A contribuição sobre o setor rodoviário, que desde 2007 é paga dentro do imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP), foi considerada contrária ao direito europeu num acórdão do Tribunal Europeu de Justiça.
A sentença, noticiada esta quarta-feira pelo Jornal de Negócios, surge na sequência de uma ação apresentada por uma empresa de retalho de combustíveis ao Centro de Arbitragem Tributária na qual pedia ao Fisco a devolução da contribuição sobre o setor rodoviário. Mas pode fundamentar uma chuva de processos a exigir o reembolso das várias centenas de milhões de euros cobrados nos últimos anos (quatro é o prazo a partir do qual o direito prescreve). E também pode ter consequências para o presente e futuro quando a decisão transitar em julgado.
Afonso Arnaldo, fiscalista da Deloitte especialista em impostos sobre o consumo, avisa que, perante este acórdão, há empresas que podem sentir-se legitimadas para deixar de cobrar em nome do Fisco uma contribuição que o Tribunal Europeu da Justiça declarou ilegal. Para evitar este risco, o fiscalista defende que é urgente que o Governo legisle rapidamente para ultrapassar o problema e garantir a segurança jurídica do modelo de financiamento da Infraestruturas de Portugal.
A contribuição do setor rodoviário (CSR) pesa atualmente 8,7 cêntimos por litro na gasolina a 11 cêntimos por litro no gasóleo e gerou uma receita para a Infraestruturas de Portugal ao longo dos quatro anos de 2,6 mil milhões de euros. A receita anual oscila entre os 500 e os 600 milhões de euros.
Caberá às petrolíferas decidir se avançam com eventuais pedidos de devolução, mas quem acabou por pagar este imposto — que serve para financiar as estradas — foram os consumidores quando abasteceram o automóvel. Isto porque a contribuição rodoviária, tal como o ISP e outras taxas que se cobram nos combustíveis, “faz parte integrante da estrutura do preço do combustível e, como tal, é totalmente repassado para os consumidores”, confirma ao Observador o secretário-geral da APETRO, a associação que representa as petrolíferas. António Comprido acrescenta que o tema de eventuais pedidos de devolução não foi ainda discutido na associação que representa as maiores empresas do setor e da qual não é associada a empresa envolvida na pronúncia do Tribunal Europeu de Justiça.
A sentença com data de fevereiro ainda não transitou em julgado porque o Fisco suscitou algumas questões processuais junto do Tribunal Central Administrativo, mas está agitar o mundo legal e o Observador sabe que vários advogados já contactaram petrolíferas a oferecerem os seus serviços para avançar com ações contra a Autoridade Tributária. O tema é mais sensível no quadro de crise energética, marcado pela subida acentuada do preço dos combustíveis.
Esta terça-feira questionado no Parlamento sobre o tema, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, afirmou: “Acho que a nenhum português passa pela cabeça que alguma gasolineira vá pedir ao Estado português para lhe devolver a contribuição rodoviária — e que o fosse pedir a cada português”.
O setor dos combustíveis é apontado como um grande cobrador de impostos, mas não fica com a receita. As petrolíferas pagam ao Estado antecipadamente todas as taxas e impostos, incluindo a contribuição rodoviária, no momento em que os combustíveis são introduzidos no consumo. Mas, no momento da venda, passam essa fatura para os consumidores.
Caso avancem processos para exigir a devolução ao Fisco, as petrolíferas deviam, em tese, devolver os montantes aos seus clientes. Ainda que houvesse essa boa intenção, considerando o tempo e o número de transações feitas de venda de combustíveis (provavelmente milhões), parece impraticável. Além de que a sentença do Tribunal Europeu nem sequer considera que o facto de a empresa ter passado a contribuição para o cliente final é um argumento que, por si só, permita recusar o reembolso, atribuindo à AT a responsabilidade de provar que isso aconteceu.
Pelas razões já referidas, o tema não é confortável para a generalidade das empresas do setor num meio de um clima de suspeição sobre as margens e os lucros inesperados trazidos pela subida dos preços. Mas se estas não avançarem, poderão ser elas próprias alvos de processos dos clientes a quem venderam o combustível pelo preço incluir a contribuição rodoviária? Ou podem os consumidores avançar eles próprios contra a AT?
O Ministério das Finanças reafirma ao Observador o que já tinha dito ao Negócios. O Governo tomou conhecimento da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida no âmbito do despacho relativo ao Processo C-460/21, de 7 de fevereiro, não tendo o processo subjacente sido objeto de trânsito em julgado. O Governo encontra-se a acompanhar a evolução do tema, aguardando a prolação da decisão final do processo.”
