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A história, entre a culpa e o orgulho
A memória humana pode ser inacreditavelmente precisa nalgumas ocasiões e assustadoramente volátil e nebulosa noutras. O ser humano tem propensão para reescrever o passado de forma a eliminar ou esbater episódios embaraçosos e a empolar e embelezar aqueles que o mostram a uma luz mais favorável. Este impulso para distorcer a realidade em nome da auto-preservação e do auto-engrandecimento conheceu forte impulso com o advento da era da “pós-verdade” e dos “factos alternativos”. Esta nova atitude mental não significa, obviamente, que os líderes políticos e governantes começaram agora a mentir ou a “proferir inverdades” – prática com ininterrupta tradição desde a primeira vez em que o cabecilha de um bando de trogloditas prometeu à tribo mamutes maiores e mais tenros se o ajudassem a eliminar um rival – mas que às massas deixou de importar se os líderes que apoiam dizem ou não a verdade; ou seja, com o facto de, na era do acesso universal a todo o tipo de informação e de mecanismos de verificação de factos, as massas terem, escolhido ouvir apenas aquilo que confirma os seus preconceitos (o que pode ser visto como uma reacção obtusa e preguiçosa à sobrecarga de informação do nosso tempo).
Assim, um simpatizante do Front National poderá escolher acreditar que Jean-Marie Le Pen estava certo quando disse que as câmaras de gás foram um “detalhe da História” da II Guerra Mundial. Le Pen fez esta afirmação pela primeira vez em 1987 e desde então já foi condenado em tribunal seis vezes por a ter feito, a última das quais em Abril de 2016. E a sucessão de condenações poderá contribuir, não para convencer o simpatizante do FN de que Le Pen fez uma afirmação falsa e malévola, mas que este está a ser perseguido pelo establishment (e, se tiver inclinação anti-semita, poderá até crer que essa perseguição é promovida pelos judeus que dominam a engrenagem do poder).
A 2 de Setembro passado tivemos mais uma demonstração do impulso da extrema-direita europeia para reescrever a história, quando Alexander Gauland, co-fundador do partido Alternative für Deutschland (AfD), proclamou que “se os britânicos podem sentir orgulho em Nelson e Churchill, também os alemães podem sentir-se orgulhosos dos feitos dos soldados alemães nas duas guerras mundiais” – e justificou que “nenhum outro povo europeu se expurgou tão completamente dos seus pecados como o alemão”.
Uma coisa é pretender julgar actos de um passado remoto à luz dos valores éticos vigentes nos nossos dias (ver Tintin no Tribunal Penal Internacional e Escravatura: Culpa, ressentimento e histórias mal contadas), outra bem diferente é querer reescrever o passado – e, para mais, um passado relativamente recente e que regurgita de episódios que só podem ser qualificados de infames, seja qual for o prisma ético que se use.
Houve certamente gente nas forças armadas britânicas que tomou decisões eticamente questionáveis durante a II Guerra Mundial (o exemplo “clássico” é o bombardeamento de Dresden em 1945), mas o rol de barbaridades cometidas pelas forças armadas alemãs não tem rival (embora as forças armadas japonesas se tenham esforçado bastante). E querer colocar no mesmo plano Churchill, que não foi um santo mas a cuja coragem e determinação nos momentos críticos o mundo deve agradecer não estarmos hoje a viver sob o Reich de Mil Anos, e os oficiais e soldados alemães que pugnaram, muitas vezes sem qualquer escrúpulo moral, para impor esse sonho malsão, é um artifício retórico fruste e malévolo.
Criaturas como Jean-Marie Le Pen e Alexander Gauland têm a ousadia de fazer estas proclamações porque sabem que a memória humana é fraca e moldável. E é por isso que nunca estarão a mais livros que reafirmem e provem cabal, objectiva e exaustivamente que as câmaras de gás não foram um detalhe da história e que há mais motivos para vergonha do que para orgulho nos feitos dos soldados alemães na última guerra mundial.
