A praça do Martim Moniz, em Lisboa, no dia 28 de Julho, por volta das oito da manhã, estava assim como aparece na fotografia: apinhada de crentes em Alá, virados para sudeste, centrados em Meca. Para muitos portugueses, uma imagem pouco comum. Celebrava-se o “Eid-al-Fitr”, a festa que marca o fim do mês do Ramadão, um período de jejum para recarregar “baterias espirituais”.
Mamad Chagani, 60 anos, frequenta regularmente a mesquita Baitul Mukarram, na calçada Agostinho Carvalho, e fazia parte da multidão, naquele dia. “Isto és tu”, diz, ao explicar porque cumpre o tempo de jejum. Isto é a sua religião, o Islão, a sua “forma de vida”, a forma como entende o mundo. Filho de indianos emigrados em Moçambique durante o período colonial, há 40 anos que Mamad tem passaporte português, uma história não muito distante da narrativa do nascimento da Comunidade Islâmica de Lisboa, fundada em 1968.
Foi perto do final dos anos 1950 que começaram a chegar a Portugal as primeiras famílias muçulmanas, sunitas, principalmente, mas também algumas ismaelitas, provenientes de Moçambique. “Ainda antes da grande fuga [1974], do processo de africanização de Moçambique, algumas famílias de minorias étnicas que estavam a trabalhar para os colonizadores [portugueses] e que pertenciam às elites, mandavam os filhos estudar para Portugal”, contextualiza ao OBSERVADOR, Nina Clara Tiesler, especialista e autora de diversos artigos científicos sobre a comunidade muçulmana em Portugal. Quando em 1974, após o 25 de Abril, se deu a descolonização, muitas famílias que praticavam o Islão vieram em conjunto com os portugueses, maioritariamente de Moçambique e Guiné-Bissau. “A perceção [ao chegar a Portugal] é que não eram emigrantes, mas retornados”, explica Nina. Passados 46 anos da fundação da comunidade, os descendentes desta vaga de emigração ainda são os principais frequentadores das mesquitas portuguesas.
Hoje, Portugal é um ponto de fusão. Cidadãos da Indonésia, França, Marrocos, Argélia, Paquistão, Iraque, Afeganistão, Índia e Bangladesh praticam o Islão com pequenas diferenças de forma conjunta de “viver a fé”. É a opinião de Mamad e muitos especialistas. “Existe muito respeito das pessoas pela nossa religião”, explica. Para ilustrar isto, Mamad aponta para o pulso esquerdo vazio, como se ali tivesse um relógio. “O meu patrão vinha ter comigo e dizia-me que estava na hora de ir rezar”, diz, ao lembrar um trabalho anterior.
Casado com uma paquistanesa e com cinco filhos, Mamad visita regularmente Islamabad. Depois de ter passaporte português, viveu na Alemanha e na Inglaterra devido a “questões financeiras, nunca religiosas.” Mais, nem consegue distinguir o tratamento de que é alvo. Neste dia, às 16 horas, o português com raízes indianas e moçambicanas, veio rezar à mesquita Baitul Mukarram, um dos dois espaços de culto na zona do Martim Moniz. Segundo a religião muçulmana, os crentes praticantes têm de rezar cinco vezes por dia. De manhã, reza na pensão, conta Mamad. Mas, nas restantes, desloca-se até à Mesquita Central de Lisboa ou ao local de culto do Martim Moniz. “É perto e conheço muitas pessoas aqui”, diz.
À primeira vista, a mesquita é um espaço um pouco encafuado, de improviso, com nenhuma sinalização que indique a sua localização – ao todo, existem 52 mesquitas em Portugal. A porta número 13, pintada de verde, é igual a tantas outras do bairro, é banal, quando vista de fora. Logo à entrada, surgem as centenas de espaços onde se pode encaixar o calçado – é proibido entrar calçado no espaço de oração. Depois de descalços, quem se tiver esquecido do kufi, chapéu de oração usado por muitos muçulmanos, pode tirar um emprestado de um caixote de plástico. No meio dos kufis, está um intruso: um chapéu de palha, do tipo que são oferecidos nos festivais de Verão.
Uma parte da família de Mamad, que mora em Inglaterra, envia-lhe “many pounds” (muitas libras, em português), todos os meses, para o negociante estabelecer uma “loja de importação e exportação”, em Lisboa. Enquanto não abre o seu negócio optou por alugar um quarto numa pensão no Bairro Alto. Contudo, esta escolha fez com que se encontrasse com alguns “problemas” daquele espaço, que afirma a sorrir e sem julgar: “Só consigo dormir quatro ou cinco horas por noite, por causa do barulho que os jovens fazem.” Às vezes, Mamad vai à janela espreitar o que se passa na rua. Vê jovens e adultos, homens e mulheres, por vezes bêbedos, algo que não o choca, mesmo que na sua religião seja proibido o consumo de bebidas alcoólicas. “Amo Portugal, as pessoas, o clima”, diz ao olhar para o teto esburacado da mesquita, como se esperasse encontrar ali o sol, entusiasmado pela enumeração.
