Podia ser um anúncio normal, mas na indústria fala-se numa separação de águas e num momento que pode ser decisivo para o mundo das critpomoedas. A PayPal anunciou o lançamento da sua própria moeda virtual, uma stablecoin indexada ao dólar. Uma stablecoin é, como o nome indica, uma moeda que pretende maior estabilidade pela sua ligação a um ativo físico. No caso da moeda virtual da PayPal (PTUSD) a associação é ao dólar. A paridade é conseguida através de um sistema que se autoajusta para manter o valor de 1 para 1.
Já antes um outro gigante tecnológico, o Facebook (agora Meta), tinta tentado entrar onde nenhuma empresa “física” tinha conseguido. Há quatro anos anunciou o lançamento da Libra, a sua moeda virtual que pretendia que fosse global. 18 de junho de 2019. O Facebook (ainda assim se chamava) comunicava: “Chega em 2020: Calibra”. Não chegou. Logo em 2019 os reguladores começaram a enviar sinais de preocupação. Ainda mudou de nome. Passou em dezembro de 2020 a designar-se Diem, mas não viu a luz do dia. Em janeiro de 2022 foi vendida ao Silvergate, que já este ano seria um dos bancos norte-americanos a cair.
“Apesar do feedback substantivamente positivo no desenho da rede, nunca ficou totalmente claro, do nosso diálogo com os reguladores federais, que o projeto poderia avançar. Como resultado, o melhor caminho a seguir seria vender os ativos do grupo Diem, como acabámos por fazer hoje ao Silvergate”, explicou, então, em comunicado, o que tinha sido o projeto do Facebook para as criptomoedas.
O ciclo encerrou-se. Mas agora volta a ser aberto pela PayPal.
“Hoje [7 de agosto de 2023] estamos a revelar a nova stablecoin, PayPal USD (PYUSD). Foi concebida para pagamentos e está sustentada por ativos com liquidez e seguros [A moeda da PayPal está garantida por ativos físicos, como dólar, bilhetes do tesouro norte-americano e outros instrumentos financeiros]. A começar hoje e com desenvolvimento nas próximas semanas, ficaremos aptos a vender, comprar, manter e transferir PYUSD”, anunciava a PayPal.
Today, we’re unveiling a new stablecoin, PayPal USD (PYUSD). It’s designed for payments and is backed by highly liquid and secure assets. Starting today and rolling out in the next few weeks, you’ll be able to buy, sell, hold and transfer PYUSD. Learn more https://t.co/53RRBhmNHx pic.twitter.com/53ur2KmjU7
— PayPal (@PayPal) August 7, 2023
E isto pode mudar tudo. Austin Campbell, fundador e diretor geral da Zero Knowledge Consulting, também professor na Columbia Business School, explica na CoinDesk, um site especializado em criptomoedas, porque considera que este é um momento de separação das águas. “Até agora, a maioria dos protagonistas de criptomoedas eram apenas isso: estavam nas criptos”. As maiores companhias a operar na indústria eram emitentes de criptomoedas ou plataformas de negociação (exchanges). E tudo na indústria girava sobre si mesma. “Tenho chamado a este fenómeno o mau hábito de construir ‘mais cripto para as cripto’, mas até este momento foi o que definiu o crescimento e a evolução da indústria”.
“Isso mudou esta semana”. O artigo de opinião foi publicado a 9 de agosto, dois dias depois do anúncio da PayPal que, nas palavras de Austin Campbell, “cravou uma bandeira dizendo que a tecnologia de blockchain é suficientemente importante para que pretendam estar anos a construir um produto para fazer evoluir o seu modelo de negócio”.
A moeda da PayPal, segundo o comunicado feito pela empresa norte-americana, é emitida pela Paxos Trust. Austin Campbell já esteve ligado à Paxos.
O que pode fazer à indústria?