Laurence Rees: Um especialista no Abismo
Mesmo num país com um mercado livreiro lacunar, o Holocausto e as temáticas periféricas têm tido razoável cobertura. Só nos últimos três anos e considerando apenas obras de referência, há a registar KL: A história dos campos de concentração nazis, de Nikolaus Wachsmann (2015, D. Quixote), que cobre apenas os campos de trabalho, deixando de fora os de extermínio (ver Daqui só se sai pela chaminé); A verdadeira história das SS, de Robert Lewis Koehl (2016, Casa das Letras), que examina a instituição que teve o papel fulcral no Holocausto (ver SS: O diabo veste de negro), e Heinrich Himmler, de Peter Longerich (2016, D. Quixote), que retrata o homem que, com Hitler, teve maiores responsabilidades no extermínio dos judeus (ver Himmler: Um homem bom com má imprensa?).
Do historiador britânico Laurence Rees já tinha sido publicado por cá Auschwitz: Os nazis e a Solução Final (2005, D. Quixote), que funciona como complemento escrito ao documentário televisivo homónimo, em seis episódios, que Rees dirigiu para a BBC (emitido em 2005). Com base na vasta informação colhida num quarto de século de investigação aturada do nazismo e da II Guerra Mundial – da sua bibliografia, está disponível em Portugal apenas o excelente II Guerra Mundial à porta fechada: Estaline, os nazis e o Ocidente (2010, D. Quixote) – e nas muitas entrevistas que ao longo desses anos foi fazendo a testemunhas e protagonistas dos eventos (muitos deles entretanto falecidos), Rees preparou Holocausto: Uma nova história, que chega a Portugal quase em simultâneo com a edição inglesa, pela mão da Vogais e com tradução de Jorge Mourinha.
O livro não traz factos inéditos nem revelações sensacionais, mas desenha uma panorâmica geral de admirável abrangência e limpidez e deixa claro como o que começou por ser uma ideia fixa mas de contornos muito vagos se concretizou numa realidade aterradora e implacável.
As raízes do anti-semitismo
O anti-semitismo não foi um novo bacilo inoculado por Hitler na mente virginal dos alemães. O preconceito contra os judeus era antigo e não era especificamente alemão: foram muitas as cidades da Europa em que os judeus foram confinados a guetos – afinal de contas, a palavra “gueto” provém do nome dado ao bairro judeu de Veneza – e obrigados a usar marcas distintivas na roupa – Rees menciona o uso de emblemas amarelos na Roma do século XIII, mas omite que Roma poderá ter-se inspirado nos emblemas amarelos impostos pelo califa Omar II aos judeus e outros não-muçulmanos, no início do século VIII.
A religião cristã desempenhou relevante papel no anti-semitismo, impondo a imagem dos judeus como “o povo que crucificou Jesus”, o que é tão absurdo como identificar os indianos como “o povo que matou Gandhi” ou os americanos como “o povo que matou Martin Luther King”. Martin Luther (o frade agostinho, não o reverendo King) não contribuiu para a tolerância ao proclamar (vale a pena recordá-lo, neste ano em se assinalam os 500 anos da Reforma e haverá tendência para vê-lo à luz benigna usual nas efemérides) que os judeus “são meros bandidos e salteadores que não comem diariamente nenhum naco nem usam uma peça de roupa que não nos tenham roubado e surripiado através da sua maldita usura” e que deveriam ser expulsos para sempre da Alemanha.
A acusação de Lutero é muito reveladora, pois seria repetida, sob formas similares, nos séculos seguintes: as sociedades europeias interditavam aos judeus uma série de actividades e a posse de terras e empurravam-nos para a usura, que era vista como indigna de cristãos (e muçulmanos), embora necessária, e depois censuravam-nos por se dedicarem à usura.
Seja como for, a Alemanha estava longe de ser o país mais anti-semita da Europa – até porque a percentagem de judeus na população era, no início do século XX, de apenas 1%. O anti-semitismo era bem mais aceso na Europa oriental – onde algumas cidades tinham até um terço de população judaica – e em particular na Rússia, e não é por acaso que a palavra usada universalmente para designar massacres de judeus – pogrom – é russa.