Cinco cidadãos da Malásia vieram de propósito até Portugal ver como é professada aqui a fé do profeta Mohamed. Para isso, estão a viver na mesquita. Circulam pelo espaço como se estivessem em casa, dormem na sala superior ao espaço de oração. Cortam tomates e preparam saladas, enquanto no primeiro piso algumas pessoas cumprem a oração da tarde.
Masum Sikder, 42 anos, lava os pés, braços e cara cuidadosamente antes de entrar na sala de oração. Esfrega cada zona três vezes, com delicadeza, conforme é norma do ritual de ablução antes de rezar, “a purificação do corpo”, explica. Este cidadão do Bangladesh, que vive há sete anos em Portugal, diz que encontrou em Portugal um país de “socialismo, que defende os direitos humanos”, quando comparado com seu. Masum não dá muita conversa, está com pressa para ir rezar, pois falhou a oração depois do almoço e agora tem de compensar.
Conversões por Skype
Um jovem de olhar escangalhado, perdido, dirige-se à secretaria da Mesquita Central de Lisboa, situada nos arredores da Praça de Espanha – o primeiro espaço de culto do Islão em Portugal, inaugurado em 1985. Por isso, não existe surpresa quando Fezan Iqbal, 29 anos, conta que veio à mesquita para “acertar a vida” e “pedir conselhos ao Imã”. Algo comum, não fosse esta a primeira vez que Fezan visita a mesquita, desde 2010, quando se mudou para Portugal. Apesar de vir de uma família com costumes tradicionais do Paquistão, que cresceu em Londres, Inglaterra, este licenciado em Direito confessa não ser um praticante assíduo do Islão. Considera-se “mais espiritual”, algo secular. Atribuir-lhe a característica de muçulmano não o define, explica.
Fezan escolheu uma má altura para investir em Portugal, quando se mudou para o Alentejo, em 2010. “Perdi perto de 200 mil libras, da minha família, porque não arranjei quem quisesse trabalhar. Investi em maquinaria, em terrenos, para o cultivo de ervas [aromáticas] com mercado em Inglaterra, mas não encontrei mão-de-obra”, conta, num sotaque de português do Brasil. Por 485 euros mensais, não encontrou quem estivesse disponível para “pôr os joelhos na terra.”
Para alguém que se considera secular, educado numa escola católica em Londres, Fezan ficou surpreso com as “cabeças fechadas” que encontrou no Alentejo, quando durante mais de quatro séculos (entre os anos 714 e 1247) existiu uma grande presença árabe, no que hoje chamamos de Portugal e Espanha – mais de 1200 palavras portuguesas têm origem árabe. Fezan interroga-se: “Eles contam [na escola] que tinham muçulmanos aqui? É que o que se vê nos jornais não é o todo do Islão. Existem extremismos em todo o mundo.”
Apaixonou-se pela comida portuguesa, de tal forma que quase se baba ao falar do marisco.
No colo, traz uma sacola de cabedal. Tira de lá de dentro um Corão, livro sagrado do Islão. Vai ser a primeira vez que o vai ler, conta. Aquele livro de lombada verde é a razão que o levou à secretaria da mesquita, naquele dia. “Livros diferentes para pessoas diferentes, mas com mensagens iguais. Bíblia, Corão? São o mesmo, não há diferença.”
Na opinião do Imã Sheik David Munir, líder religioso da Mesquita Central de Lisboa, Fezan optou pelo melhor caminho para a sua reaproximação à fé. Normalmente, conta, quem se converte ao islamismo são “pessoas que têm um fascínio” e com um “chamariz pelos princípios básicos”. Para o Imã, o Islão é “uma forma de estar na vida”. Quando se é muçulmano, vir à mesquita é mais uma formalidade. Mesmo assim, David Munir alerta para os perigos das conversões pela Internet, pessoas que procuram a que se agarrar, em situações críticas da sua vida pessoal.
