Começaram em setembro e decorrem até ao início de dezembro os concursos internacionais para a direção dos museus e monumentos nacionais, longe de serem uma iniciativa regular e estimada, perfeitamente integrada na vida administrativa e científica que envolve o normal funcionamento da museologia nacional. Estes concursos, que elegem candidatos para mandatos de três anos, iniciaram o seu percurso na história dos museus portugueses com o primeiro governo de António Costa, há três anos, era Graça Fonseca ministra da Cultura tutelar, e repetem-se agora com a coordenação da recém-criada entidade pública empresarial, em janeiro de 2024, a Museus e Monumentos de Portugal, presidida desde maio por Alexandre Nobre Pais, que sucede no cargo a Pedro Sobrado.
A novidade desta iniciativa reveste-se este ano de quadro de jurados composto também por membros de origem internacional. De resto, a sua génese é a mesma: encontrar um diretor capaz de apresentar e pôr em prática um programa por ele definido e, ao mesmo tempo, gerir uma estrutura dependente da administração central. Ao cargo é oferecida a quantia remuneratória de 4170,28 euros ilíquidos, acrescidos de subsídio de refeição, ajudas de custo e de transporte. Ao fim de três anos, volta o diretor à estaca zero, que é como quem diz, a conceber novo programa e a concedê-lo a novo júri para apreciação.
“A desmotivação é total na comunidade científica”, diz Adelaide Ginga, atual diretora do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, uma entidade privada a abrir portas em Lisboa, e ex-curadora do Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado (MNAC). “Só consigo vislumbrar algum entusiasmo em quem não conhece a realidade dos museus do Estado. Quem lá trabalha ou trabalhou sabe que terá um pesadelo pela frente”, afirma a historiadora de Arte.
Adelaide Ginga reforça: “O peso da contratação pública e a burocracia aliadas a vencimentos baixos e a uma falta de autonomia muito grande, onde não existe delegação de competências, torna a vida dos diretores muito limitada. Estão extremamente dependentes e condicionados para poderem gerir um museu e ter iniciativa”, explica. A antiga curadora da equipa do MNAC defende que é preciso mais tempo para dirigir um museu, fala de uma consciência alargada dos problemas e alerta para uma “letargia instalada”, “onde muito poucos reivindicam o que quer que seja porque sabem que se houver um confronto com a tutela não serão reconduzidos”.
David Santos, também ele antigo diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea/Chiado, completa o raciocínio de Adelaide Ginga: “Não vejo nenhum entusiasmo em relação a estes concursos. As direções dos museus nacionais constituem fraca promoção do ponto de vista profissional. Os vencimentos que estes cargos têm não se coadunam com as responsabilidades que compreendem”.
De resto, as condições de trabalho das direções dos museus não são desconhecidas no meio. Antes pelo contrário. João Neto, presidente da APOM – Associação Portuguesa de Museologia e diretor do Museu da Farmácia (gerido pela Associação Nacional de Farmácias), enumera-as: “Complicações do foro administrativo e da contratação pública, burocracia, vencimentos muito pouco aliciantes, pouca autonomia, enormes limitações financeiras e uma duração de mandato muito reduzida”.
O período de três anos a que cada diretor deve submeter-se a novo concurso é contestado por toda a comunidade, apesar da MMP dizer que “é coerente com os demais mandatos para cargos dirigentes do mesmo nível da Administração Pública”. “É impossível conhecer a coleção do museu e programar nesse tempo. Cinco anos deveria ser o período ideal para cada mandato, sendo que poderiam existir avaliações regulares, por uma questão de segurança. A tutela deveria, por princípio, criar condições para que o diretor exerça aquilo que propõe”, acredita João Neto, também ele membro do júri destes concursos.
“Olhe-se para os grandes museus internacionais e veja-se o período de vigência de cada direção. Não é possível trabalhar seriamente para o perfil de um museu em menos de cinco anos”, adverte Pedro Lapa, antigo diretor do Museu Berardo. “Este calendário de três anos é muito apertado. Sou favorável a um mandato de cinco anos para os diretores dos museus. Não é possível menos tempo se quisermos que o diretor assuma uma perspetiva e crie uma assinatura”, garante David Santos, atual diretor do Museu do Neo-Realismo, um equipamento da autarquia de Vila Franca de Xira. “Isto porque primeiro é sempre preciso dar cumprimento a alguma herança, nomeadamente no que respeita a programação recebida”, explica também aquele que foi diretor do MNAC entre 2013 e 2015. “Além disso, todos conhecemos a morosidade dos processos no Estado central, sabemos que as equipas dos museus não são renovadas há décadas, enfim, um rol de problemas de fácil identificação mas de difícil resolução”, acrescenta David Santos.
O presidente da APOM lembra que o número de candidatos nestes concursos não é muito significativo e que é bem mais reduzido quando comparado com o número de candidatos que aparecem sempre que abre uma vaga na direção de um dos museus da EGEAC, por exemplo. João Neto considera que há muito trabalho a fazer e reivindica que seja fornecida “mais informação útil e atual ao júri internacional e àqueles elementos que vêm das universidades e não conhecem a realidade nem sabem bem todos os pormenores que constituem a problemática de cada museu”.