“Sem Hitler, não há Holocausto”
Hitler trataria de exacerbar o anti-semitismo latente no povo alemão até níveis inimagináveis e começou a fazê-lo mal se lançou na actividade política. Num artigo de 1921 no Volkischer Beobachter, o jornal do recém-formado Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã) já espumava:
“O enfraquecimento judeu do nosso Volk tem de ser impedido, confinando os seus instigadores a campos de concentração se for necessário […] O nosso Volk deve ser purificado de todo o veneno”.
Tem sido discutido quanto deste ódio anti-semita era genuíno e quanto decorria do calculismo político: Hitler, que não tinha as massas em grande apreço – “a sua inteligência é pequena, mas o seu poder de esquecimento é enorme” (in Mein Kampf) – entendeu que seria mais fácil unir as massas se lhes desse um único inimigo para odiar. “O ‘judeu’ era a cola que mantinha unida toda a visão do mundo de Hitler” (Rees). A visão calculista é confirmada pela análise dos discursos de Hitler ao longo do tempo: em Outubro de 1930, um mês depois de o NSDAP ter conquistado o segundo lugar nas eleições alemãs, Hitler, consciente de que a maior parte dos novos votos não provinham de eleitores anti-semitas, suavizou o seu discurso, contradizendo as acusações incendiárias e as ameaças que vociferava desde 1921: “Não temos nada contra os judeus decentes; no entanto, assim que eles conspirem com o bolchevismo, olhamos para eles como inimigos”. Porém, como escreve Rees, não há que ver o anti-semitismo de Hitler como “genuíno” ou “calculista”: era ambas as coisas.
Mein Kampf, publicado em 1925, deixa claro o ódio visceral e obsessivo de Hitler aos judeus (ver Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller? e Um professor de literatura lê o Mein Kampf) e até inclui um trecho que se diria premonitório:
“Se no início da [I Guerra Mundial] 12 ou 15 mil destes corruptores hebreus do povo tivessem sido forçados a respirar gás venenoso, como aconteceu a centenas de milhares dos melhores operários alemães no campo de batalha, o sacrifício de milhões na frente não teria sido em vão. […] 12 mil canalhas eliminados a tempo poderiam ter salvo as vidas de um milhão de verdadeiros alemães”.
Porém, Rees entende que esta passagem não exprime a intenção de suprimir todos os judeus e que, apesar da linguagem violenta e das repetidas ameaças de erradicação dos judeus, Hitler não tinha logo à partida a intenção de concretizar a sua eliminação física.
Esta foi ganhando forma pouco a pouco, sem método, com hesitações, desvios e contradições, e só no Outono de 1941 se tornou inequívoca, quando “Hitler resolveu livrar-se dos judeus de uma vez por todas” (Rees) e começaram a ser construídas instalações de extermínio na Polónia. Os judeus da URSS tinham estado a ser massacrados a tiro desde Junho de 1941, mas só no Outono se concretizou a decisão de enviar para Leste todos os judeus da Alemanha, Áustria e Checoslováquia, seguida, no Verão de 1942, da decisão de matar todos os judeus do Governo-Geral (a zona ocupada da Polónia).
Mas mesmo estas decisões tinham contornos vagos:
“Se eram mortos à chegada a tiro, ou gaseados, ou mortos à fome em guetos, ou forçados a trabalhar até à morte durante um período mais longo – tudo isto eram detalhes que podiam ser resolvidos por outros. O fundamental era que uma vez expulsos, nunca mais deveriam regressar. Assim, se Hitler autorizara o envio dos judeus para Leste, para a sua morte, não ditou um método preciso de os executar, ou um calendário exacto dentro do qual o seu desaparecimento tinha de ocorrer” (Rees).
Mas do que não há dúvida é que, como afirmou Ian Kershaw, reputado biógrafo de Hitler e especialista no III Reich, “sem Hitler, não há Holocausto”.
Porque não fugiram os judeus alemães?
Uma pergunta recorrente quando se fala do Holocausto é como foi possível que os judeus alemães não tivessem percebido o risco em que incorriam com a subida de Hitler ao poder em 1933 e não tivessem abandonado o país.
