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O Corão é mesmo assim tão radical?

O Estado Islâmico voltou a matar esta semana, em Bruxelas, em nome de Deus e das palavras do profeta. Mas o livro sagrado permite bombistas suicidas e ataques a inocentes?

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“Alá é grande!”. É em nome de Deus e do profeta, das suas palavras, no Corão, que os terroristas matam. Uma guerra religiosa que vai deixando cada vez mais vítimas, primeiro com a Al Qaeda (Nova Iorque, Madrid, Londres), agora com o Estado Islâmico (Charlie Hebdo, Paris, na terça-feira Bruxelas). O texto em que o Estado Islâmico reivindicou a autoria dos atentados desta semana começava com a expressão “Pela graça de Alá”. Mas este fundamentalismo está mesmo no livro sagrado ou a radicalização é fruto de uma leitura enviesada?

Vários especialistas ouvidos pelo Observador não têm dúvidas: os radicais estão a ler mal o Corão. Claro que há passagens no livro que sintetizou os ensinamentos do profeta mais extremistas, mas também as há na Bíblia. Mas o suicídio é proibido, como na maior parte das religiões, pelo que os bombistas que se fazem explodir, como os do aeroporto e metro de Bruxelas, estão a ir contra a sua própria religião. E mesmo as citações atribuídas a Maomé sobre a islamização do mundo, o combate aos infiéis, está longe de poder ser lida da forma que os radicais fazem: ocupando territórios, fazendo violações e extermínios pelo caminho, atacando e deixando milhares de vítimas inocentes em vários locais do mundo, centro da Europa incluído.

Como o Estado Islâmico se justifica

Antes era a Al Qaeda. Agora é o Estado Islâmico que mais usa o Corão para fundamentar os seus ataques.

No dia 29 de junho de 2014, Abu Bakr al-Baghdadi subia a uma varanda, alegadamente na Grande Mesquita de al-Nuri, na cidade iraquiana de Mossul. Ao microfone anunciava a instauração do califado e autodenominava-se califa. A denominação de “Estado Islâmico” (EI) ficava assim legitimada, visto que o “califa” é o sucessor do profeta, com a missão de reunir todos os muçulmanos na sua soberania, que o mesmo é dizer todo o mundo islâmico. Assim, governados por aquilo que entendem ser a verdadeira interpretação da lei islâmica, partiram à conquista dos territórios do Iraque e da Síria, com a ambição de se expandirem depois até aos limites de califados anteriores, do Norte de África à Península Ibérica, passando pelos Balcãs.

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Durante esta intervenção, um dos raros momentos em que o líder do Daesh apareceu em público, Abu Bakr utilizou, à semelhança de outras organizações terroristas, em especial a “velha” Al Qaeda, vários preceitos do Corão para sustentar o avanço para o califado e apelar à união de todos os muçulmanos na luta contra o Ocidente.

https://www.youtube.com/watch?v=hMvKneiNwMc

"Combatei-os até terminar a intriga, e prevalecer totalmente a religião de Deus (Alá). Porém, se se retratarem, saibam que Deus vê tudo o quanto fazem". 
Al Corão, 8:39

Este é um dos ayat (versículos) do texto sagrado do Islão citados pelo líder da organização terrorista no seu discurso. No entanto, as referências a Alá, e às suas ordens para combater o inimigo de forma a estabelecer a verdadeira lei islâmica, preenchem praticamente toda a intervenção de al-Baghdadi.

Mas a mensagem deixada pelo líder do Estado Islâmico teve um significado mais abrangente. Não foi apenas uma simples declaração de intenções. Deu o mote para toda a atuação da organização terrorista que tem chocado o mundo. Paris (duas vezes), Istambul, e agora Bélgica, são apenas os exemplos mais recentes e ocidentais. O terror do Daesh instalou-se em todo o planeta, como antes tinha conseguido Bin Laden.

Depois daquele discurso de há quase dois anos, o Daesh tornou-se o grupo terrorista mais evoluído, em termos logísticos e operacionais, mais rico, e com o maior poderio territorial de que há memória, utilizando para isso, entre outras coisas, assassinatos, decapitações, atentados suicidas, comércio de produtos roubados (a começar pelo petróleo) ou ocupação de territórios. E tudo isto utilizando como base e como justificação os preceitos do Corão e, de forma mais abrangente, do Islão.

