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Acabou tão repentinamente como começou. A insurreição levada a cabo pelo grupo Wagner, instigada pelo líder da organização, Yevgeny Prigozhin, que visava remover as chefias do Ministério da Defesa russo (e, ainda que não fosse um objetivo declarado, colocou em causa a autoridade do próprio Vladimir Putin), ameaçou tornar-se um evento decisivo na guerra da Ucrânia e até mesmo na geopolítica mundial.
Em vez disso, menos de 24 horas depois de ter tido início, a “marcha pela justiça” do grupo mercenário terminou num recuo – e, soube-se pouco depois, numa negociação.
Confrontados com a realidade de um golpe militar para o qual não estavam preparados e que, na verdade, não desejavam, Prigozhin e os seus homens negociaram com o Kremlin uma saída do dilema que, ao que tudo indica, passará por um perdão a todas as acusações criminais e a possibilidade de os soldados da Wagner escolherem entre a integração no exército russo ou uma recolocação para a Bielorrússia, onde Prigozhin está, desde há alguns dias, radicado.
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Deste modo, o “grito de guerra” do líder mercenário acabou por não passar de um “susto” momentâneo ao regime de poder na Rússia mas que poderá levar a consequências a longo prazo.
Para deter a revolta do grupo Wagner, foi necessária uma negociação complexa, que envolveu vários intervenientes e procurou satisfazer interesses diferentes.
As primeiras horas do braço de ferro
Sabe-se hoje que Prigozhin e vários dos principais representantes do regime estiveram em contacto praticamente desde o começo da insurreição, na sexta-feira. De acordo com o site de notícias russo independente Meduza, que cita fontes próximas do Kremlin, as autoridades russas tentaram uma primeira negociação com Prigozhin logo na sexta-feira à noite. Esta primeira abordagem não foi bem sucedida.
“A liderança militar, funcionários da administração presidencial, a liderança da Guarda Nacional e oficiais próximos tentaram comunicar com ele [Prigozhin]” diz uma fonte russa, que ilustra o quão precária era a posição do chefe da organização:
As exigências eram vagas e estranhas: remover Shoigu, não se envolverem nos assuntos da Wagner, mais financiamento… mas, depois destas ações, não haveria lugar para Prigozhin no sistema. Ele perderia sempre, em qualquer caso”, cita o site Meduza.
Nesta altura, a expectativa dos responsáveis russos era a de uma resolução pacífica da disputa, mas do lado mercenário não houve cedências. Confrontados com a determinação de Prigozhin, o Kremlin mudou de estratégia, e começou a utilizar os meios de comunicação para atacar o líder da Wagner.
Yevgeny Prighozin e os seus mercenários passaram a ser apelidados de “criminosos” e, nas primeiras horas da manhã de sábado, o próprio Vladimir Putin veio a público pronunciar-se sobre a situação na televisão estatal, acusando o chefe mercenário de “traição” e de uma “facada nas costas”.
Em resposta, Prighozin recorreu ao seu serviço de comunicação no Telegram para dizer que o Presidente russo tinha “premido o botão da guerra civil”. Os mercenários continuavam a marchar em direção a Moscovo e tudo apontava para um desfecho sangrento.
Líder dos Wagner: sem apoios e rejeitado por Putin
Nessa mesma manhã, Prigozhin ter-se-á encontrado com o tenente-general Vladimir Alekseev – um dos homens-fortes do Ministério da Defesa russo, e uma das duas figuras militares que deram a cara publicamente na noite anterior para apelar ao fim da insurreição — a outra figura foi o general Serguei Surovikin.
Numa declaração gravada, Alekseev acusou o líder do grupo Wagner de estar a perpetrar uma “tentativa de golpe” e pediu-lhe que parasse.
No entanto, as conversas mantidas em privado eram diferentes. Durante um encontro no quartel-general de Rostov-on-Don – cidade que os Wagner tinham tomado sob controlo na noite anterior – Prigozhin tornou claras as suas intenções: marchar até Moscovo e receber “a cabeça” do ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e do Chefe do Estado-Maior russo, Alexey Gerasimov. Alekseev respondeu com um sorriso e terá dito uma simples frase: “São teus”.
A atitude do tenente-coronel russo é reveladora da autoridade (ou falta dela) exercida pelas chefias militares de Moscovo. Shoigu, em particular, remeteu-se ao silêncio total e, até agora, nunca se pronunciou sobre o incidente.
Por esta razão, há quem acredite que o ministro possa vir a ser substituído no futuro, ainda que fontes do Governo russo admitam que essas alterações possam demorar algum tempo para não dar a aparência de que o Presidente russo se subjugou às exigências de Prigozhin. “Putin quase nunca se verga perante as circunstâncias, e nunca se verga quando está sob pressão”, refere uma fonte anónima citada pelos media russos.
Em todo o caso, Prigozhin começava a perceber que a situação não jogava a seu favor. Apesar de, na noite anterior, ter garantido publicamente que tinha apoio dentro do exército e da Guarda Nacional, ninguém acorreu a seu favor: não houve deserções em massa e o exército começou a preparar-se para um confronto, colocando barreiras e checkpoints no caminho que separava o grupo Wagner de Moscovo.