Vários factores a isso conduziram: o primeiro é que, dado que o NSDAP obtivera nas eleições de Novembro de 1932 33% dos votos, o que não lhe permitiria governar sem se coligar, era bem possível que a passagem de Hitler pelo poder fosse tão efémera e inconsequente como a dos três chanceleres anteriores. Ninguém contava que Hitler tomasse de assalto o poder – o pretexto foi o incêndio do Reichstag, mas qualquer outro teria servido – eliminando os adversários políticos e suspendendo os direitos constitucionais e as liberdades. E quando as eleições de Março de 1933 continuaram a não dar ao NSDAP a maioria absoluta, Hitler conseguiu, surpreendentemente, convencer o sector conservador do parlamento a conceder-lhe poderes plenários temporários, que ele transformou em definitivos.
O outro factor é pouco abonatório para o resto do mundo e, sobretudo para as democracias liberais: os judeus não tinham para onde fugir porque ninguém os queria. E nem a intensificação da perseguição aos judeus, que os nazis nada fizeram para disfarçar, nem a agressividade crescente da política de Hitler tornou os outros países menos inflexíveis na resolução de não aceitar judeus. Essa vergonhosa atitude ficou bem patente na Conferência de Évian, que teve lugar em Évian-les-Bains, em França, em Julho de 1938 – três anos após a promulgação das infames Leis de Nuremberga, que apertavam o cerco aos judeus, e quatro meses depois da anexação da Áustria pela Alemanha.
Todos os detalhes na conferência revelam a má-fé e hipocrisia dos 32 países participantes: começou logo pelo local da conferência, que deveria ter sido Genebra, escolha que a Suíça rejeitou (se os suíços nem queriam acolher a conferência, como poderiam querer acolher judeus?). Até o nome do comité instituído pela conferência – Comité Internacional para os Refugiados – ressumava hipocrisia, fingindo que o assunto eram “refugiados” abstractos e não os judeus alemães e austríacos.
A conferência foi convocada por iniciativa do presidente americano Franklin Roosevelt, mas este não só não se dignou estar presente, como nem sequer enviou um membro do governo – o representante americano era um ex-presidente da US Steel – e não se mostrou disponível para aumentar as quotas de emigração judaica para os EUA. Foi seguido nessa atitude por todos os países, com excepção da República Dominicana, o que Rees atribui a “um golpe publicitário do ditador Rafael Trujillo”, cuja “reputação internacional estava em farrapos por ter presidido ao massacre de mais de 20.000 haitianos no ano anterior”. De qualquer modo, a pretensa disponibilidade de Trujillo não teve efeitos práticos e “apenas uma mão-cheia de judeus entrou na República Dominicana”. Quanto à possibilidade de a Palestina poder acolher refugiados judeus, a Grã-Bretanha rejeitou-a liminarmente – os britânicos já tinham dificuldade em gerir os árabes que viviam no seu protectorado e a vinda de massas de judeus só aumentaria a instabilidade.
Na verdade, ao longo da década de 1930, alguns países europeus – caso da Polónia, Hungria e Roménia – tinham mesmo vindo a promulgar legislação anti-semita e andavam a matutar na forma de expulsar os seus judeus. Como poderiam estar dispostos a aceitar os judeus dos outros? Escreve Rees que “no início de 1937, os polacos abriram conversações com os franceses sobre a possibilidade de enviar grandes números de judeus polacos para a ilha de Madagáscar”, que era então uma colónia francesa, e o governo polaco chegou a enviar um grupo de trabalho à ilha a fim de avaliar a sua capacidade para acolher judeus polacos. A ideia não teve seguimento, mas seria retomada por Hitler após a derrota da França em 1940 – num contexto completamente irrealista, uma vez que o transporte dos judeus até ao Índico não seria possível perante a oposição da marinha de guerra britânica.
É inevitável concluir que “as iniciativas anti-semitas não eram exclusivas do governo do III Reich. O desejo, na década de 1930, de outros países europeus de perseguirem e até expulsarem os seus judeus está hoje maioritariamente esquecido na consciência pública, eclipsado pela dimensão e pela ferocidade do posterior Holocausto nazi” (Rees).
Porque foi a taxa de extermínio dos judeus diferente em diferentes países?
