Nem mesmo nas margens do rio Narva, que separa a Estónia da Rússia, se sente qualquer sinal de que as relações diplomáticas e políticas entre estes países vizinhos chegaram a um dos níveis mais perigosos de sempre. Tanto mais que nos encontramos numa das fronteiras entre a Aliança Atlântica e a Federação da Rússia.
Em dias de calor anormal para regiões setentrionais, onde o mercúrio do termómetro vai além dos 30 graus centígrados, os veraneantes dos dois lados aproveitam as praias para se bronzear ou esconderem-se do sol debaixo das numerosas árvores frondosas. Do lado estónio do Narva, ouve-se muito mais frequentemente falar russo do que estónio, pois cerca de 96% dos seus habitantes são russófonos (a nível nacional, são cerca de 25%) — mas, nos restaurantes, cafés e lojas, os empregados atendem com a mesma amabilidade em russo e estónio.
Nos postos fronteiriços, a movimentação era muito reduzida, praticamente não se viam automóveis com matrícula russa. Isto deve-se ao facto de a Estónia ter acabado de restringir a entrada no país a cidadãos russos que tenham o visto Schengen, geralmente utilizado para fins de turismo. Habitualmente, o fluxo de ambos os lados era bem mais significativo.
Trata-se de mais uma sanção para castigar Moscovo pela invasão da Ucrânia. Enquanto que os membros da União Europeia do centro e ocidente do continente ainda discutem os prós e os contras de tal medida, os vizinhos da Rússia já a implementaram, pois consideram que é imperativo tomar todas as medidas possíveis para que a “operação militar” do ditador Vladimir Putin falhe na Ucrânia.
No Nordeste da Estónia, onde a maioria da população é russófona, nem todos são a favor das sanções, e muitos não escondem o seu apoio à invasão da Ucrânia pelas tropas russas, repetindo os argumentos da propaganda de Moscovo: “desnazificação” e “desmilitarização” da Ucrânia e “genocídio dos russófonos”, entre outros. Porém, a maioria, se não é contra a guerra, pelo menos defende que se devem evitar conflitos internos para não transformar o Nordeste do país em mais um “Donbass”.
O “teste do tanque”
Desde a reconquista da independência, em 1991, que a Estónia se tenta livrar do passado soviético, mas sem o esquecer, colocando-o nos lugares adequados. Os restos mortais dos soldados soviéticos são transladados para os numerosos cemitérios existentes por todo o país e os tanques, canhões e outros símbolos bélicos são transferidos para museus.
Kaja Kallas, primeira-ministra estónia, utilizou a invasão da Ucrânia pelas tropas russas para anunciar a remoção de todos os monumentos construídos no seu país pelo regime comunista soviético, que governou a Estónia entre 1939 e 1991.
“Os símbolos da repressão e ocupação soviética tornaram-se uma fonte de crescente tensão social no país… Nestes tempos, devemos reduzir os riscos para a ordem pública a um mínimo”, declarou ela, frisando: “Não vamos dar à Rússia a oportunidade de usar o passado para perturbar a paz”.
Um dos últimos monumentos da era comunista na Estónia — um tanque soviético T-34 — encontrava-se instalado num pedestal construído na margem do rio Narva e foi retirado no passado dia 16 de Agosto.
Até ao anúncio da sua retirada para o museu militar da cidade de Viimsi, este lugar era frequentado por idosos russófonos em datas simbólicas como o 9 de Maio, dia em que se assinala a vitória das tropas soviéticas sobre o nazismo, ou por alguns jovens para se fotografarem no dia do casamento.
Porém, após ser revelada a intenção de remover o tanque, uma parte da população de Narva manifestou o seu descontentamento face a essa medida, levando alguns a recear distúrbios graves durante a operação, tal como aconteceu em Tallinn em 2007.
Então, a Estónia tinha entre 200 a 400 monumentos da era soviética. O governo, que havia sido eleito com folga nas urnas, decidiu trasladar para um cemitério da periferia da capital os restos mortais de soldados soviéticos e a estátua conhecida como “soldado de bronze” que se encontravam no centro de Tallinn. A decisão gerou duas noites de enfrentamentos entre russófonos revoltados com a decisão e a polícia. Uma pessoa morreu, outras 150 ficaram feridas e várias lojas foram pilhadas durante os distúrbios.
Moscovo protestou na altura e também agora não perdeu a oportunidade para utilizar em relação à Estónia a mesma retórica “anti-nazi” que usa e abusa em relação à Ucrânia, na esperança de desestabilizar a situação. “Elas [autoridades estónias] estão a lutar contra a história comum, e livrando-se dos monumentos àqueles que salvaram a Europa do fascismo”, declarou Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin, no início de Agosto.
Mas o processo de desmontagem decorreu na maior das normalidades. Houve e continua a haver protestos que se resumem à deposição de flores e ao acender de velas no local onde se encontrava o pedestal.
Libertação ou substituição de uma opressão por outra?
À primeira vista, o problema da remoção de monumentos pode parecer secundário face à actual situação na Europa e no mundo, mas, na realidade, trata-se de uma questão com profundas raízes históricas. Segundo a narrativa difundida pela propaganda soviética e russa, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Exército Vermelho libertou os povos do Leste e Centro da Europa do nazismo. Porém, para os povos e países que ficaram na zona de influência soviética, tratou-se apenas da substituição da opressão nazi por um regime totalitário comunista.
No caso concreto da Estónia, a ditadura estalinista deportou dezenas de milhares de estónios para a Sibéria e importou população russófona para as minas de xisto e urânio existentes no Nordeste estónio ou grandes produções fabris noutras regiões do país. Paralelamente, realizavam-se os planos de “russificação” e de “criação da classe operária” na Estónia.
Isto deixou marcas profundas e desconfiança entre as duas comunidades. Não se pode dizer que o processo de aproximação das duas comunidades tem sido fácil, mas vai avançando. Atualmente, cerca de dois terços dos russófonos possuem passaporte estónio e apenas 6% da população do país tem um “passaporte cinzento”, ou seja, são apátridas. Na opção entre o regresso à Rússia e a continuação na Estónia, há duas razões que pesam: este último país faz parte da União Europeia, o que permite aos seus cidadãos viajar livremente pelo espaço Schengen, e a melhor qualidade de vida.
Inverno difícil, mas é para aguentar
Do ponto de vista meramente económico, a Estónia perde muito com as sanções decretadas pela UE contra Moscovo, nomeadamente no que respeita aos fornecimentos de eletricidade e de combustíveis russos. Isto vai tornar ainda mais difícil o Inverno, mas os estónios preparam-se para resistir. Já passaram por momentos semelhantes logo a seguir à desintegração da União Soviética.
Logo após a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, em Fevereiro passado, aumentou bruscamente o sentido de necessidade de preparar-se para o pior dos cenários. O receio de um ataque à Estónia pelos exércitos de Moscovo não é diminuído pelo facto de este país fazer parte da NATO desde 2004. Houve momentos na história em que a Estónia, e não só, se transformou em “moeda de troca”. Por isso, os estónios, através de cursos especiais e de programas televisivos e radiofónicos, recebem instruções sobre como actuar em caso de guerra contra o vizinho.
Daí ser também evidente a grande onda de solidariedade para com o povo da Ucrânia. A maioria dos estónios está convencida de que, se Putin conseguir os seus objetivos imperialistas no confronto com os ucranianos, o ditador russo não se ficará por aí e que a Estónia está na lista dos países a “desnazificar” pelos herdeiros de Estaline.