É então que o líder mercenário terá tentado chegar à fala com Vladimir Putin diretamente. Prigozhin contactou os responsáveis do Kremlin várias vezes em busca de uma audiência com o Presidente, que lhe foi negada – Putin não queria falar com ele.
O desânimo gerado pela rejeição terá convencido Prigozhin de que tinha “dado um passo maior que a perna” e de que estava sozinho. De acordo com fontes ouvidas pelo thinktank britânico Royal United Services Institute (RUSI), foi esta realidade que o convenceu a negociar.
A negociação final com o “confidente” Lukashenko
Atentos à mudança de atitude, a cúpula de poder do Kremlin aceitou negociar com o líder da Wagner. Prigozhin tinha, no entanto, uma condição: qualquer diálogo tinha de incluir oficiais de topo.
Uma vez que o Presidente russo continuava a rejeitar qualquer contacto com o líder dos mercenários, o porta-voz do comité negocial passou a ser o seu homólogo bielorrusso, Alexandr Lukashenko. Lukashenko tinha viajado de Minsk para Moscovo na noite anterior a pedido de Putin para o aconselhar e acabou por assumir o protagonismo nesta fase: “Prigozhin precisava de um confidente à altura para sair de cabeça erguida”, explicou um oficial russo à Meduza. “Lukashenko atuou nesse papel”.
Publicamente, Lukashenko assumiu-se como o responsável máximo pela resolução do conflito. Esta terça-feira, numa série de declarações divulgadas pela agência de notícias estatal, a Belta, o Chefe de Estado bielorrusso contou que serviu de mediador entre Prigozhin e Putin que, diz, tinha tomado a decisão de “eliminar todos os envolvidos”. Também foi ele quem teve a “conversa difícil” com Prigozhin:
Disse-lhe, ‘Zhenya’ [diminutivo russo], ninguém te vai dar Shoigu ou Gerasimov, especialmente nesta situação. Conheces Putin tão bem como eu. Em segundo lugar, ele não se vai encontrar contigo, nem sequer quer falar contigo ao telefone sobre esta situação. (…) [Se marchares sobre Moscovo] serás esmagado como um inseto'”, terá dito Lukashenko a Prigozhin.
Sucesso a curto prazo (com mudanças no horizonte)
A linha oficial é a de que foi Lukashenko o responsável por trazer o líder do grupo Wagner “à razão”, por negociar os termos do recuo dos mercenários e por garantir a sua segurança após estes baixarem as armas. No entanto, as fontes ouvidas pelo RUSI dizem que o papel do líder bielorrusso nas negociações tem sido altamente exagerado e que o acordo foi responsabilidade de outros membros da cúpula interna do Kremlin.
Algumas das figuras chave incluem o chefe de gabinete da administração presidencial, Anton Vaino, o secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patrushev, o embaixador russo na Bielorrússia, Boris Gryzlov, e o governador russo da região de Tula (por onde a caravana dos Wagner teria de passar para chegar a Moscovo), Alexei Dyumin – um aliado próximo de Putin que, internamente, estará a ser muito elogiado e até apontado a um alto cargo no Ministério da Defesa pelo seu papel na crise.
Habituado a utilizar qualquer oportunidade para se destacar publicamente, Lukashenko terá aceitado ser a face pública da resolução do conflito, vendo neste papel um potencial impulso à sua popularidade interna e uma maneira de conquistar algum relevo nas relações bilaterais entre Minsk e Moscovo. Por outro lado, o líder bielorrusso também poderá querer conquistar um lugar à mesa nas negociações sobre a guerra da Ucrânia – um conflito no qual o seu país tem estado envolvido perifericamente e do qual Lukashenko procura há muito ganhar dividendos.
Nesse sentido, a oferta de exílio a Yevgeny Prigozhin e a aparente deslocação do grupo Wagner para território bielorrusso – um dos termos acordados entre as partes envolvidas, sendo que se destaca igualmente o arquivamento de todos os processos criminais e garantias de segurança para os revoltosos – poderá ser um ativo importante para o regime de Lukashenko, nomeadamente na construção de uma estratégia mais independente de Moscovo.
Se estas pretensões serão, ou não, bem sucedidas, só o tempo o dirá. Por agora, Prigozhin parece ter conseguido sair com vida de um conflito direto com Putin — algo que nem todos podem dizer. Já o Presidente russo garantiu a continuidade do seu regime, com o seu homólogo bielorrusso a conquistar alguma visibilidade internacional.
No entanto, o desafio de Prigozhin e dos seus mercenários expôs fissuras no regime de Moscovo que, a longo prazo, poderão colocar em causa o próprio Putin. Quem pode aproveitar é a Ucrânia, que continua a tentar reconquistas o território ocupado pelas forças russas. Por isso mesmo, Volodymyr Zelensky procurou capitalizar com este novo contexto logo no sábado, já depois do fim da insurreição: “O mundo viu que os líderes russos não mandam em nada”.