Num raciocínio simplista, poderia pensar-se que a percentagem de judeus eliminados em cada país da Europa ocupada reflectiria a propensão desse povo para cooperar com os nazis e o maior ou menos anti-semitismo vigente nessa sociedade. Não sendo estes factores despiciendos, outros houve que foram determinantes:
“Quão fácil era deportar os judeus em termos práticos, as consequências políticas de os deportar, quão ‘racialmente’ perigosos consideravam ser estes judeus em particular, se os judeus viviam perto ou longe de linhas de caminho de ferro” (Rees).
O facto de 80% dos 70.000 judeus da Grécia terem sido mortos resultou, em grande parte, do encarniçamento alemão em liquidá-los, embora os gregos tenham sido dos povos europeus que maior resistência opôs ao ocupante alemão, cuja sociedade civil teve a coragem de protestar abertamente contra a perseguição anti-semita e cujo povo prestou, em geral, ajuda aos judeus, mesmo pondo em risco as suas vidas. Situações pontuais desfavoráveis podiam fazer a determinação alemã esmorecer ou até desvanecer-se: quando os alemães tentaram deportar os judeus na ilha de Zakynthos, ao pedido alemão de uma lista com os judeus da ilha o presidente da câmara e o bispo responderam com “uma folha de papel que tinha apenas dois nomes – os seus próprios. Enquanto isso, os judeus foram escondidos nas casas dos ilhéus não-judeus. Todos os 275 judeus sobreviveram […] Provavelmente [os alemães] terão decidido não haver judeus suficientes na ilha para justificar os recursos necessários para os encontrar”. Já em Salónica, cidade sob controlo alemão desde 1941, onde os judeus eram numerosos (no início do século XX representavam metade da população), estavam concentrados num espaço reduzido e onde existia animosidade local anti-semita, a taxa de mortalidade foi de 95%.
Na Holanda, 75% dos 140.000 judeus foram eliminados, não por os holandeses serem mais anti-semitas que os outros povos europeus (pelo contrário) mas por os alemães, logo após ocuparem o país, terem implementado um abrangente sistema de registo dos judeus, que se apoiou na eficaz e obediente máquina da administração pública holandesa, e por terem criado um Conselho Judaico para ser o único interlocutor da comunidade judaica holandesa. Quando os nazis se decidiram pelo extermínio dos judeus, tudo estava montado para que os judeus da Holanda fossem, ordeira e metodicamente, recolhidos e colocados nos comboios rumo a Leste. Rees não o menciona, mas também a geografia poderá ter jogado contra os judeus holandeses: num país tão pequeno, densamente povoado, urbanizado e “arrumadinho” não havia muitos lugares onde os judeus pudessem esconder-se.
A Dinamarca era similar à Holanda no que respeita à geografia e à ausência de anti-semitismo, mas aí apenas 5% dos judeus pereceram no Holocausto. A primeira razão foi que a Dinamarca, embora invadida quase em simultâneo com a Holanda, não teve uma ocupação intrusiva: os alemães, que viam os dinamarqueses como “parentes próximos” em termos raciais, deixaram-lhes bastante autonomia governativa e só tardiamente pensaram em deportar os judeus dinamarqueses. Quando tentaram fazê-lo, em Outubro de 1943, tudo lhes correu mal: não tinham registo de quem deviam deportar, os dinamarqueses empenharam-se em salvar os “seus” judeus como se fossem quaisquer outros cidadãos dinamarqueses e, para cúmulo, Werner Best, o plenipotenciário nazi, responsável pela supervisão da administração civil do país, tinha advertido previamente os judeus do que estava a planear-se (embora fosse um membro das SS).
E um aspecto geográfico jogou decisivamente a favor dos judeus: a Dinamarca estava separada da Suécia, país neutral e que, entretanto, manifestara disponibilidade para acolher judeus, por apenas algumas milhas de mar que a marinha alemã vigiava com pouco zelo.
Conclui Rees destes casos “que é um erro sério assumir que a quantidade de anti-semitismo pré-existente em qualquer país pode ser um guia para o nível de sofrimento judeu [às mãos dos nazis]”.