O mesmo responsável recomenda que os júris sejam “preparados e formados com maior antecedência, recorrendo a sessões expressas para explicar quais os desafios e qual a situação de cada museu, bem como sobre o que pode ser importante para cada instituição”. De resto, afirma, foi a conselho da APOM que, nesta edição dos concursos, a MMP distribui pela primeira vez um “kit de informação, género ‘com que linhas te podes coser’, ao candidato à direção do museu sobre o perfil, a situação e a equipa da entidade a que concorre”.
Recorde-se que os anteriores concursos para a direção dos museus nacionais não incluíram jurados estrangeiros. À época, o Ministério da Cultura acolheu apenas a determinação geral ou aconselhamento proveniente da União Europeia para a aceitação de candidatos internacionais.
Ao que o Observador apurou, os concorrentes são maioritariamente portugueses, não existindo grande interesse junto da comunidade europeia, sendo o Brasil e a América Latina as regiões de origem dos que estão a concorrer ao lugar vindos de fora. “Para os curadores oriundos desses locais, Portugal ainda significa um upgrade, mas isso não acontece com mais ninguém”, afiança David Santos. João Neto esclarece ainda que a maioria dos diretores atuais se recandidatou. Já a MMP remete para dezembro e para o final da última fase dos concursos o balanço das candidaturas nomeadamente em termos de números registados. Sandra Leandro, atual diretora do Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora, que agora se recandidata ao cargo, tem, mesmo assim, “a perceção de que as candidaturas estão a ser estimuladas por vários institutos” e que é “entre os investigadores da área da museologia” que o interesse pode existir.
Sandra explica que “quando concorremos a primeira vez não fazemos ideia da real circunstância dos museus. É muito complicado conseguir montar as peças todas que encontramos desmontadas”. A historiadora acredita que este trabalho tem de ser de continuidade e promete não parar. Por seu turno, investiu tudo o que pôde na valorização do seu currículo através da experiência que alcançou num primeiro mandato no Museu de Évora e “espera” que dessa forma o júri a valorize, até porque, nos últimos três anos bateu-se “por mais financiamento e por mais recursos humanos e fui ouvida”.
Num registo bem diferente, Pedro Lapa, historiador de arte que exerceu funções de diretor do MNAC e também do Museu Berardo, sublinha um outro problema transversal e lapidar no panorama destes concursos. “Não há uma especificação de competências, elas devem ir em que sentido? Procuram-se diretores científicos ou diretores administrativos? Os sentidos são diversos e o que sabemos é que lhes vai ser pedido até que sejam guardas do museu ou que façam a comunicação. Este modelo não é atrativo para ninguém. Tem que ser um trabalhador com a dimensão do gestor e não cientificamente motivado. Habituado a uma gestão apertada na administração pública e não com competência científica para organizar um museu. Está a aplicar-se uma lógica obsoleta de meados do século XX em que o diretor tem que ter todas as qualidades e capacidades para dirigir museus que hoje funcionam de forma diferente. Essa é uma lógica pesada, inoperante e ineficaz”.
O historiador não se coíbe em falar de uma situação “vergonhosa” em que o Estado deve ser responsabilizado. “Isto tornou-se uma brincadeira de mau gosto. O Estado tem que decidir se dá meios aos museus para funcionarem condignamente ou se os fecha.” A questão prende-se ainda “com a degradação física das instalações em muitos casos muito avançada, o que torna esta situação verdadeiramente penosa”, critica Pedro Lapa.
De facto, quando a MMP foi criada, e falamos de há um ano, a necessidade da sua existência prendia-se com a premência de uma descentralização e de uma flexibilização que tornasse viável a tão desejada e falada autonomia dos museus. Mas essa autonomia não se vislumbra ainda. “Não se compreende o que se passa. A MMP foi criada para responder à excessiva concentração de poderes que a DGPC levava a cabo dentro da lógica da Administração Pública. Uma concentração que se tinha revelado incomportável, arrastando os museus para o estado de degradação em que se encontram. Tornou-se penoso assistir a tudo isto. E, espanto total, a nova MMP não assume o seu desígnio e, ao contrário do que era suposto e ao contrário daquilo para que foi criada, continua a concentrar, concentrar, concentrar. Onde ficou a agilização e a flexibilização que anunciou?”
David Santos, que exerceu funções de subdiretor na Direção-Geral do Património Cultural até 2020, a administração central da qual dependeram os museus, fala de “uma autonomia não só de gestão mas também de orçamento” e diz que “só assim, como acontece nas fundações assumidas por gestões próprias com uma relação entre privados, patrocinadores e mecenas, os diretores podem ser responsáveis por aquilo que apresentam. De outra forma, será sempre impossível a quem avocar uma direção alcançar qualquer tipo de patamar de risco/programação”.
Mas, às perguntas e inquietações que se amontoam, a MMP responde assim e em versão oficial: “Entre as competências da Museus e Monumentos de Portugal enquanto entidade pública empresarial conta-se a introdução de práticas de gestão que agilizem o cumprimento da missão dos Museus, Monumentos e Palácios, conferindo-lhes maior autonomia funcional, possibilitando a renovação das equipas, a eficiente gestão dos recursos e do respetivo património, bem como a valorização do seu elevado potencial cultural, educativo, científico e turístico. O objetivo é garantir, por um lado, a sua progressiva autonomia administrativa e financeira, constituindo-os como centro de custos, assim como a autonomia programática e funcional, através de orçamentos próprios para programação e para as áreas que suportam a atividade, onde se incluem os recursos humanos, as infraestruturas, a tecnologia, as coleções e a comunicação.”