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Em abril, quando os Estados Unidos da América anunciaram a retirada total das suas tropas do território afegão, na sequência de um acordo de paz firmado pela antiga Administração com os talibãs, a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão publicou um relatório que antecipava o pior dos cenários: nos primeiros três meses de 2021, o número de vítimas mortais civis provocadas pelo conflito tinha aumentado 29% em relação ao mesmo período do ano anterior. No caso específico das mulheres, o crescimento tinha sido de 37% e, nos menores, de 23%. Ao mesmo tempo que os Estados Unidos anunciavam a retirada, a tensão no território era cada vez mais evidente. O desfecho (anunciado) deu-se este domingo: 20 anos depois da invasão do Afeganistão, os talibãs voltaram ao poder.
A guerra no Afeganistão começou em 2001. Após os atentados terroristas de 11 de setembro, o governo de George W. Bush declarou guerra ao terrorismo e prometeu encontrar o líder da Al-Qaeda, o grupo responsável pelos ataques, Osama bin Laden. Os talibãs, que lideravam o Afeganistão desde o início dos anos 90 através de uma forma de governo totalitária, recusaram-se a entregar Bin Laden, que teria encontrado refúgio na região. Os Estados Unidos responderam militarmente e uma coligação internacional juntou-se-lhes para derrubar os líderes talibãs. Um novo governo apoiado pelos Estados Unidos foi estabelecido em 2004, mas os talibãs nunca deixaram de exercer influência em certas zonas do território ou de alimentar a guerra que, em 20 anos, custou a vida a perto de 50 mil afegãos.
Nada que impedisse a assinatura de um acordo de paz, a 29 de fevereiro de 2020. A retirada de tropas era um sonho antigo dos Presidentes norte-americanos, de Barack Obama a Donald Trump. E Trump, responsável pelo acordo, fez questão de que fosse concretizado o mais rapidamente possível — após a assinatura, o número de militares no Afeganistão foi rapidamente reduzido, preparando o terreno para a retirada total das forças militares até 1 de maio de 2021, tal como previa o documento. Em contrapartida, os talibãs deviam iniciar negociações de paz com o governo afegão e trabalhar para impedir que qualquer grupo terrorista, nomeadamente a Al-Qaeda, operasse no Afeganistão.
Apesar da vontade dos norte-americanos, as negociações de paz, iniciadas em setembro desse ano, rapidamente arrefeceram, deixando o país mais ou menos no ponto em que estava antes de começarem. Mas a retirada das tropas dos Estados Unidos continuou a avançar, e quando Joe Biden assumiu o cargo presidencial a 20 de janeiro de 2021 restavam apenas 2.500 soldados e 16 mil civis auxiliares em solo afegão.
Assim que chegou à Casa Branca, Biden decidiu suspender a operação, alegando que precisava de analisar melhor a situação. Acabou por optar por dar continuidade à retirada, anunciando que, até 11 de setembro, quando se assinalam os 20 anos dos ataques ao World Trade Center e do início da guerra no Afeganistão, todas as tropas dos Estados Unidos no Afeganistão voltariam para casa.
No mesmo dia de abril, numa ação coordenada com os Estados Unidos, a NATO comunicou a retirada das suas forças militares, também até 11 de setembro O governo afegão reagiu, dizendo que apoiava todas as decisões dos Estados Unidos e das forças internacionais, mostrando-se confiante de que seria capaz de responder sozinho às dificuldades no terreno.
“As forças de segurança e defesa afegãs têm defendido o nosso povo com moral alto nos últimos dois anos e, nos últimos tempos, realizaram mais de 98% das operações de forma independente. São perfeitamente capazes de continuar a fazê-lo no futuro”, defendeu então Waheed Omer, conselheiro principal do Presidente afegão.
Descontentes com o adiamento da retirada dos militares, que segundo o acordado em 2020 deveria acontecer até 1 de maio, os talibãs ameaçaram boicotar todas as negociações de paz, paradas desde setembro, e retomar os ataques às tropas internacionais. Apesar das ameaças, o governo norte-americano parecia não acreditar que os rebeldes fossem capazes de organizar uma resposta eficaz ao ponto de ameaçar a paz e estabilidade do país.