Isto porque, por “quatro ou cinco” vezes o Imã já se deparou com conversões ao islamismo por Skype, “conversões radicais”, que levam à letra cada palavra do Corão. Apreendem o Islão segundo interpretações de países mais restritos, lineares nas palavras que leem. Estes convertidos depois “não se conseguem adaptar à forma de ser muçulmano em Portugal”, explica David Munir. (Note-se que não estamos a falar de conversões para núcleos jihadistas com ligações terroristas, responsáveis por conflitos no Médio Oriente, mas de conversões ao islamismo segundo parâmetros menos seculares.) Nestes casos de que o Imã fala, as pessoas mudaram-se para países islâmicos, de forma a vivenciar a sua fé na interpretação que querem. “ Nós, aqui na mesquita, costumamos dizer que primeiro ensinamos a nadar e depois levamo-los ao mar”, explica.
Em 30 anos, desde que está em Portugal, “tudo mudou”. As pessoas passaram a ter mais acesso a informação sobre o que é a comunidade islâmica. Todos os anos, muitos professores trazem os seus alunos numa visita de estudo à Mesquita Central de Lisboa. “Há professores que nos visitam há 25 anos”, afirma.
Mas convidados mais reputados também passam por ali. “O Cavaco Silva veio cá como primeiro-ministro e depois presidente, o Mário Soares, o Guterres, o Sócrates…”, vai enumerando David Munir, enquanto aponta para umas placas no átrio interior da mesquita que sinalizam a visita. “O Durão [Barroso] não sei se chegou a vir, mas esse ficou cá tão pouco tempo.”
A comunidade está a encolher
Faltam duas horas para a próxima oração, na mesquita central de Lisboa, mas já existem pessoas à espera. Ajarz Lihram, 62 anos, deambula no interior do átrio da mesquita. Veste uma túnica branca, tem um kufi a condizer e calça chinelos. Vindo do Paquistão, em 2001, Ajarz diz adorar Portugal, mas a razão que o trouxe para esta geografia é comum: “O que é que os portugueses vão fazer para o Canadá ou Suíça?”, pergunta, não dando tempo para responder. “À procura de dinheiro, então. É igual para todos”, diz.
Segundo a especialista na comunidade Muçulmana, Nina Clara Tiesler, foi a partir do momento que Portugal juntou-se à União Europeia que surgiram os primeiros fluxos migratórios “sem laços coloniais”. De acordo com dados Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de 2011, existiam 12, 479 cidadãos do Bangladesh, Paquistão, Marrocos, Senegal e Índia, a viver em Portugal, um número inferior aos 13,537, em 2009. De acordo com Nina Tiesler e o Imã Sheik David Munir, existe uma tendência para esta população continuar a diminuir e a razão principal é a mesma que afeta toda a população: a economia em crise. “Nota-se que muitas famílias que nós conhecíamos saíram do país”, diz o Imã.
Azibiel Diallo, 22 anos, está deitado num banco dos “balneários” da mesquita a jogar FIFA 2014 no telemóvel. Tinha combinado com um amigo encontrarem-se às 10 horas na mesquita, mas ele não apareceu. Então, decidiu ficar à espera da oração das 14 horas. Este jovem da Guiné-Conacri, veio em 2012 estudar para Portugal, ao mesmo tempo que os pais abriram um negócio. Foi fácil a integração? “ Na escola [Secundária de Camões], no final do dia, cada um vai fazer as suas coisas. E como eu não falo muito bem português, é mais fácil conviver com os meus amigos da comunidade muçulmana”, explica. Na Guiné-Conacri, o país de origem de Azibiel, no final do dia costumava ir com os amigos para a praia ver o oceano Atlântico. Em Portugal, ainda mantém este hábito de ver o mar ou o rio, mas sozinho. Percorre os Restauradores, a Rua Augusta, vai até ao Cais do Sodré e senta-se a ver a água. É verão, mas Azibiel veste uma camisola branca de manga comprida e gola alta.
Durante o mês de Ramadão, regressou à Guiné-Conacri, juntamente com a sua família. “É mais fácil cumprir lá. Aqui os dias são muito longos e quentes”, explica. Cerca de 95% da população da Guiné-Conacri é muçulmana, lembra.
Azibiel, naquele dia, vinha rezar pelo seu futuro e pelos pais. Está a tentar arranjar papéis junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para ir estudar para a “França ou Bélgica”, porque domina muito melhor o francês que o português. Também pensa nos pais, que ainda não regressaram da Guiné-Conacri, depois do Ramadão, numa altura em que o país enfrenta um surto do vírus do ébola. Ainda assim, Azibiel diz não estar preocupado. A distância da capital, local onde estão os pais, à zona onde estão a ser detetados o maior número de casos do surto, é “longe como Faro”, explica.
Para concluir e sem ser questionado, Azibiel, que durante a entrevista mostrou-se muito tranquilo, achou que devia dizer: “Os muçulmanos não são todos como aparecem na televisão. Com o que se passa no Iraque, Afeganistão e Síria, ficam a pensar mal de nós. Que visitem a mesquita e venham ver.”.