Mas será esta a verdadeira base do Estado Islâmico? Dará o Islão, ou o seu livro sagrado, legitimidade para a violência e brutalidade preconizadas pelo Daesh?

O Corão e os seus ensinamentos

O nome do texto sagrado do Islão, Corão, ou em árabe Qur’an, significa, literalmente, “livro” ou “recitação”. Ora, é exatamente isto o que o Corão é. O profeta Maomé terá recebido as palavras de Deus através do arcanjo da revelação, Gabriel. As revelações terão ocorrido entre os anos 610 e 632 d.C. Mas Maomé seria iletrado e por isso terá recitado todos os ensinamentos a quem lhe era mais próximo. E assim as palavras de Deus foram apenas reunidas por escrito 20 anos depois.

AFP/Getty Images

Depois de escrito, o Corão ficou então organizado em 114 capítulos (suras) que, por sua vez, estão divididos em ayat (versículos). Sem organização cronológica, acredita-se que 92 destas suras foram reveladas a Maomé antes da Hégira (fuga do profeta de Meca para Medina) e as restantes 22 já em Medina, onde viria a morrer no ano 632 d.C, com 62 anos.

Como os escritos presentes no livro sagrado terão sido reveladas por Alá através do arcanjo da revelação, os ensinamentos descritos são considerados sagrados e inquestionáveis. Mais do que isso, e como refere ao Observador o coronel Agostinho Paiva da Cunha, autor de alguns trabalhos sobre o Islão para o Instituto de Defesa Nacional, “o Corão abrange todas as áreas da vida humana, no Islão Deus é a autoridade suprema e única”, por isso o texto “é completamente vinculativo e deve ser levado à letra”.

Os membros do Estado Islâmico fazem uma interpretação radicalista e ultraconservadora do livro sagrado, na qual baseiam os seus acos. No entanto, esta visão pode não estar totalmente correta.

O Corão fala mesmo em califado e jihad?

Voltando um pouco atrás, o anúncio da instauração do califado gerou a motivação que faltava a muitos muçulmanos de vários países do Médio Oriente, África ou Europa. O anúncio despertou o fundamentalismo que estava como que “adormecido” em muitas destas pessoas. As razões para o avanço da unificação de todo o mundo islâmico foram fundamentadas pela religião e pelos escritos do profeta. Mas com que legitimidade?

O Observador ouviu também o Sheik David Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, que garante que Abu Bakr não “foi buscar ao texto sagrado qualquer legitimação”. Isto porque, simplesmente, “o profeta não nomeou o seu sucessor”. Ou seja, nada disto está previsto nem no Corão nem na lei islâmica. Por isso, qualquer anúncio de um califado baseado nos escritos religiosos carece, logo à partida, de fundamento sagrado.

Viajando às origens do Islão, Maomé não nomeou de facto qualquer sucessor, como explicou o Sheik Munir. No entanto, e depois da morte do profeta em 632, a escolha recaiu sobre Abu Bakr. “Foram as pessoas que o escolheram”, explica o líder da Mesquita de Lisboa. Depois de morrer, o primeiro califa foi sucedido por Umar ibn al-Khattab, seguindo-se Utman ibn Affan e depois Ali Ibn Abi Talib.”

“Dos primeiros quatro califas, três foram assassinados”, ou seja, “a história do Islão não começa muito bem”, continua o Sheik Munir. Apesar da discórdia e dos conflitos que estas sucessões provocaram, Abu Bakr, o único que não foi morto, “era o mais reconhecido como califa”, isto por “os outros eram mais conhecidos apenas como líderes dos crentes”.

Ora, o nome do primeiro sucessor de Maomé pode soar-lhe a qualquer coisa de familiar. Em concreto, pode remeter para o nome do líder do Estado Islâmico — Abu Bakr al-Baghdadi. “Não é por acaso que este senhor se intitulou Abu Bakr. Este não é o seu nome. Ele foi buscar ao nome do primeiro califa — ‘eu sou Abu Bakr'”. Este é o verdadeiro significado por detrás do nome do líder jihadista. O apelido (al-Baghdadi), por sua vez, remete a Bagdade.