Uma possibilidade que Joe Biden continuou a negar: em julho, quando comunicou que a retirada dos militares norte-americanos estaria concluída mais cedo do que era expectável, até 31 de agosto, o Presidente dos Estados Unidos declarou que “a probabilidade de os talibãs controlarem o país inteiro” era “extremamente improvável”. Há dois meses que os talibãs conquistavam territórios de norte a sul do país. Como poderá Biden ter falhado o diagnóstico?
A apressada retirada das forças norte-americanas no Afeganistão não foi bem vista. Bush, o Presidente que deu início à guerra em 2001, considerou a decisão de Biden “um erro”, opinião que é partilhada por muitos outros membros da oposição e também por democratas, que temem o regresso da Al-Qaeda e o aumento do terrorismo no ocidente.
As críticas também se têm multiplicado fora dos Estados Unidos. Ben Wallace, ministro da Defesa do Reino Unido, mostrou-se igualmente contra a retirada das tropas, que, na sua opinião, “causou muitos problemas”. “[A saída] deixa um grande, grande problema. Foi por isso que disse que este não é o tempo nem a altura certa, porque provavelmente a Al-Qaeda vai voltar”, disse, em entrevista à Sky News. “Estados falhados levam à instabilidade e à insegurança, uma ameaça para nós e para os nossos interesses.”
Com o agravamento da situação em agosto, também o governo afegão decidiu apontar o dedo à Administração Biden, apesar de inicialmente ter mostrado o seu apoio. Num discurso feito no início deste mês no parlamento afegão, o Presidente, Ashraf Ghani, declarou que “a situação atual” se devia “à brusca decisão de Washington” de retirar as suas tropas até ao final de agosto.
Na mesma ocasião, Ghani disse ter preparado um plano para conter os avanços das forças talibãs, que eram já bastante significativos. Porém, não adiantou quaisquer detalhes sobre o que planeava fazer, uma situação que se repetiria com a chegada dos talibãs às portas de Cabul. Desde o início que o governo afegão mostra ser incapaz de reagir e fazer frente aos rebeldes.
Uma conquista relâmpago em três meses
A assinatura das tréguas entre norte-americanos e talibãs não fez a violência desaparecer, como mostra o relatório da Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão divulgado em abril. No início do ano, ainda antes do anúncio de Biden, já se registava um aumento significativo de vítimas civis.
A situação piorou drasticamente a partir de maio, quando os talibãs, atentos às movimentações internacionais, decidiram aproveitar o aceleramento do processo de retirada das tropas dos Estados Unidos para avançar pelo território. O grupo extremista começou por dominar áreas rurais, procurando depois controlar as grandes cidades e capitais de província, que foram caindo, uma a uma, como um baralho de cartas. Na maioria das localidades, não encontraram qualquer resistência.
A conquista foi avançando a bom ritmo e, em julho, enquanto Joe Biden negava a probabilidade de os talibãs tomarem conta do poder no Afeganistão, o grupo garantia que já dominava cerca de 85% do território. A entrada do mês de agosto trouxe um agravamento da situação que, por essa altura, começava a parecer irreversível: em apenas oito dias, os talibãs capturaram perto de metade das capitais de província, obtendo o controlo sobre a maior parte do norte, oeste e sul do país.
Com o cerco a fechar-se em torno da capital, Canadá, Estados Unidos e Reino Unido anunciaram o envio de militares para retirar os diplomatas e outros cidadãos e os colaboradores afegãos. Enquanto as forças internacionais se mobilizavam, o governo afegão mantinha um perturbador silêncio.
Esse silêncio só foi quebrado este sábado de manhã, quando parecia que já não havia nada que se pudesse fazer para conter o avanço dos talibãs e impedir a conquistar de Cabul. Apenas três cidades permaneciam sob domínio governamental. Numa mensagem previamente gravada e transmitida pela televisão nacional, o Presidente do Afeganistão falou na remobilização das forças militares, a “grande prioridade”, e prometeu tentar ajudar os vários milhões de deslocados provocados pelo conflito.