“É um passo extremamente positivo para o mercado”, considera Tiago Emanuel Pratas, analista e corretor de criptomoedas, sendo corroborado por Hugo Volz Oliveira, secretário e membro fundador do Instituto New Economy. Este lançamento da PayPal, diz ao Observador, “terá sem dúvida um enorme impacto a nível de adoção” das criptos.
Lembra que em outubro de 2020 a PayPal tinha sido responsável por “introduzir os seus clientes a um conjunto de criptoativos (de momento gere a custódia de cerca de mil milhões de dólares de criptoativos dos seus clientes), o que se refletiu bastante nos preços na altura, e agora pode fazer o mesmo para o ecossistema DeFi [finanças descentralizadas]”.
Nos dias a seguir ao anúncio da PayPal a capitalização nas criptos escalou um pouco. Mas Hugo Volz Oliveira explica que existe durante o verão “uma apatia generalizada nos mercados e em particular durante o bear market [momento de baixa do mercado]” que se vive nesta indústria e que, por isso, “poderá diferir este impacto” do efeito PayPal. A própria empresa mais conhecida como plataforma de pagamentos viu as suas ações subirem pouco menos de 3% no dia 7 de agosto. O mercado de cripto tem, atualmente, uma capitalização de cerca de 1,17 biliões de dólares.
“A PayPal é a primeira grande fintech a anunciar o lançamento da sua stablecoin“, reforça Maxim Manturov, diretor de análise de investimentos da Freedom Finance Europe, recordando que apesar da Meta, já anteriormente, ter tentado a intenção da PayPal “pode trazer um impacto mais profundo ao mercado de cripto no longo prazo”. Tal depende, acrescenta em declarações ao Observador, “se a stablecoin consegue adaptar-se às condições do mercado antes de se tornar o líder entre os emissores privados de criptomoedas estáveis, já que a posição dominante ainda é ocupada pela stablecoin tether USDT”. De acordo com a Bloomberg, a tether representa 67,2% do mercado de stablecoins que, pela CoinGecko, tem um valor total em circulação de 126 mil milhões de dólares.
Hugo Volz Oliveira repara na diferença entre as duas propostas: “A pretensão do Facebook era criar uma moeda global e na PayPal temos um foco no dólar”, dando como possível explicação o facto de a Comissão Europeia ter desenvolvimento o regulamento MiCA de “forma a dificultar o trabalho do Facebook ter uma moeda global que pudesse afetar o euro” e, assim, “os novos projetos de stablecoin perceberam que se quiserem ter foco global têm de criar várias stablecoins para as várias moedas globais, em vez de tentar criar uma moeda que as torne redundantes”.
Uma moeda virtual de um sistema de pagamentos assente numa plataforma de bockchain
Tiago Emanuel Pratas salienta outro aspeto deste anúncio. “A PayPal criou uma stablecoin não tendo por base o SIBS ou o Swift, mas tendo por base a rede ethereum, o que não só a capacidade desta rede e do blockchain, como a capacidade de adaptação aos novos produtos, além do interesse destas instituições financeiras em construir e utilizar esta plataforma como efetiva rede de pagamentos. É extremamente positivo não apenas para indústria de blockchain por si só, como para o desenvolvimento da rede ethereum” E pode mesmo, considera o analista, “ser o primeiro passo para que algumas outras empresas ou até bancos possam criar produtos nesta rede”.
A ethereum é uma plataforma de finanças descentralizadas, utilizando a tecnologia de blockchain. Também tem a sua moeda, mas é uma comunidade que permite outras funções.
Uma revolução nas criptomoedas aconteceu bem cedo neste 15 de setembro. A mudança radical da ether
Apesar de estar assente num protocolo de blockchain, associado à indústria de criptoativos, é desenvolvido por uma empresa cotada “conhecida de todos”, o que faz Hugo Volz Oliveira dissociar esta stablecoin do caso Luna/Terra, em que uma moeda virtual alegadamente estável ruiu. A moeda da PayPal tem “riscos diferentes da stablecoin Terra, que procurava atingir um preço estável através de um conjunto de regras matemáticas [algoritmos], e não por representar um ativo real ou financeiro, como o PayPal USD que faz a ponte com o dólar americano, através de depósitos de moeda, obrigações do tesouro e equivalentes”.
