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Com a Ucrânia a anunciar o início de uma operação ofensiva preparada há meses e com a Rússia a registar dentro de fronteiras, o Kremlin poderá ter de responder em duas frentes

NurPhoto via Getty Images

Com a Ucrânia a anunciar o início de uma operação ofensiva preparada há meses e com a Rússia a registar dentro de fronteiras, o Kremlin poderá ter de responder em duas frentes

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Como os ataques em Belgorod podem ter sido uma manobra para a Ucrânia começar a contraofensiva

Incursão à região de Belgorod por milícias anti-Putin, que ameaçam repetir ataques, leva Kremlin a reforçar segurança em regiões fronteiriças. Ucrânia pode ganhar com isso e fortalecer contraofensiva.

Após meses de especulação, o conselheiro da presidência ucraniana, Mykhailo Podolyak, admitiu sem rodeios, esta quinta-feira, que a contraofensiva já começou e que já estão “em curso” várias ações para desestabilizar as tropas ocupantes. O braço direito de Volodymyr Zelensky não detalhou no que consistem as atividades para recuperar os territórios conquistados por Moscovo, mas o timing destas declarações surgem dias após um novo grupo ter entrado em cena na guerra da Ucrânia: milícias compostas por paramilitares russos que desejam o fim do regime de Vladimir Putin. 

Até ao momento, os mercenários do grupo Wagner, as tropas russas e as forças ucranianas continuam a ser os principais combatentes da guerra que se iniciou na Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022. Quinze meses depois do início do conflito, dois grupos — o Corpo de Voluntários Russos e a Legião da Liberdade para a Rússia — parecem entrar agora no teatro de operações para desempenhar um papel que pode ser estratégico. E há uma diferença considerável: a guerra deixou de estar centrada sobretudo em território ucraniano e também se estende a solo russo, nomeadamente à região fronteiriça de Belgorod. Com inimigos em comum, os opositores de Vladimir Putin e Kiev podem criar sinergias. É que, ao iniciar uma contraofensiva que poderá originar perdas pesadas para Moscovo, o regime da Rússia poderá eventualmente tremer. 

Ilya Ponomarev, um antigo deputado russo no exílio que tem organizado iniciativas de resistência ao regime do Presidente Putin e atual porta voz do Corpo de Voluntários Russos, é um dos principais rostos associados à incursão que se deu na passada segunda-feira. Numa entrevista ao jornal espanhol El Mundo, o político, o único na câmara baixa do Parlamento russo que votou contra a anexação da Crimeia em 2014, admitiu que as milícias conseguiram controlar “três aldeias” na sequência dos ataques, que resultaram numa vítima mortal e em dezenas de feridos.

A reação russa ao ataque não tardou, desencadeando uma operação antiterrorista. O Ministério da Defesa russo adiantou que foram mortos 70 paramilitares e quatro carros de combate utilizados pelas milícias foram destruídos. “Os restantes nacionalistas foram empurrados para o território ucraniano, onde continuaram a ser atingidos por tiros até serem completamente eliminados”, garantiu a pasta chefiada pelo ministro Sergei Shoigu.

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Mas esses números são contestados pelas milícias. Numa conferência de imprensa esta quarta-feira, num descampado no norte da Ucrânia, Denis Kapustin, pertencente a Legião da Liberdade para a Rússia e ligado à extrema-direita da Rússia, deu conta de dois mortos e dez feridos, descrevendo a operação militar como um “sucesso”. Foi mesmo uma prova, reforçou, de que se “pode lutar contra os tiranos e que o poder de Putin não é ilimitado”.

Na mesma ocasião, Denis Kaspuitn deixou um aviso ao Kremlin, garantindo que a que incursão em Belgorod é apenas o início de uma série de operações militares, que “estão em andamento e têm várias fases”. “Não posso revelar o que virá a seguir. Nem posso revelar qual será a direção. A fronteira é muito grande. Vai haver uma localidade em que as coisas vão aquecer”, afirmou o membro do Corpo de Voluntários da Rússia, prometendo desenvolvimentos “nos próximos dias”. “Vão voltar a ver-nos.”

Com a Ucrânia a anunciar o início de uma operação ofensiva preparada há meses e com a Rússia a registar dentro de fronteiras ameaças, o Kremlin poderá ter de responder em duas frentes. Terá recursos para tudo?

O papel da Ucrânia: ajuda à contraofensiva?

Tendo em conta as hostilidades entre a Rússia e a Ucrânia, seria natural que inicialmente se associasse a autoria da incursão ao governo de Kiev, mas as milícias paramilitares rapidamente rejeitaram esse cenário, alegando que as tropas ucranianas não foram responsáveis pelos ataques, nem nenhum militar do país participou na operação. Isso não quer dizer, contudo, que não tenham incentivado e apoiado os ataques em Belgorod.