O inquietante caso francês
Porém, no caso francês, o anti-semitismo, mesclado com xenofobia, do governo ultra-conservador de Vichy parece ter desempenhado um papel crucial: “as autoridades francesas perseguiram os judeus porque escolheram fazê-lo e não por lhes ter sido pedido” (Rees). As vítimas mais desprotegidas eram os judeus estrangeiros que tinham buscado refúgio em França, que Vichy acusava de “abusarem da nossa hospitalidade [e de terem contribuído] em grande parte para a nossa derrota”.
O almirante François Darlan, que foi primeiro-ministro do governo de Vichy, dizia que “os judeus apátridas que correram para o nosso país nos últimos 15 anos não me interessam. Mas os outros, os bons velhos judeus franceses, têm direito a todas as protecções que lhes pudermos dar”. E Xavier Vallat, comissário-geral para as questões judaicas de Vichy, afirmava que “o judeu […] é, por temperamento, um estrangeiro que procura dominar e tem tendência a criar, com os seus familiares, um super-estado no interior do Estado”. O resultado foi que, enquanto apenas 10% dos judeus franceses pereceram no Holocausto, essa percentagem foi de 40% nos judeus estrangeiros.
A disponibilidade das autoridades francesas para colaborar com o Holocausto teve um momento particularmente infame quando, em Julho de 1942, os alemães começaram a mover-se para deportar os judeus franceses e Pierre Laval, então primeiro-ministro de Vichy, entregou também, de moto proprio, as crianças judias com menos de 16 anos:
“Os nazis não as tinham pedido – neste momento, pareciam nem as querer. Mas o primeiro-ministro de França, um país com uma orgulhosa história de proteger os direitos do indivíduo, tomou a iniciativa e sugeriu que os alemães levassem crianças inocentes” (Rees).
Depois da guerra, Laval tentou justificar esta “oferta” com um “acto humanitário”, mas em Novembro de 1942, quando os alemães e os seus aliados italianos ocuparam militarmente a área administrada por Vichy, “os italianos frustraram o desejo de Vichy de perseguir os judeus”, criando atritos com as autoridades francesas, o que levou Laval a queixar-se do comportamento italiano e a “pedir às autoridades alemãs o ‘apoio apropriado’ para reafirmar o controlo francês” (Rees). E em 1943, Laval declarou a um grupo de visitantes americanos que “estes judeus estrangeiros sempre tinham sido um problema em França e o governo francês estava satisfeito que uma mudança da atitude alemã tivesse dado à França uma oportunidade para se desfazer deles”.
Anti-semitismo à solta no Leste
Entretanto, a invasão alemã da URSS, em Junho de 1941, libertara outros demónios: a actuação nazi contra os judeus levou muita gente no Leste europeu a dar rédea livre ao anti-semitismo latente e a lançar-se entusiasticamente no massacre de judeus (ver Uma factura detalhada para Angela Merkel).
É disso exemplo a Lituânia, onde medrara o mito de que os judeus tinham sido extraordinariamente favorecidos durante a ocupação soviética e tinham colaborado activamente com esta, sendo mesmo os mais ferozes torturadores dos patriotas lituanos presos pelos soviéticos. Assim se explica que tivesse bastado um pequeno estímulo alemão para que muitos lituanos tenham promovido os seus próprios pogroms e tenham colaborado amplamente com os Einsatzkommandos (esquadrões de morte alemães, activos na Frente Leste e especializados na eliminação de judeus e bolcheviques). Como Rees assinala, muitos desses “entusiastas” tinham sido colaboradores do ocupante soviético e esperavam que a sua sanha na perseguição aos judeus desviasse “a atenção da sua própria cumplicidade com os soviéticos”.
Na Roménia, a perseguição aos judeus não foi levada a cabo apenas por “espontâneos”, teve o empenhamento activo do Estado romeno, chefiado pelo marechal Ion Antonescu, que, no Verão de 1941, promoveu massacres em Iași (4000-8000 mortos) e na Bessarábia e Bukovina (100.000 mortos). A ferocidade romena deixou perplexos até os alemães, com o general Von Schobert a mostrar-se “descontente com os romenos por não enterrarem os corpos dos que matavam” (Rees), e o comandante de um Einsatzkommando a criticar “os romenos por não ‘planificarem’ as suas acções contra os judeus” (Rees), embora se depreenda destas palavras que o desagrado alemão tinha menos a ver com o excesso de crueldade do que com a falta de método.
