Chegou a Viena, fez check-in no hotel e deixou as malas no quarto para poder dar um passeio pela capital austríaca antes da conferência em que ia participar. No quarto deixou tudo, até o seu computador. Um erro crasso. Ibrahim Othman era diretor da Comissão Síria de Energia Atómica e há muito que era vigiado pelas secretas israelitas. E a Mossad não perdeu a oportunidade. No computador encontrou mapas, fotos e planos que comprovavam que um dos maiores pesadelos de Israel estava em vias de se tornar uma realidade: um reator nuclear à porta de Israel, nas mãos de um dos seus vizinhos mais hostis.
A descoberta não foi um acaso. Em 2004, a norte-americana National Security Agency (NSA) detetou um volume elevado e pouco comum de telefonemas entre a capital da Coreia do Norte e um local remoto no norte da Síria e os norte-americanos informaram os israelitas.
No computador, a Mossad encontrou planos, fotos do que parecia ser um reator nuclear, de varetas usadas para produzir combustível, de um complexo construído à volta do reator para dar a ideia de que se tratava de uma fortaleza bizantina, tudo isto numa ravina numa zona deserta junto ao rio Eufrates, e uma foto de Ibrahim Othman, o responsável pelas aspirações nucleares da Síria, com Chon Chibu, um dos líderes do programa nuclear norte-coreano e responsável pela construção do reator nuclear de Yongbyon, do qual este reator parecia uma réplica. Ainda assim, os responsáveis queriam mais certezas.
A certeza chegou quando um general iraniano que liderou a Guarda Revolucionária do Irão no Líbano decidiu desertar depois de entrar na lista negra do então novo presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad. Chegado a Istambul, o general terá contactado a CIA e pediu proteção. Em troca, tinha informação preciosa para dar: Teerão estaria a construir um segundo complexo nuclear secreto, depois do de Natanz, e a financiar um programa nuclear ultra-secreto na Síria, em colaboração com a Coreia do Norte, que era quem tinha o conhecimento e a experiência. A colaboração entre o Irão e a Coreia do Norte no desenvolvimento do programa nuclear já estava referenciada pelos serviços de informação iraquianos, como demonstra um relatório secreto iraquiano datado de 1992.
O reator tinha de ser destruído antes de ficar operacional e Israel ainda tentou que fossem os Estados Unidos a liderar a operação, mas depois do que tinha acontecido com o Iraque, George W. Bush não quis arriscar, como o próprio admitiria na sua autobiografia. Mas para os israelitas a decisão estava tomada. Mesmo arriscando um novo conflito com um país com o qual está tecnicamente em guerra desde 1948, o primeiro-ministro israelita Ehud Olmert deu ordem para que os caças israelitas destruíssem o complexo de al-Kibar, nos arredores de Deir ez-Zor, em setembro de 2007.
Ehud Olmert passou então a mensagem à Síria, através do presidente da Turquia: não haveria mais ataques e daria a possibilidade a Bashar al-Assad de negar que este ataque tinha acontecido. Publicamente, os israelitas – como é hábito – não falaram e a Síria não respondeu aos ataques. Nas notícias, um grupo de caças israelitas teria invadido o espaço aéreo sírio, mas rapidamente foram obrigados a voltar para trás.
A história só viria a ser conhecida publicamente depois de um briefing dos serviços de informações norte-americanos a um conjunto de congressistas norte-americanos. As notícias levaram a que a Agência Internacional de Energia Atómica exigisse uma visita ao local para comprovar que se tratava de um reator nuclear, algo que a Síria evitou durante meses, enquanto limpava o local. Quando finalmente cedeu, os técnicos conseguiram comprovar que se tratava de facto de um reator nuclear. Em resposta, a Síria bloqueou o acesso dos inspetores a outros três locais e argumentou que o urânio só poderia ter vindo dos mísseis usados pelos israelitas.