O coronel Agostinho Paiva da Cunha explica que “o califa é por definição um líder espiritual e mundano, porque é, ao mesmo tempo, rei e líder espiritual”. No caso específico do Daesh, “nunca houve é se calhar alguém que tivesse aliado essa proclamação com uma atuação efetivamente prática e com algum êxito como tem agora o Estado Islâmico”. Eles “dizem-se os únicos detentores da verdade da interpretação do Islão” e a “situação social e no terreno veio ajudar”.

"Combatei, pela causa de Deus, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis a agressão, porque Deus não estima os agressores".
Al Corão, 2:190

Outro dos termos utilizados, principalmente pelo Ocidente, é o da jihad, que, na maioria das vezes, é colado à expressão “guerra santa” — não é por acaso que os militantes do ISIS são conhecidos por jihadistas. Mas essa definição, na sua verdadeira aceção, está também errada: “Se perguntarmos a uma pessoa o que acha que é a jihad, acha que é matar. Jihad não é matar, jihad é um sacrifício que a pessoa faz, e nós, todos os dias, fazemos um jihad — e o melhor de todos é lutar contra o próprio ego”, diz David Munir.

Pelo exemplo descrito no Corão, acima citado, verifica-se que há “vários sítios onde se tenta refrear aquilo que é o resultado do combate”, afirma Paiva da Cunha. E são realmente vários os versículos corânicos que parecem contrariar quase tudo o que é usado para justificar uma guerra santa.

"Deus nada vos proíbe, quanto àquelas que não nos combateram pela causa da religião e não vos expulsaram dos vossos lares, lidei com eles com gentileza e equidade, porque Deus aprecia os equitativos".
Al Corão, 60:8

O que diz o livro sagrado sobre o suicídio?

Um dos instrumentos mais utilizados pelos diversos grupos terroristas que movem o que chamam uma guerra santa contra o Ocidente têm sido os atentados suicidas. São quase incontáveis os exemplos. Aconteceu agora na Bélgica, quer no aeroporto, quer na estação de metro, como acontecera em Paris.

Não se justifica pegar numa mochila com bombas, ir para um espaço onde estão pessoas inocentes e fazer-me explodir. Isto é proibido. Completamente proibido”, garante o Sheik David Munir

Esta forma de atuação, à luz do Corão, está simplesmente proibida: “Não se justifica pegar numa mochila com bombas, ir para um espaço onde estão pessoas inocentes e fazer-me explodir. Isto é proibido. Completamente proibido”, garante o Sheik David Munir.

O professor Paulo Mendes Pinto, que dirige o Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos da Universidade Lusófona, diz mais: “A questão do suicídio é transversal a todos os monoteísmos — é proibido. Porque quem dá a vida é Deus e quem a tira é Deus. É inegociável. Não há nenhum texto sagrado que dê azo à legitimidade do suicídio”.

"Ó fiéis, não consumais reciprocamente os vossos bens, por vaidades; realizai comércio de mútuo consentimento e não cometais suicídio, porque Deus é Misericordioso para convosco".
Al Corão, 4:29

A passagem que se cita proíbe, numa só frase, dois dos métodos utilizados pelo ISIS. Além do suicídio, recita-se sobre o comércio de bens roubados: “Realizei o comércio de mútuo consentimento”. Ora, os meios de financiamento do grupo terrorista contrariam este breve ensinamento. Sabe-se que, devido ao crescimento do controlo territorial, o Estado Islâmico apoderou-se de vários campos ricos em petróleo gerando milhares de milhões de dólares com o seu contrabando. Mais do que isso, em várias cidades iraquianas ou sírias são muitos os bens roubados, que vão de obras de arte a carros, que depois são vendidos no mercado negro.

Por sua vez, o suicídio é inclusivamente considerado um pecado maior no Islão. O versículo seguinte (4:30) diz mesmo que “àquele que tal fizer, perversa e iniquamente, introduzi-lo-emos no fogo infernal, porque isso é fácil a Deus”. Ou seja, qualquer terrorista que se faz explodir terá, segundo os escritos islâmicos, o “fogo infernal” à sua espera. Agostinho Paiva da Cunha diz até que este ato “não é em nome de Alá, não foi Alá que defendeu este tipo de atitude”.

