desfizera uma a uma as veleidades do líder socialista e praticamente intimara-o a não pôr o seu nome debaixo do acordo de salvação nacional, ao mesmo tempo que vozes mais radicais enchiam o ar de ameaçadoras críticas ao líder. Seguro, já de si também desagradado com as supostas invectivas do líder do PSD contra o PS e pelo tom usado na resposta do chefe do governo à moção de censura colocada nessa mesma semana pelos Verdes no Parlamento, teria baixado a guarda. Mas não era ele afinal o primeiro interessado num acordo que lhe poderia trazer, de brinde, uma eventual vitória eleitoral a médio prazo?
Mistério.
O caso é que ainda hoje não se sabe quanto pesaram tais pressões no seio do PS nem que relevância tiveram no intimo do líder socialista. Nem quais os seus verdadeiros – e também íntimos – temores quanto à possibilidade real de ser afastado da chefia do partido, caso assinasse o acordo. Ou seja: haver eleições doze meses depois mas não ser ele, Seguro, o condutor das tropas socialistas? Talvez não valesse a pena correr esse risco.
Pressões? Os meus interlocutores socialistas preferem negá-las e com veemência.
Diz um: “Sou testemunha como o então líder do PS sempre lhes resistiu e de como sempre defendeu que o interesse nacional estava num acordo que substancialmente mudasse o rumo das políticas, nomeadamente em prol do emprego. António José Seguro deixou aliás clara a sua posição e a posição do PS na comunicação que fez ao país no final da tarde dessa sexta-feira.”
E outro: “A responsabilidade sobre a ruptura terá que questionada junto do Dr. Passos Coelho”.
O mesmo Passos Coelho que desde o verão de 2013 guarda muito fleumaticamente uma dúvida que nunca se dissipou: qual a razão pela qual o PS, ao contrário do que fizeram PSD e CDS, se recusou a “pôr por escrito” as razões pelas quais falhara o compromisso pedido por Belém?
Seja como for não será inverosímil pensar que António José Seguro, ainda hoje (ou sobretudo hoje?) deva estar arrependido de ter dançado tão mal esta valsa a três.
Ou de não a ter sabido dançar sozinho.
Em Belém, nessa mesma sexta-feira, a meio da tarde, Cavaco Silva, na solenidade grave do seu gabinete presidencial, terá ouvido António José Seguro balbuciar uma soma de justificações inconclusivas, refugiando-se em pretextos que soaram pouco conclusivos ou mesmo “vagos” aos ouvidos do Palácio presidencial: os órgãos do PS necessitavam de mais compromissos da maioria no seio da negociação, e embora sem especificar concretamente quais, acusava PSD E CDS de não parecerem dispostos a dá-los; era preciso reunir a Comissão Directiva do PS, ouvir de novo os seus pares. Etc.
“Fui surpreendido com a decisão, comunicada pelo PS ao Presidente da República de fracasso das negociações” recorda Jorge Moreira da Silva: “Na tarde dessa sexta-feira ainda enviei uma carta ao líder da delegação socialista solicitando uma reunião adicional que foi considerada desnecessária pelo Dr. Alberto Martins. Mas apesar do fracasso do processo, registei, com agrado, que nessa semana, a condução dos trabalhos não só de correu num clima cordial entre as delegações como o processo foi conduzido com total reserva por parte dos três partidos, sem qualquer fuga de informação.”
Mota Soares: “O acordo não falhou por falta de vontade de chegar a um entendimento nem por falta de propostas. Falhou por falta de vontade política do PS. Da nossa parte procuramos genuinamente um consenso e do ponto de vista técnico tivemos perto de o conseguir. Foi com surpresa que vi o PS romper a negociação.”
E David Justino? O observador do Presidente da República, discreto e eficaz, circunscrevera-se exemplarmente, durante seis longos dias, a testemunhar, acompanhar e registar, sem qualquer intervenção, todo o processo negocial. A sua atitude e a sua correção foram apreciadas por todos os intervenientes. E nenhum esqueceu até hoje a afabilidade do seu comportamento.
Um governo e não um acordo
Tudo se gorara. E a forma como as negociações haviam abruptamente terminado sem que horas antes se previsse ruptura tão vincada ou taxativa, inviabilizara mesmo o plano B de Belém: a possibilidade de os três partidos se entenderem sobre um acordo mais “soft”, menos comprometido.
Voltava-se ao cenário da coligação, colocado por Belém entre-parêntesis e deixado em suspenso perante o país.
Dias depois, fiel ao seu modo de agir e seguindo como sempre o roteiro do seu processo de decisão, o Presidente da República, usando o seu habitual formulário de perguntas, terá submetido Pedro Passos Coelho a uma espécie de exame:
“Assegura-me que vai com a legislatura até ao fim?
Ou: “Está em condições de me apresentar um compromisso sobre a solidez da coligação?
Era assim: Cavaco tinha o hábito – sempre agiu deste modo em Belém – de se munir de um questionário tão seco quanto preciso e apertado de questões, ditadas pelo seu conhecimento das situações ou pelos seus próprios ângulos de visão – ou ainda sugeridas pelos seus assessores políticos – e que iam variando conforme os temas em apreço ou as prioridades da agenda política. Desta vez tratava-se do governo do país – não era pouco – e do futuro da coligação. Pouco convencia Cavaco: nem a revogada marcha de atrás de Portas, nem a aplicação das medidas impostas pela troika a cargo de uma equipa governamental ferida de asa, nem a coesão da coligação, dividida por já públicas tensões e conhecidos desentendimentos.
Epílogo
O interesse do país falou mais alto porém. O que tinha de ser, tinha força.
O Presidente decidiu dar posse a Passos e Portas, dois lideres reconciliados. A politica também é isto: virarem-se páginas. Um novo Governo, um novo fôlego, dado pelo Chefe de Estado. Não sendo a situação ideal na perspectiva de Belém, era aquela que melhor permitia, em circunstâncias dificílimas, alcançar o grande objectivo de Cavaco: a conclusão com sucesso do Programa de Assistência Financeira. O compromisso falhara mas, como o Presidente irá repetir vezes sem conta, terá deixado sementes. O futuro dirá se um dia florescem.