Segundo as contas das Nações Unidos, desde maio, o conflito provocou 250 mil deslocados, dos quais 80% são mulheres e crianças. “Na situação atual, a remobilização das nossas forças de defesa e segurança é a nossa grande prioridade. Passos sérios foram tomados nesse sentido”, declarou Ashraf Ghani.
Sem explicar que passos seriam esses, Ghani, que parecia não ter consciência da gravidade da situação, revelou que tinha iniciado consultas com outros membros do governo, líderes políticos, representantes afegãos e parceiros internacionais com o objetivo de encontrar “uma solução política razoável e certeira” que assegurasse a paz e estabilidade no Afeganistão. O resultado desses encontros seria anunciado em breve. “Entendo que estão preocupados com o vosso futuro. Asseguro-vos como vosso Presidente que vou concentrar-me em evitar a expansão da instabilidade, da violência e dos deslocados”, declarou.
Pouco mais de 24 horas depois, quando os talibãs se preparavam para invadir Cabul, Ashraf Ghani abandonou o país, entregando o governo a uma “administração de transição”. O ministro do Interior, a quem coube anunciar a queda do governo do Afeganistão, garantiu que a passagem será pacífica e que as forças de segurança irão manter-se na capital para assegurar a “segurança de Cabul” e dos seus habitantes.
Num comunicado emitido horas depois, Ghani explicou que saiu do Afeganistão para evitar um “banho de sangue”. “Os talibãs ganharam e são agora responsáveis pela honra, a posse e a autopreservação do seu país”, disse, apelando a que todos os afegãos, homens, mulheres e crianças, sejam protegidos.
Um Estado falhado
Ao longo de duas décadas de conflito, os Estados Unidos centraram grande parte dos seus recursos (financeiros e humanos) em formar forças armadas afegãs que fossem capazes de assegurar a unidade do país no pós-retirada. A blitz talibã provou que as forças leais ao governo afegão não estavam minimamente preparadas para resistir ao avanço.
Em parte, graças à corrupção estrutural de um Estado que nunca chegou a sê-lo. À medida que entravam no território, sempre sem grande resistência, os talibãs conseguiram comprar a desistência das forças governamentais (e armas de origem norte-americana) a troco de dinheiro e promessas de poder.
Em igual medida, o anúncio da retirada das tropas norte-americanas desmobilizou e desmotivou umas forças armadas afegãs já de si impreparadas. Assim que perceberam que os Estados Unidos estariam efetivamente de saída e que o governo afegão seria incapaz de segurar o país, os militares foram desistindo de resistir ao avanço afegão — em muitos casos, a conquista de territórios deu-se sem que fosse trocado um único tiro.
E agora, que futuro? China, Rússia, Paquistão e Índia tem uma palavra a dizer
Com a transição de poder em curso, surgem questões relacionadas com o futuro do Afeganistão. O maior receio é que as forças talibãs tentem recuperar o antigo regime totalitário, marcado por restrições à liberdade da grande maioria da população e violações dos direitos humanos, e que este fomente o regresso em força de grupos terroristas como a Al-Qaeda, uma preocupação para os governos ocidentais.
Por enquanto, os talibãs tem optado por um discurso “pacifista”, com os líderes dos rebeldes a assegurarem à população afegã que nada lhes acontecerá e que os seus direitos estarão assegurados. Foi precisamente isso que Suhail Shaheen disse a um jornalista da BBC, numa altura em que as forças rebeldes já se encontravam dentro da capital. “Asseguramos ao povo do Afeganistão, e em particular da cidade de Cabul, que as suas propriedades e as suas vidas estão asseguradas”, declarou o porta-voz. “Somos servos deste povo e deste país.”
O mesmo foi dito à Associated Press, já depois de terem controlado o palácio presidencial, durante a noite deste domingo: o objetivo, disseram as forças talibãs, é formar um “governo aberto, inclusivo e islâmico”.
Uma das preocupações da comunidade internacional é que a chegada ao poder dos talibãs volte a fazer do Afeganistão um viveiro de terroristas sem controlo possível. Recorde-se que foi essa a grande motivação assumida pelos norte-americanos para invadir o país.
Além disso, como recorda a National Public Radio (NPR), a subida ao poder dos talibãs pode desestabilizar a região, em particular o Paquistão, um dos poucos países que, no passado, entre 1996 e 2001, reconheceu o Emirado Islâmico do Afeganistão.