Quando a religião voltou a ser falada
De acordo com a especialista Nina Clara Tiesler, a religião não era um tema até à queda do muro de Berlim, em 1989. “Existia até a ideia que a religião estava quase morta. Todos os estados no norte de África eram seculares”, afirma. Ao mesmo tempo, ocorreu a revolução no Irão, o que trouxe a religião para o topo da agenda política. Ao contrário do que se possa pensar, o conceito de fundamentalismo religioso, não surgiu em países do Médio Oriente, mas nos Estados Unidos da América e na Itália, conta a especialista. Foi com o governo de Ronald Reagan, entre 1981 e 1989, que “surgiram os primeiros movimentos de direita religiosa”.
Com uma série de conflitos a eclodir ao mesmo tempo no final dos anos 80, “ninguém tinha a capacidade de conceptualizar o mundo”, perceber o que era responsável por todos problemas. Então, incorreu-se no erro de generalizar. O incidente de ontem é catalogável no dia seguinte. Nina Clara Tiesler afirma que parte da culpa cabe aos meios de comunicação: “A consciência do quotidiano não gosta de preocupar com problemas complexos.”
Mas Portugal sempre foi um cenário à parte. Para ilustrar o grau de moderação e integração da comunidade islâmica portuguesa, a especialista lembra que as mulheres cá quase não usam o véu, um dos temas que gera mais controvérsia ao nível europeu. Segundo o Corão, uma mulher muçulmana deve ser modesta, uma das justificações utilizadas para a implementação do véu. O que não quer dizer que “andem de minissaias ou umbigo à mostra”, explica a investigadora.
De acordo com um estudo comparativo de 2007, entre jovens portugueses, muçulmanos e não muçulmanos, demonstrou que o orgulho de serem portugueses é praticamente igual, com valores muito próximos dos 90%. O estudo abrangeu cerca de 250 pessoas, entre estudantes do ensino superior e filhos de muçulmanos, radicados há décadas no país. O estudo afirma que 89% dos jovens muçulmanos inquiridos “sentem-se em casa em Portugal” – entre os jovens portugueses não muçulmanos, o resultado foi de 88%. “Ser um bom muçulmano em Portugal, é também ser um bom português”, afirma Nina.
Abdool Vakil, o primeiro presidente e fundador da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), foi diretor da ANOP (atualmente designada por agência Lusa), presidente do BPN, entre fevereiro e junho de 2008, e membro do Partido Social Democrata (PSD), após o 25 de Abril. Devido ao cargo que Abdool desempenhou, a especialista explica que “quando o Islão tornou-se um tema em todo o mundo, eles conseguiram conter” qualquer radicalização ou má interpretação sobre a comunidade muçulmana em Portugal. Outro exemplo é o atual presidente da CIL, que foi colega de faculdade de Cavaco Silva.
Uma família de fusão
A família de Hayder Al-Khodairi, vice-presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa(CIL), é uma miscelânea. Há 25 anos, este iraquiano, que já antes tinha vivido no Líbano e em Inglaterra, mudou-se para terras lusas. Em 2003, casou com uma portuguesa católica, mas que acabou por converter-se ao Islão. “Na religião, todos nós acreditamos que há um só Deus, por isso ele tem de ser o mesmo”, diz ao OBSERVADOR.
Deste casamento, já nasceram duas crianças portuguesas: uma com nove e outra de quatro anos. Para Hayder, educar duas crianças num país católico – onde, por exemplo, se come carne de porco e se vende álcool livremente-, não é um problema. “Quando [os filhos] vão a festas de aniversário dos amigos, só lhes chamo à atenção para terem atenção a não comerem nenhuma carne de porco”, explica. Na escola, quando é a ementa do almoço inclui carne de porco, os filhos de Hayder levam comida de casa. O consumo de álcool e as saídas à noite são temas para o futuro.
Em Palmela, existe um Colégio Muçulmano, mas não foi aí que Hayder optou por os filhos a estudar. Os filhos do vice-presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa estudam na escola católica dos Salesianos do Estoril. Quando decidiu por esta escola, foi falar com o padre e disse-lhe “que era muçulmano e os filhos também”, o que não representou qualquer problema para o padre.
Os filhos estranharam a escola católica?“De manhã, têm uma coisa chamada de ‘bom dia’…”, lembra. Certa vez, os filhos contaram ao pai que as outras crianças tinham de repetir uma “coisa de Avé Maria, mãe de Deus…”, de manhã. “Maria a mãe de Deus? Não, não. Eles estão enganados. Maria é a mãe de Jesus”, corrigiu os filhos.