Na verdade, a actuação do conducatore romeno deixou Hitler muito agradado, como revelou em Agosto de 1941 a Goebbels:
“No que diz respeito ao problema judaico, pode declarar-se garantidamente que Antonescu está a levar a cabo políticas muito mais radicais nesta área do que fizemos até agora”.
A conferência de Wannsee
A conferência de Wannsee, realizada a 20 de Janeiro de 1942, numa luxuosa villa num aprazível subúrbio berlinense junto aos lagos com o mesmo nome, tem sido vista como um momento crucial da implementação da Solução Final. Porém, Rees entende que a conferência tem sido sobrevalorizada:
“Longe de ser a reunião mais significativa da história do Holocausto […], foi um fórum para funcionários de segunda linha discutirem modos de implementar os desejos do seu senhor. Nenhuma das figuras-chave assistiu à reunião. Nem Himmler, nem Frank [Hans Frank, jurista-chefe da administração do Governo-Geral], nem Goebbels – nem o próprio Hitler. As decisões vitais sobre o destino dos judeus tinham sido tomadas nas semanas e meses antes da conferência”.
E mesmo essas opções não tinham surgido de forma única, coerente e estruturada, mas como “uma série de decisões que se foram acumulando, uma atrás da outra, até ao ponto em que quem estava à mesa em Wannsee sentisse que o extermínio dos judeus era inevitável”.
Mas, há algo de muito relevante a reter da conferência de Wannsee:
“Os que nela participaram não eram loucos. Não eram desequilibrados. Eram todos homens bem-sucedidos, que tinham empregos duros e difíceis. A maioria tinha educação superior – dos 15 […], oito eram doutorados. Discutiram o extermínio dos judeus num ambiente elegante e convivial […] Esta reunião parece representar aquilo de que seres humanos sofisticados, elegantes e letrados são capazes. Poucos deles, talvez, conseguiriam matar pessoalmente um judeu […], mas eram capazes de aprovar entusiasticamente uma política que removia 11 milhões de pessoas do mundo. Se os seres humanos são capazes disto, de que mais serão capazes?” (Rees).
Perguntas e respostas
A questão de Rees é pertinente e está no âmago do Holocausto, cujo inesgotável e macabro fascínio consiste em ser o episódio histórico que mais põe em causa a ideia de uma essência intrinsecamente benévola da humanidade. Um dos frutos da conferência regada a conhaque na villa berlinense foi Sobibór, um campo de extermínio na Polónia ocupada, que entrou em operação em Maio de 1942.
As “unidades-caveira” das SS (SS-Totenkopfverbände) que asseguravam o funcionamento dos campos delegavam o trabalho pesado e sujo nos Sonderkommando, judeus que eram poupados temporariamente ao gaseamento e eram encarregados de conduzir as fornadas de vítimas, de lhes rapar o cabelo, introduzi-las nas câmaras de gás (monóxido de carbono, em Sobibór) e eliminar os cadáveres.
Toivi Blatt, que tinha 15 anos quando exerceu funções de Sonderkommando em Sobibór, foi um dos raros sobreviventes do quarto de milhão de judeus que entrou no campo e, quando entrevistado por Rees, deixou esta reflexão:
“As pessoas perguntavam-me ‘Que aprendeste tu?’ e penso que só tenho certeza de uma única coisa – ninguém se conhece a si próprio […] Todos nós podemos ser boas pessoas ou más pessoas consoante as situações. por vezes, quando alguém me trata com particular simpatia, dou por mim a pensar, ‘Como seria ele em Sobibór?’”.
Abre-se um livro como Holocausto: Uma nova história para encontrar resposta à pergunta “como e porquê aconteceu o Holocausto?” e o livro de Rees corresponde com uma elucidação admiravelmente clara. Mas, mais pertinente do que qualquer resposta, é a pergunta que Toivi Blatt deixa no ar e que continua a ressoar indefinidamente.