EUA: “Quem quer que o tenha feito, o mundo é um lugar melhor”
Apesar das promessas de Ehud Olmert, a resposta à ousadia síria e iraniana não se ficaria por aqui. Um ano mais tarde, Imad Mughniyah, uma espécie de super chefe de gabinete do grupo terrorista xiita Hezbollah, morreu numa explosão de uma bomba colocada no seu jipe. Ninguém assumiu a responsabilidade. “Quem quer que o tenha feito, o mundo é um lugar melhor”, foi a resposta oficial da Casa Branca.
Mughniyah, na lista dos terroristas mais procurados do FBI, da Mossad e da União Europeia, participava no aniversário da revolução islâmica no Irão, promovida pela embaixada iraniana em Damasco. Na mesma festa estavam também Khaled Meshal, líder do Hamas, e o general Muhammad Suleiman, conselheiro especial de Bashar al-Assad, encarregue da pasta das armas estratégicas e responsável pela comunicação com a AIEA na questão de al-Kibar.
Cinco meses depois da morte de Imad Mughniyah, chegou a vez de Muhammad Suleiman. O general saiu para nadar como fazia sempre que estava na sua casa de verão em Tartous, uma cidade medieval na costa da Síria, desta vez acompanhado pelos seus guarda-costas, mas pouco depois seria atingido com dois tiros, um no pescoço e outro na cabeça. Os atiradores, presumivelmente num dos barcos, desapareceram sem deixar rasto.
Numa casa que Suleiman tinha junto da fronteira com o Líbano, foram encontrados 80 milhões de dólares. Bashar al-Assad, receoso de ter sido traído, desviou a investigação para a origem do dinheiro. As secretas francesas suspeitavam de rivalidades internas, de acordo com uma comunicação secreta com os norte-americanos revelada pelo Wikileaks. Suleiman ter-se-ia tornado demasiado poderoso e um fardo para Assad depois da questão do reator de al-Kibar.
A verdade sobre o caso só seria conhecida quando o antigo empregado da NSA, Edward Snowden, revelou milhares de documentos secretos que expunham o programa de vigilância ilegal norte-americano. Entre eles estava um documento interno da NSA, ultra confidencial, que dizia que foram as forças especiais israelitas que mataram os dois homens, e os norte-americanos sabiam disso porque teriam tido acesso às comunicações israelitas.
A ligação com a Coreia do Norte e o caso de al-Kibar acabariam por ser assumidos publicamente pelo então diretor da CIA, Michael Hayden. “Sabíamos que a Coreia do Norte e a Síria estavam a cooperar em matéria nuclear desde o final dos anos 90. A extensão dessa relação seria revelada em abril do ano passado quando identificámos um reator nuclear em Al-Kibar, no deserto a leste da Síria. Era semelhante ao de Yongbyon na Coreia do Norte, mas a sua estrutura exterior estava altamente encoberta. A situação tornou-se crítica no verão, quando percebemos que estaria prestes a entrar em funcionamento. O reator de al-Kibar foi destruído na madrugada de 6 de setembro de 2007. Os sírios de imediato limparam os destroços e qualquer vestígio do edifício, empatando quando a AIEA pediu explicações”, explicou Michael Hayden, num discurso em 2008.
Solidariedade, fraternidade e dinheiro no bolso
Porque haveria a Coreia do Norte de querer dar um dos seus maiores trunfos à Síria? A resposta começara a ser dada várias décadas antes. Por um lado, Israel é um aliado de longa data dos EUA e esteve do lado das Nações Unidas na Guerra da Coreia. Por outro, após a guerra a Coreia do Norte partiu numa luta pelo reconhecimento e o apoio à sua causa, aproveitando as mudanças que ocorriam em zonas menos consolidadas do mundo – África, Médio Oriente e América Latina.
Kim Il-sung aspirava à liderança do Movimento dos Países Não Alinhados para fazer avançar a sua ideia de revolução anti-imperialista à escala global e conseguir o reconhecimento que tanto procurava nas Nações Unidas. Para isso, começou pelo Egito logo nos anos 50, dando apoio público (e uma modesta contribuição financeira) quando Abdel Nasser decidiu nacionalizar o Canal do Suez em 1956.