A aparente proximidade do Paquistão aos talibãs explica-se, em parte, como contrapeso à crescente influência indiana no Afeganistão. Existe, por isso, uma disputa pelos recursos do território afegão e pelo domínio da região.
Depois (ou sobretudo) entra a China: os dois países têm interesses estratégicos no país — rico em cobre, lítio, mármore e urânio — e um regime simpático (logo, sem influência norte-americana) permitirá ligar a China ao Paquistão para a Nova Rota da Seda.
A influência da China no território é, aliás, cada vez mais evidente. A 28 de julho, o chefe da diplomacia da China, Wang Yi, recebeu, em Tianjin, uma delegação dos talibãs que incluía o seu líder político, o mullah Abdul Ghani Baradar.
Nesse encontro, Wang Yi não escondeu ao que ia: a retirada das tropas norte-americanas e da NATO revelava “o falhanço das políticas da América” e Pequim esperava “desempenhar um papel importante no processo de reconciliação pacífica e reconstrução no Afeganistão”, assumiu o responsável chinês. Novamente de acordo com a NPR, a China já terá prometido grandes investimentos na área das infraestruturas e da energia.
Moscovo, por sua vez, quer evitar a todo o custo que o Afeganistão, com quem partilha fronteiras e com quem, no passado, já travou um sangrento e traumático conflito, permita o reforço de organizações terroristas como o Daesh.
Uma ameaça apontada ao coração das afegãs
Em relação às mulheres, tem sido também garantido que nada mudará com a tomada do poder. Shaheen afirmou mesmo que os talibãs estão dispostos a “respeitar os direitos das mulheres”, contrariando assim as políticas ultraconservadoras anteriormente impostas, que negavam qualquer tipo de educação às mulheres. “A nossa política é a de que as mulheres terão acesso à educação e ao trabalho e usarão o hijab”, afirmou, citado pelo The Guardian. O hijab difere da burka por permitir às mulheres mostrarem a cara, mantendo o cabelo e pescoço escondidos.
Mas as promessas poderão não passar disso mesmo. O medo de um retrocesso torna-se mais real quando se olha para as localidades que já se encontram efetivamente nas mãos dos talibãs. Em Kandahar, as nove funcionárias de um banco foram obrigadas a abandonar os seus postos de trabalho, sendo-lhes dito que iam ser substituídas por homens. Em Kunduz, onde um novo presidente da câmara já tomou posse, foi anunciado que as mulheres que trabalham para o governo devem ficar em casa, assim como os assessores de imprensa, contou o The New York Times. Não há lugar para eles no novo regime.
As mudanças em Kunduz não ficaram por aqui. A venda de bebidas alcoólicas foi proibida esta quarta-feira, o dia em que deixaram de vender frangos congelados na cidade. O anúncio foi feito pelo novo autarca, Gul Mohammad Elias, durante uma reunião com os empregados da câmara. Elias fez questão de se fazer acompanhar por uma escolta de homens armados, mas manteve o tom tranquilo com que, durante essa semana, tentou convencer os funcionários a voltarem ao trabalho.
Com o avanço das tropas talibãs e a queda do governo local, muitos trabalhadores deixarem de ir trabalhar. Uma situação que Elias tentou reverter através do uso da retórica e da demonstração de armas: segundo relata o The New York Times, combatentes do grupo extremista começaram a ir de porta em porta à procura dos funcionários públicos que, paralisados, insistiam em ficar em casa, ao mesmo tempo que foram estabelecidos pontos de controlo em vários locais da cidade. À entrada do hospital, foi colocada uma nota alertando os funcionários que deviam regressar ou seriam castigados.
Apesar de Gul Mohammad Elias ter garantido ao jornal norte-americano que a sua luta “não é contra o município”, mas contra as forças que ocuparam o território, os habitantes de Kunduz estão assustados. “Tenho medo, porque não sei o que vai acontecer e o que irão fazer”, admitiu um residente que não quis ser identificado. “Temos de lhes sorrir, porque estamos assustados, mas no fundo estamos muito infelizes.”