Tribunal Europeu diz que passagem do imposto para o consumidor não chega para recusar reembolso a empresas
Uma empresa que queira usar esta sentença europeia pode pedir uma revisão tributária à AT sobre os pagamentos que entregou desta contribuição. E, em caso de recusa, pode recorrer ao centro de arbitragem que já deu razão ao pedido inicial de reembolso da contribuição, da qual o Fisco recorreu para um tribunal administrativo. Os recursos para tribunais sobre decisões arbitrais são excecionais, nota Afonso Arnaldo, e neste caso não podem contrariar a jurisprudência do Tribunal Europeu sobre a contribuição do setor rodoviário que terá de ser mudada. Mas só depois de transitada em julgado a decisão do CAAD (Centro de Arbitragem Administrativa).
A sentença do Tribunal Europeu de Justiça tem duas partes, uma sobre a ilegalidade da CSR, o que pode ser corrigido com relativa facilidade. E outra mais cabeluda que diz respeito ao direito de uma entidade pedir o reembolso de um imposto que foi passado para o consumidor final.
- As regras aplicáveis aos impostos sobre o consumo devem ser interpretadas como significando que a contribuição, cuja receita é aplicada no financiamento da uma empresa pública concessionária da rede de estradas, deveria ter na sua conceção a indicação de uma intenção de desencorajar o consumo de combustíveis, não prosseguindo por isso objetivos específicos que estão previstos na diretiva deste tipo de impostos.
- O direito europeu não permite que autoridades nacionais justifiquem a sua recusa em reembolsar uma contribuição indireta que seja contrária à diretiva dos impostos sobre o consumo, argumentando que o custo tenha sido passado para uma parte terceira, e, como resultado, a entidade taxada tenha tido um enriquecimento sem causa. (O tribunal europeu tem considerado que a existência da taxa é penalizadora para a empresa porque reduz as vendas do bem ou serviço).
A empresa de revenda de combustíveis, a Vapo Atlantic, que desencadeou esta sentença recorreu ao Tribunal Arbitral Fiscal do Centro de Arbitragem Administrativa e Fiscal (CAAD) com um pedido de reembolso do montante da contribuição paga no ano de 2016. Como estavam em causa argumentos jurídicos sobre a compatibilidade com o direito europeu foi pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeia que se pronunciasse sobre a legalidade da contribuição no quadro europeu.
Segundo o Jornal de Negócios, o CAAD já deu razão à reclamação, tendo ainda considerado que não ficou provado (da parte da Autoridade Tributária) que a empresa tenha refletido o custo da contribuição aos seus clientes, como é prática no setor. A Vapo Altantic é um revendedor dos combustíveis da Kuwait Petroleum Q8 e tem alguns postos de combustível no norte do país.
A contribuição criada no tempo de Sócrates que ia tirar as estradas do défice
No centro do imbróglio que deve obrigar o Governo a legislar para sanar as ilegalidades face à diretiva europeia está uma lei de 2007 — aprovada no primeiro Governo de José Sócrates — que criou a Contribuição sobre o Setor Rodoviário. Objetivo era atribuir uma receita própria à empresa Estradas de Portugal, antecessora da Infraestruturas de Portugal, no quadro do contrato de concessão da rede rodoviária nacional.
No novo modelo, esta receita própria (tal como as futuras receitas com portagens) iria não só financiar um ambicioso plano de investimento em novas estradas, designadamente através de PPP (parceiras público-privadas) rodoviárias, mas permitiria retirar a Estradas de Portugal do perímetro das contas públicas. Com a desorçamentação destes investimentos, até então financiados apenas pelo Orçamento do Estado, a Estradas de Portugal poderia recorrer a outros financiamentos como dívida privada e deixaria de pesar no défice das contas públicas. No entanto, esta separação nunca chegou a ser validade pelo Eurostat, organismo estatístico europeu.
O processo da Vapo Atlantic que chegou ao Centro de Arbitragem Administrativa teve como advogado o professor de direito fiscal Sérgio Vasques, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no segundo Governo de José Sócrates a partir de 2009. Segundo o próprio esclareceu ao Observador, enquanto esteve em funções naquela pasta a legalidade da contribuição no quadro do direito europeu nunca foi suscitada.
A criação da CSR não correspondeu efetivamente à criação de uma nova contribuição, mas sim à transferência e consignação de uma parte da receita do imposto petrolífero já cobrado nos combustíveis para o financiamento das estradas e da empresa pública que ficou com concessão. Aliás, a lei que a cria estabelece que será publicada uma portaria “por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário”.
Desde 2007, a contribuição rodoviária foi atualizada algumas vezes, passando de 6,4 cêntimos para 8,7 cêntimos por litro na gasolina e de 8,6 cêntimos para 11 cêntimos por litro no gasóleo.