Pouco depois de estabelecer relações diplomáticas com a Síria, Pyongyang enviou pilotos e instrutores para estes dois países para ajudar na resposta à ofensiva israelita que começou a Guerra dos Seis Dias. Em 1970 enviou mais 200 especialistas na operação de tanques, 53 pilotos e 140 técnicos especialistas em mísseis para a Síria, e mais três dezenas de pilotos para o Egito e a Síria para ajudarem durante a Guerra do Yom Kippur. Alguns deles, segundo documentos históricos, terão mesmo pilotado caças egípcios e russos na ofensiva árabe.
O apoio fraternal e ideológico rapidamente deu lugar a uma oportunidade de negócio que mudaria a região e o futuro da Coreia do Norte, quando na década de 70 o Egito aceitou vender aos norte-coreanos mísseis SCUD-B – com um alcance de cerca de 300 quilómetros – que os cientistas em Pyongyang usaram para aprender a replicar em larga escala. Esta seria a base para o desenvolvimento de mísseis de longo alcance da Coreia do Norte, conhecidos como Taepodong. Em troca, Pyongyang venderia mísseis já fabricados ao Egito e à Síria, e ia ajudá-los a desenvolver o seu próprio sistema de produção.
Este negócio deu aos norte-coreanos uma importante fonte de receitas, numa altura em que a economia fraquejava e em que estavam cada vez mais isolados do mundo. Durante a Guerra Fria, era a União Soviética que pagava o material militar vendido à Síria, mas também a Arábia Saudita, que pagaria mais de 2 mil milhões de dólares de compras militares da Síria, como prémio pela participação na Guerra do Golfo contra o Iraque de Saddam Hussein.
A maior fonte de receitas estava um pouco mais a norte. Desde 1973, ainda durante o tempo do Xá Mohammad Reza Pahlavi – aliado dos Estados Unidos -, que a Coreia do Norte tinha relações diplomáticas com o Irão, mas seria com a revolução Islâmica que a parceria daria um salto. Ruhollah Khomeini visitou Pyongyang antes de chegar ao poder. Um ano depois, com o início da guerra Irão-Iraque, os negócios floresceriam.
“A Coreia do Norte consegue um terço das suas receitas com dinheiro vivo com a venda de armas ao Irão. Estimamos que os carregamentos de armas entregues entre julho de 1980 e dezembro de 1983 totalizaram pelo menos mil milhões de dólares. Em 1982 – o último ano para o qual há dados relativamente completos disponíveis – a Coreia do Norte forneceu 30% das armas que o Irão comprou no estrangeiro. As relações próximas de Pyongyang com Teerão também permitiram à Coreia do Norte diversificar as suas fontes de petróleo. Antes de 1980, a Coreia do Norte, que não tem depósitos de petróleo domésticos com relevância, estava quase totalmente dependente da China e da União Soviética para comprar petróleo”, dizia a CIA num relatório confidencial sobre as atividades norte-coreanas datado de 1984.
Foi nos anos 80, com a ajuda das receitas de armamento vendido ao Irão, que os norte-coreanos começaram a produzir mísseis de mais longo alcance, o Hwasong 5 e mais tarde o Hwasong 6. A receita conseguida com a venda destes mísseis foi, por sua vez, reinvestida na produção de uma nova linha, até que no final dos anos 90 Pyongyang conseguiu finalmente desenvolver a série de mísseis balísticos intercontinentais Taepodong 1 e 2, que viriam a ter a capacidade (teórica) para atingir a Costa Oeste dos Estados Unidos. Em troca, Pyongyang deu ao Irão e à Síria a capacidade de atingir Israel.