E o que diz o Corão sobre os assassinatos, decapitações e execuções?

Na questão da morte, das decapitações, dos assassínios em massa ou individuais são incontáveis os versículos do Corão que proíbem estes atos. Aliás, existem no texto sagrado verdadeiros apelos contra a morte do próximo e em favor da harmonia humana.

"Por isso, prescrevemos aos filhos de Israel, que quem matar uma pessoa, sem que esta tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade. Apesar dos Nossos mensageiros lhes apresentarem as evidências, a maioria deles são transgressores."
Al Corão, 5:32

Lendo-se esta citação em particular, fica aparentemente claro que Alá instruiu os seus fiéis a não matar nenhum ser humano. Nem através de execuções, decapitações ou de qualquer outra forma. No entanto, os radicais pertencentes às fileiras do Estado Islâmico recitam o texto sagrado antes de matar reféns ou qualquer um que contrarie os seus ditames, ignorando os excertos que o proíbem.

Os assassinatos não se cingem aos chamados infiéis. Os muçulmanos têm sido talvez as maiores vítimas do crescimento do Daesh, quer na Síria quer no Iraque — situação que levou ao enorme fluxo de refugiados que tem assolado as fronteiras europeias. O ramo xiita do Islão tem sido um alvo particularmente preferencial do Estado Islâmico, que segue o sunismo islâmico. Mas, em relação à agressão contra outros crentes, o Corão é igualmente específico:

"Quem matar, intencionalmente, um fiel, seu castigo será o inferno, onde permanecerá eternamente. Deus o abominará, amaldiçoá-lo-á e lhe preparará um severo castigo".
Al Corão, 4:93

Por tudo isto, David Munir diz que os atos preconizados pelo EI “não têm nada a ver com o Islão”. No entanto há, de facto, versículos que “falam da guerra como defesa”, ou seja, “quando haja uma guerra necessária para defender o Islão, mas até aí existem muitas limitações”. O que os chamados jihadistas fazem “é completamente oposto ao que o Al Corão diz para fazer, ou aquilo que o Islão ensina”, assegura Munir.

Paulo Mendes Pinto esclarece também que no caso da religião islâmica “há a revelação, o Al Corão, e um role imenso de tradições de leitura, não do Al Corão, mas de interpretações dos gestos e da vida do profeta. Muitas vezes vai-se mais aí do que propriamente ao Al Corão para procurar justificação”.

Jurisprudência Islâmica

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O Al Corão é uma das duas fontes fundamentais de jurisprudência no Islão. A outra são basicamente os exemplos do profeta, denominados de Suna, que remete a um conjunto de narrações sobre a vida e práticas do profeta e que foram transmitidos de boca a boca pelos “Companheiros de Maomé”.

Uma terceira fonte, mas considerada secundária, é a “itjihad”, que serve de apoio quando não é possível encontrar respostas claras e definitivas no Corão e na Suna.

Em último lugar nesta escala está a “Ijma” que não é, no entanto, aceite por todas as escolas e comunidades islâmicas.

Como agregador de tudo isto está a Sharia ou Xária que representa, por isso, a base da legislação islâmica que instrui sobre a vida pública e privada dos muçulmanos.

Há que referir que esta escala é possível porque no Islão, e na grande maioria dos Estados muçulmanos, não existe uma separação entre o Direito e a religião.

Paiva da Cunha diz que, perante estes exemplos práticos, “claramente qualquer pessoa entenderá que matar é um pecado grave que é punido severamente”, no entanto há uma questão que pode baralhar tudo: a interpretação. E, como tal, “quem quiser pode interpretar isto de maneira diferente: ‘quem mata intencionalmente um crente’. A questão está no crente — muitos vão achar legítimo matar alguém que não seja crente”. Para além disso, “há algumas interpretações que creem que aquele que renega a Deus deve ser punido com a morte”.