“Supreendeu-nos que a Ucrânia nos tenha deixado atacar. Normalmente, havia receio [da parte deles], reconheceu Ilya Ponomarev, confirmando que “Corpo de Voluntários Russos e a Legião da Liberdade para a Rússia” estão “enquadrados no exército ucraniano”: “Foi a Ucrânia quem deu a luz verde para esta incursão”. 

epa10150148 Ilya Ponomarev, a Russian opposition politician and former member of Russia's State Duma, who acts as an authorized signatory for the National Republican Army, speaks to the media in the city of Irpin, near Kyiv, Ukraine, 31 August 2022, amid the Russian invasion. The groups Russian Legion 'Freedom of Russia', Russian Volunteer Corps (RVC) and the National Republican Army (NRA) signed a 'declaration of cooperation' and coordination of actions between volunteer units that are fighting against the Russian army. Russian troops entered Ukraine on 24 February 2022 starting a conflict that has provoked destruction and a humanitarian crisis.  EPA/SERGEY DOLZHENKO
"Foi a Ucrânia quem deu a luz verde para esta incursão"
Ilya Ponomarev, antigo deputado russo no exílio

As duas milícias pertencem à Legião Internacional da Ucrânia, um organismo que coordena voluntários internacionais — incluindo russos, georgianos, norte-americanos e outras nacionalidades — que combatem ao lado das Forças Armadas do país. Isso não significa que estejam integrados no exército ucraniano, ainda que Kiev tenha, em última instância, de aprovar as operações militares que os voluntários possam vir a desenvolver.

Neste caso, não se tratou somente da simples aprovação. Ilya Ponomarev reconhece que a Ucrânia forneceu as armas e veículos blindados para a incursão em Belgorod. E não foi só. Denis Kaspuitn indicou que os militares ucranianos prestaram auxílio médico aos paramilitares que acabaram feridos. Ainda assim, o membro da Legião salientou que os ataques a solo russo são “decisões próprias” das milícias, tendo concedido, não obstante, que pode pedir “assistência” aos “camaradas” e “amigos” da Ucrânia.

Oficialmente, apesar de a Rússia a acusar de estar por trás dos ataques, a Ucrânia nunca assumiu a autoria dos mesmos. No Twitter, o conselheiro da presidência ucraniana, Mykhailo Podolyak, assinalou que Kiev “assiste aos eventos na região de Belgorod com interesse” e está a “analisar a situação”. Realçando que as autoridades ucranianas “nada tiveram a ver” com a incursão, o responsável pareceu escudar-se das críticas de um possível envolvimento, alegando que se podem comprar tanques “em qualquer loja militar russa”.

Ao confirmar-se o apoio tácito ucraniano, esta é uma situação em que há paralelismos com o que aconteceu na altura da anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014. Como recorda a BBC, Moscovo negava categoricamente que as tropas russas estivessem envolvidas nas ações militares da península, se bem que nunca tivesse escondido que se solidarizava com os paramilitares pró-Putin da Crimeia.

O quê é que a Ucrânia tem a ganhar?

O apoio da Ucrânia às milícias privadas russas não surpreende, na medida em que vários objetivos dos grupos paramilitares se compatibilizam com os defendidos por Kiev. Por exemplo, a Legião da Liberdade para a Rússia indicou que pretende “criar uma zona desmilitarizada entre a Rússia e a Ucrânia”, “destruir as forças de segurança que servem o regime de Putin” e igualmente “demonstrar aos povos da Rússia que é possível criar focos de resistência com êxito e lutar contra” o Presidente russo.

Para Kiev, as intenções das milícias privadas acabaram por ser vantajosas, já que implicam uma “zona desmilitarizada” e a implementação de um grupo de opositores a Vladimir Putin, o principal impulsionador do conflito, que pode servir para aglutinar as vozes críticas do líder russo.

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As milícias privadas anti-Putin que estiveram na origem dos ataques

NurPhoto via Getty Images

As vantagens não se ficam apenas no plano teórico. Militarmente, e na lógica da contraofensiva, os ataques na Rússia beneficiam a atuação das tropas leais a Volodymyr Zelensky. “Os ucranianos estão a tentar forçar que os russos se desloquem para direções distintas, abrindo-se fissuras” na defesa do território da Ucrânia controlado por Moscovo, explica à Al Jazeera Neil Melvin, um analista do Royal United Services Institute.