Os riscos e os desafios que enfrenta
Tal como aconteceu no caso do Facebook, esta é uma moeda que vai enfrentar escrutínio e pressão regulatória. A congressista democrata Maxime Waters, que já na ocasião do lançamento da Libra pediu que o Facebook travasse o projeto, mostrou logo a sua “profunda preocupação” pelo lançamento da PayPal, numa altura em que não existe qualquer enquadramento federal para os ativos digitais.
“Dada a dimensão e alcance da PayPal, é essencial a fiscalização e determinação legal das operações desta stablecoin por forma a garantir a proteção dos consumidores e atenuar as preocupações em relação à estabilidade financeira”, declarou, em comunicado, a deputada norte-americana, citada pela Reuters.
No mês passado, o comité dos serviços financeiros do Congresso dos Estados Unidos avançou com um projeto de lei para implementar um quadro regulatório para as stablecoins, que vai centrar as regras no registo e processo de aprovação dos emitentes deste tipo de moedas.
Apesar da declaração de Waters, a moeda da PayPal teve melhor receção do que a dada à Libra. O presidente do comité de serviços financeiros do Congresso, Patrick McHenry, considerou, em comunicado, que “este lançamento é um sinal claro de que as stablecoins — se lançadas sob um quadro relatório claro — são promissoras como um pilar do nosso sistema de pagamentos do século XXI”, acrescentando que “regulação clara e proteção robusta dos consumidores são essenciais para permitir que as stablecoins alcancem todo o seu potencial. Por isso é cada vez mais importante que o Congresso avance com legislação para garantir regulação dos ativos digitais, especialmente stablecoins“. Mas este é um dos congressistas que mais tem lutado por regulamentação. Ainda assim não saltaram logo para a cena mediática declarações de reguladores ou bancos centrais a tentar pôr um travão na PYUSD, ao contrário do que aconteceu com a Libra. O que já pode ser dado como uma conquista por parte da PayPal.
A PayPal garantiu que tem tido extensas conversas com reguladores e até suspendeu, em fevereiro, durante uns tempos o desenvolvimento do projeto. Maxim Manturov, da Freedom Broker, lembra isso mesmo: “com o lançamento da PYUSD, o CEO da PayPal Dan Schulman [que sairá em setembro, conforme foi esta segunda-feira anunciado, sucedendo-lhe Alex Chriss] pretende solidificar o domínio nos pagamentos digitais construindo em cima da tecnologia que permite transferências instantâneas e baratas sem um intermediário financeiro”.
Em fevereiro, recorda, “a PayPal suspendeu os trabalhos na PYUSD numa altura em que os reguladores aumentaram a pressão sobre a indústria de criptomoedas. Entretanto avançou com a PayPal a bater nas costas dos reguladores, dizendo que o quadro regulatório está a andar no sentido de maior clarificação. A PayPal não é nova nestas andanças do sistema financeiro. Anda nisto há 20 anos… e com regulação atrás de si.
Tiago Emanuel Pratas aponta outro desafio/risco que a PayPal tem de ultrapassar. É não fechar a sua criptomoeda no seu mundo e que fique presa na plataforma sem possibilidade de transacionar fora. A PayPal tem 431 milhões de contas ativas a nível global. Numa primeira fase a moeda virtual da PayPal estará disponível apenas para os clientes nos Estados Unidos da América. E servirá apenas para trocar por outros tokens ou para pagamentos, por exemplo de jogos, dentro da rede Paypal. Em breve estará disponível também na aplicação de pagamentos da PayPal, Venmo (disponível apenas nos EUA). Mas terá de esperar-se por um momento posterior para que seja possível usar esta moeda virtual em transferências financeiras e micropagamentos.