Mendes Pinto desenvolve ainda o tema afirmando que “se quisermos ir à Bíblia para encontrar versículos onde se apela à morte, encontramos muitos”. No entanto, “nós é que culturalmente evoluímos, principalmente nos últimos séculos, para uma conceção de Deus em que, no fundo, desvalorizamos esses versículos”. No caso ocidental, “o meio académico e religioso passou a olhar para o texto bíblico, não em sentido literal, mas num grande espaço onde se vão buscar mensagens. Quando se descontextualiza e se toma como literal o texto sagrado então é fácil encontrar umas quantas passagens que justificam matar. Principalmente quando se utiliza uma alínea em específico”.

"Porém, se teu Senhor tivesse querido, aqueles que estão na terra teriam acreditado unanimemente. Poderias (ó Mohammad) compelir os humanos a que fossem fiéis?"
Al Corão, 10:99

Onde podem começar as dúvidas?

Mesmo quando as baterias radicais apontam o alvo para os chamados infiéis, os que não são muçulmanos, o livro sagrado dá igualmente respostas. Mas, como explicam os especialistas ouvidos pelo Observador, as passagens, como a citada acima são pura e simplesmente ignoradas em detrimento de outras.

Entre as muitas execuções que ocorreram nos últimos anos, em agosto de 2014, o jornalista americano James Foley foi filmado a ser decapitado por elementos do ISIS. O vídeo correu o mundo e elevou a organização para outro patamar mediático.

https://www.youtube.com/watch?v=JvIYID5LSxk

De facto, existem algumas revelações que podem remeter à pena de morte aqueles que não se submetem à lei islâmica: “O castigo, para aqueles que lutam contra Deus e contra o Seu Mensageiro e semeiam a corrupção na terra é que sejam mortos, ou crucificados, ou lhes seja decepada a mão e o pé opostos, ou banidos. Tal será, para eles, um aviltamento nesse mundo e, no outro, sofrerão um severo castigo” (Corão, 5:33). No entanto, este versículo em particular refere-se apenas àqueles “que lutam contra Deus” e que “semeiam a corrupção na terra”, não se referindo simplesmente a alguém com outras crenças religiosas, nem se prevendo nunca a forma de morte por decapitação.

Por outro lado, existem exemplos como este: “E quando vos enfrentardes com os incrédulos [em batalha], golpeai-lhes os pescoços, até que os tenhais dominado, e tomai [os sobreviventes] como prisioneiros” (47:4). Aqui, preveem-se atos como a decapitação mas, e como já foi referido por David Munir, apenas num cenário de guerra. E numa guerra em defesa do Islão. No entanto, quando se leem estas palavras através de uma visão radical e fundamentalista o sentido pode ser facilmente alterado: “Os textos que eles utilizam são utilizados como versículos do Al Corão para uma guerra justificada mas como defesa e não de ataque. Há vários versículos do Al Corão que falam de nos prepararmos para uma eventual defesa“, explica o Imã da Mesquita de Lisboa.

O Corão usado na propaganda

O grupo liderado por Abu Bakr al-Baghdadi tem-se diferenciado também de todas as outras organizações terroristas pela propaganda e métodos de recrutamento que utiliza. Calcula-se que foram já milhares os recrutas, na sua maioria jovens, saídos de países europeus para se juntarem à causa jihadista. Para isto são criados múltiplos vídeos que são espalhados pela Internet numa estratégia que se tem mostrado extremamente eficaz, e que revela a adaptação do Daesh a um mundo globalizado e ligado pelo online e pelas redes sociais.

Como tudo o que tem o carimbo jihadista, estas pessoas são muitas vezes convencidas utilizando-se um fundamento religioso e sagrado: “Com alguns dizeres do profeta, fazem com que a pessoa fique pronta a largar tudo. Como também já soubemos, muitas delas, quando lá chegam e verificam que aquilo não tem nada a ver com o Islão, querem regressar mas já não podem. A publicidade que é feita não tem nada a ver com a realidade”, assegura David Munir.

Agostinho Paiva da Cunha pega neste facto e utiliza até uma definição utilizada por vários autores: o Estado Islâmico como um culto. Isto é, “um culto tem práticas especificas que o tornam mais do que um movimento político ou religioso”. Exemplo disso mesmo são “os métodos de recrutamento e os métodos como aplicam as normas internas. Uma religião normalmente não é inflexível — não se obriga ninguém a segui-la. Não se prevê que um individuo, depois de entrar na organização possa sair, porque o próprio movimento isola o individuo da sociedade onde viveu”.