Na ótica de Neil Melvin, a Rússia responderá a estas ameaças, ao colocar na zona fronteiriça um maior número de tropas. Mesmo que não mobilize as forças que estão atualmente na Ucrânia, Moscovo terá mais um problema em mãos.”Este incidente revela a vulnerabilidade da fronteira russa, questiona a eficácia das linhas defensivas e levará, sem dúvida, à dispersão das forças russas que se veem agora obrigadas a proteger regiões que se consideravam seguras até hoje”, aclara o corresponde da BBC em Moscovo, Andrei Goryanov.

O próprio líder da Legião da Liberdade para a Rússia reconheceu que este tipo de incursões obriga o exército russo a deslocar “um grande número” de forças, destapando assim outras partes da fronteira e da frente de combate, mostrando de igual modo que “a liderança militar e política na Rússia está completamente despreparada” para lidar com este tipo de manobras.

"Este incidente revela a vulnerabilidade da fronteira russa, questiona a eficácia das linhas defensivas e levará, sem dúvida, à dispersão das forças russas que se veem agora obrigadas a proteger regiões que se consideravam seguras até hoje"
Corresponde da BBC em Moscovo, Andrei Goryanov

À Al Jazeera, Patrick Bury, professor de Relações Internacionais na Universidade de Bath, resume o que a seu ver são os objetivos das milícias paramilitares anti-regime. “Fazer com que o máximo possível de forças russas permaneçam na fronteira; mostrar aos russos por via dos meios de comunicação sociais que a guerra realmente chegou à Rússia, mesmo que em pequena escala; envergonhar Putin.”

A ideia de que a Rússia também pode vir a ser atacada — o que poderá aumentar a contestação interna em relação ao conflito na Ucrânia — serve os objetivos das duas milícias paramilitares. Os habitantes de Belgorod relatam mesmo uma “situação terrível” ao jornal independente Moscow Times. “Os civis estavam a correr à pressa de uma explosão”, contou Yevgeny, um residente, que salientou que “alguns amigos ficaram feridos”.

“As pessoas ficaram em choque, mas não há pânico”, assegurou uma mulher que preferiu não divulgar a identidade ao Moscow Times. “Ninguém está a abandonar Belgorod. Eu penso que todos decidiram esperar para ver”, acrescentou, admitindo, no entanto, que “aqueles que apoiaram a guerra se sentiram abandonados” pelas Forças Armadas russas.

A versão russa? Manobra de propaganda para esquecer perda de Bakhmut

Face à incursão, o Ministério da Defesa russo garantiu ter repelido o ataque e prometeu “uma resposta extremamente forte” se episódios do género ocorrerem no futuro. Por sua vez, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, enfatizou que a incursão é “motivo de grande preocupação”, demonstrando “mais uma vez que os combatentes ucranianos” continuam com “atividades” contra a Rússia. “Isso exige mais esforços da nossa parte”, destacou, não tendo mencionado que tipo de medidas é que poderiam ser aplicadas no futuro.

Repetindo a narrativa de Vladimir Putin de que a Rússia não começou uma guerra e que se limitou a responder à ameaça que representava a Ucrânia, Dmitry Peskov disse que a incursão é mais uma prova da necessidade da “operação militar especial”: é para que este tipo de acontecimentos “não se volte a repetir”, reforçou.

Além disso, o porta-voz da presidência russa acusou a Ucrânia de incentivar e planear uma “manobra de diversão” com o objetivo de “desviar as atenções” da perda de Bakhmut.“É para minimizar o efeito político da perda da cidade para o lado ucraniano”, justificou Dmitry Peskov, ainda que esta versão seja desmentida por Kiev, que tem reiterado que os combates ainda continuam na localidade.

"É para minimizar o efeito político da perda da cidade para o lado ucraniano"
Porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov sobre a perda de Bakhmut

Certo é que os combatentes do grupo de mercenários Wagner começaram a sair de Bakhmut esta quinta-feira, após terem defendido a cidade durante meses. Dentro de poucos dias, a cidade será defendida integralmente pelas Forças Armadas Russas.

Mesmo que o porta-voz do Kremlin possa ter razão e a Ucrânia tenha querido apagar a perda de Bakhmut do mapa mediático, o facto é que a Rússia enfrenta uma nova ameaça no seu território. Apesar de se repetirem ataques em solo russo desde fevereiro de 2022, como o Observador compilou, há agora duas milícias que prometem fazer frente ao governo russo — e são apoiadas por Kiev. A maneira como os grupos paramilitares vão desestabilizar a liderança de Vladimir Putin ainda não é clara, mas a guerra parece entrado num novo capítulo — e desta vez em solo russo.

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