E esse comportamento é levado a cabo pelo Estado Islâmico, através do qual “vão recrutar indivíduos que estão normalmente desequilibrados psicologicamente, aproveitando para prometer uma sociedade justa, compreensiva e onde eles são importantes”, e, de facto, Paiva da Cunha admite que “o fazem de uma maneira inteligente, utilizando propaganda. É altamente apelativo para o jovem”. O problema que se coloca é que “quando entram têm de pensar da mesma maneira porque senão são punidos”, e é neste aspeto que reside a grande diferença para uma religião. “Numa religião as pessoas interpretam a religião, mais ou menos, à sua maneira e são livres de criticar. No caso do Estado Islâmico, quaisquer críticas à interpretação feita por eles é punida, e altamente punida”.

Este tema desperta até alguma curiosidade a David Munir, que admite que “era interessante saber um pouco mais sobre a maneira como conseguem convencer os jovens a alinharem-se, qual o argumento que utiliza” a organização, deixando também o desejo de “conversar com alguém do Daesh”. “Mas não posso fazer isso”, diz, principalmente devido ao aperto em termos de segurança que rodeia nos dias de hoje as linhas de comunicação entre os dois lados.

As origens de uma interpretação radical e ultraconservadora

Se no Corão são diversos os ensinamentos que contrariam e proíbem as atrocidades preconizadas por grupos como o Estado Islâmico, a questão que se coloca agora é a de perceber como é que, afinal, as organizações terroristas utilizam o fundamento religioso para levar a cabo os ideais que perseguem. É aqui que a coisa se complica.

“O que há de complexo nos textos sagrados, sejam eles quais forem, é que são, em primeiro lugar, cronologicamente muito distantes de nós. Relativos a culturas que tinham desde aspetos materiais a questões culturais completamente diferentes e que versavam mais em relação à envolvente do que à religião em si”, afirma o professor Paulo Mendes Pinto

São muitos os fatores que envolvem o tema da interpretação dos textos sagrados numa complexidade que dificulta o seu estudo e perceção. Paulo Mendes Pinto aponta, por exemplo, que “o que há de complexo nos textos sagrados, sejam eles quais forem, é que são, em primeiro lugar, cronologicamente muito distantes de nós. Relativos a culturas que tinham desde aspetos materiais a questões culturais completamente diferentes e que versavam mais em relação à envolvente do que à religião em si”. Por isso, David Munir afirma também que “há versículos que foram revelados para um contexto, para aquele tempo e para aquela época”.

Agostinho Paiva da Cunha explica, por sua vez, que “é difícil hoje aplicar as mesmas normas sociais do que no séc. VII d.C.” e, numa vertente mais prática, “o Al Corão é um documento que não é fácil de ler, é um documento feito num movimento declamatório (por ter sido transmitido oralmente) e repetitivo, foi feito para as pessoas memorizarem e repetirem as mesmas coisas”. No entanto, explica, “estaria muito bem aplicado no tempo em que foi escrito”. Outro dos fatores que pode dificultar a sua leitura prende-se com a necessidade de se “conhecer a língua árabe: a interpretação e tradução do árabe proclamatório não é fácil”, tendo em conta, principalmente, o conhecimento que se deve ter de “tudo o que está escrito, e não apenas no Al Corão”.

Existe ainda outra coisa, que está na base de tudo isto, que dificulta e baralha ainda mais este cenário. Como defende Mendes Pinto, para além das diferenças e distâncias temporais “o mais complicado é a interpretação literal das coisas”. Até porque “a essência do texto sagrado é uma essência que possibilita todas as interpretações possíveis, esse é o lado dramático que o texto sagrado encerra”. E por isso, no caso específico do Daesh, o coronel Paiva da Cunha diz que “as interpretações radicais podem ser mais radicais porque eles têm a tendência de levar à letra o que está escrito — e se levarem à letra só as partes que permitem a violência” o extremismo fica com o caminho livre para avançar.

[O Estado Islâmico] não tem nada a ver com o Islão. A única coisa que eles têm do Islão são as vestes culturais, com o emblema e a bandeira onde se lê ‘existe um só Deus’ e ‘Muhammad é o seu mensageiro’. Depois apresentam-se com o Corão na mão apenas para dar o impacto que tudo aquilo que fazem está de acordo com o livro sagrado – o que é falso e é mentira”.

Em comparação nomeadamente com a religião católica, o diretor do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos explica que “no Islão não há um sentido de autoridade como no cristianismo católico”. “A nossa noção de religião, sejamos crentes ou não, é que, no fundo, uma religião tem uma hierarquia ou uma pirâmide onde há uma definição, não só de poder, mas até de crença – o que está certo e o que está errado”. Isto é, o Islão “nasce com uma definição que, podemos dizer, é poeticamente muito interessante e muito avançada, mas dá uma liberdade a todos os crentes de fazerem a sua interpretação”. “De facto, no sentido antropológico é legítimo cada crente fazer a sua interpretação – aos olhos do Corão é legítimo. Porque o único juiz é a própria divindade. Ao passo que no olhar cristão há uma definição do que é que está dentro dos limites da fé e o que é que não está. No Islão não há essa definição nem uma hierarquia”.

A opinião de Paiva da Cunha é concordante com esta reflexão, referindo que “esta radicalização do pensamento vem muito na linha de seguir o Al Corão à letra, cuja interpretação não é permitida em relação às palavras que foram ditas pelo próprio Maomé. No caso de outras religiões, as escrituras sagradas são um guia, com as devidas adaptações, para serem aplicadas à sociedade em cada momento. É natural que radicalize mais uma pessoa que tem de seguir à regra algo que foi escrito há séculos e para umas circunstâncias que eram muito específicas”.

Ou seja, e resumindo, David Munir não tem dúvidas em concluir que o Estado Islâmico “não tem nada a ver com o Islão”. “A única coisa que eles têm do Islão são as vestes culturais, com o emblema e a bandeira onde se lê ‘existe um só deus’ e ‘Muhammad é o seu mensageiro’. Depois apresentam-se com o Al Corão na mão apenas para dar o impacto que tudo aquilo que fazem está de acordo com o livro sagrado — o que é falso e é mentira”, diz o Sheik David Munir

O berço do radicalismo: “num caldo social e cultural”

As explicações dadas podem dar algumas luzes sobre a visão que grupos extremistas e radicais apresentam perante toda uma religião. Mas a maneira como essa se espalhou por toda a região, permitindo criar uma instabilidade severa, numa zona já por si instável, tem outras justificações. E aqui entram o Ocidente e as suas intervenções.

Nesse aspeto, o professor Mendes Pinto não tem dúvidas: “As intervenções do Ocidente no Médio Oriente nos últimos 20 anos foram desastrosas”. Apesar disso, toda a situação no Médio Oriente não se pode explicar apenas com as últimas duas décadas. Há que recuar, pelo menos, até finais do século XIX e princípios do século XX e em concreto para o fim do Império Otomano. Aí, recorda Mendes Pinto, “houve, por um lado, o desaparecimento do califado que existia e que, apesar de tudo, dava uma coesão social, cultural e religiosa e há esse desaparecimento porque toda a região vai ser retalhada em protetorados”, e isso leva, por outro lado, a um “desgaste religioso”. Como consequência houve também “um processo de laicização em muitos daqueles países que foi acentuado e foi artificial”, levando a que os poderes desaparecessem, o que cria “uma situação de pêndulo, de fanatismo em sentido contrário”.

Abdülmecid II foi o último califa da dinastia otomana, desempenhando já funções meramente cerimoniais entre 1922 a 1924, ano em que o califado foi abolido depois da fundação da República da Turquia

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Com base neste facto, Mendes Pinto tem a opinião de que “o Médio Oriente ter ficado religiosamente órfão, em todo o século XX, é o facto ao qual se deve dar cada vez mais peso — os últimos 20 anos vieram apenas acentuar isso”. E o inimigo e alvo número um, era o Ocidente: “Este é o caldo em que nasce um movimento, ou movimentos, que iriam sempre encontrar em qualquer texto sagrado que fosse, qualquer coisa contra o Ocidente. No fundo, eles nascem contra o Ocidente e depois, até por acaso, encontram versículos que podem descontextualizar e utilizar”. Ou seja, e como conclusão, Mendes Pinto afirma que a questão não se centra em “teólogos que estudam o Al Corão e chegam à conclusão de que há alguém que é o inimigo e que se deve ter uma atitude radical contra eles”, mas sim no seu contrário: “Há uma população que, por razões sociais e culturais, desenvolve um sentimento anti-Ocidente, e nesse sentimento instrumentaliza a leitura do Al Corão. O sentido é inverso”.

David Munir acrescenta outro momento, muito mais próximo cronologicamente: “Após a Primavera Árabe, parte do Médio Oriente ficou caótico, o que o tornou num terreno fértil para eles [Estado Islâmico] expandirem o que quisessem. É a base de todo o progresso”, acrescentando que “a política do Ocidente, às vezes, é hipócrita e um pouco lenta. Deixa as coisas andar. Fomos nós que criámos todas estas situações”.

Também Agostinho Paiva da Cunha concentra muitas das explicações neste aspeto: “Estamos a ver um Iraque que era a potência regional destruída por intervenção ocidental. Estamos a ver um território com grandes riquezas e que podem ser controladas”. “A intervenção estrangeira, movida pelo petróleo, veio desestabilizar toda a região. Veio matar o orgulho de um povo que sempre foi orgulhoso”, desta maneira são “as circunstâncias que levam a que as pessoas se radicalizem”.

Este ambiente, envolvido numa mentalidade radical espalhada por grupos terroristas, pode levar anos ou gerações a moderar-se: “Nós na Europa temos este caminho da laicização começado nos finais do século XVII e inícios do século XVIII. A democracia em Portugal tem quantos anos?”, pergunta-se. “A história e as revoluções fazem-se com gerações”, diz ainda, acrescentando que “no Médio Oriente ainda não houve gerações que pudessem resultar num caminho próprio feito pelas próprias populações, pelas elites”. Mas, acima de tudo, e contrariando um pouco o sentimento que se vive nas potências que combatem o avanço do Estado Islâmico, o “mais dramático neste momento não é parar a guerra ou destruir o Daesh, é como se vão sarar feridas ali”. “Como é que vão passar uma geração ou duas, para que se possa trabalhar numa Síria para construir um regime democrático?” Paiva da Cunha diz não ver “qualquer viabilidade de isso acontecer”. “As feridas são tremendas”.

“Se o problema do Médio Oriente for resolvido, provavelmente mais de 50% dos problemas do mundo serão resolvidos. Qual é a solução? Não acho que seja uma solução religiosa porque não existe religiosidade nisto. Quando há uma situação caótica quer-se impor a ideologia ao outro”, assegura David Munir

Na linha deste pensamento, o coronel Paiva da Cunha diz que “a luta contra organizações como a Al Qaeda, que são iminentemente terroristas, deve-se fazer de uma maneira. A luta contra organizações que são cultos, como o Estado Islâmico, terá que ter uma abordagem especificamente diferente”, dando-se o exemplo do “combate à propaganda, o combate às ideias deformadas”, até porque a luta “político-religiosa de uma ideia que não é especificamente político-religiosa pode ter mau resultado”.

Neste âmbito, o Sheik Munir propõe até criar “um canal, não oficial mas semi-oficial, e colocar muçulmanos a dialogarem com outros que estejam a preparar-se para se juntarem ao Estado Islâmico”. Por isso, o líder da mesquita de Lisboa não tem dúvidas: “Se o problema do Médio Oriente for resolvido, provavelmente mais de 50% dos problemas do mundo serão resolvidos. Qual é a solução? Não acho que seja uma solução religiosa porque não existe religiosidade nisto. Quando há uma situação caótica quer-se impor a ideologia ao outro.”

Mas uma coisa é certa, na opinião de Paiva da Cunha: “O Islão é uma religião de misericórdia, de compaixão com o próximo, contra a morte, contra o roubo. Todos estes princípios são proibidos pela lei islâmica”. Para David Munir, “as pessoas têm que saber a que é que o Islão apela”, garantindo que o Estado Islâmico “não tem nada a ver com o Islão”. “São pessoas que o deturpam” e, por isso, “o nosso inimigo é comum — o terrorista”.

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