Mas o Egito, que se tornou um aliado de longa data dos Estados Unidos, nunca sairia de cena. “A Coreia do Norte tem levado a cabo um projeto de desenvolvimento de mísseis em conjunto com o Egito. A pedido do presidente egípcio Mubarak, Kim Il-sung transferiu a tecnologia e enviou um grupo de especialistas para o país no início da década de 80”, relatou Ko Young-hwan, o mais alto diplomata norte-coreano a desertar até aos anos 2000, num testemunho perante o Congresso norte-americano.
O testemunho foi recebido com algum ceticismo por parte dos norte-americanos, mas em agosto de 2016 um cargueiro foi interceptado no Mar Vermelho quando estava a caminho do Canal do Suez com 132 toneladas de armas norte-coreanas.
As autoridades egípcias foram alertadas pelos norte-americanos: o navio Jie Shun viajava com uma bandeira do Camboja, mas tinha saído de um porto da Coreia do Norte. O navio foi intercetado pelos egípcios e nele foram encontrados mais de 30 mil rockets, naquela a que as Nações Unidas chamaram a maior apreensão de armas norte-coreanas desde que foram impostas sanções.
Inicialmente, as Nações Unidas suspeitavam que a carga tivesse como destino o Líbano ou a Síria, mas a investigação acabou por revelar uma complexa teia que levaria até ao próprio Egito, que na altura tinha assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os Estados Unidos responderam suspendendo um apoio financeiro de cerca de 300 milhões de dólares que tinham acordado com o Egito.
A lista de clientes é bem mais vasta do que estes três países. Líbia e Paquistão também se tornariam clientes da Coreia do Norte, tal como o Iémen, os Emirados Árabes Unidos, a República Democrática do Congo, Angola, Moçambique, Vietname, Myanmar, Cuba, entre muitos outros. Nas últimas décadas, as autoridades de vários países apreenderam carregamentos de mísseis e material análogo destinados a estes países em Hong Kong, Taiwan, Japão, Tailândia, Suíça, Grécia, Espanha, Itália, Chipre, Reino Unido, Índia, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Egito, entre muitos outros.
Segundo Young-hwan, que liderou o Departamento Africano do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte até à altura da sua deserção, “ao ter estas armas, o Norte consegue evitar ser menorizado por grandes potências como os Estados Unidos, a Rússia, a China e o Japão, e também ter vantagem nas negociações com estas superpotências”.
Da revolução ao terror: massacre no aeroporto com as armas na caixa de um violoncelo
A 30 de maio de 1972, três cidadãos japoneses chegaram a Tel Aviv num voo da Air France, depois de alguns dias em Roma a desfrutar das belezas arquitetónicas da cidade eterna. Na mala traziam mais do que fotografias. Kozo Okamoto, Takeshi Okudaira e Yasuyuki Yasuda dirigiram-se à zona de recolha de bagagens onde os esperavam as suas malas e uma caixa de um violoncelo. Descontraidamente, abriram a caixa, pegaram em metralhadoras, granadas e outras armas de fogo e começaram a disparar indiscriminadamente.
Takeshi e Yasuyuki acabariam por morrer. Kozo tentou fazer o mesmo, atirando uma granada para um avião na esperança de o fazer explodir e morrer no processo, mas sobreviveu e foi detido. 26 pessoas morreram, incluindo sete israelitas e 17 peregrinos de Porto Rico acabados de chegar a Israel para uma visita aos locais sagrados. Cerca de 80 pessoas ficaram feridas.
A autoria do ataque foi reivindicada de imediato pelo Exército Vermelho Japonês, um grupo formado no Líbano em 1971 por Fusako Shigenobu, com o apoio da também marxista Frente Popular para a Libertação da Palestina, que lutava pela destituição do governo e da monarquia japonesa, pela instalação de um regime comunista e pelo início de uma revolução mundial.
Fundado por um grupo de estudantes de uma ala radical da Liga Comunista Japonesa, com o objetivo de atacar o imperialismo com recurso à violência, a sua líder escolheria a Palestina como a frente dessa guerra contra o mundo imperialista e o ataque ao aeroporto foi o mais sangrento da história do grupo.
O único sobrevivente, Kozo Okamoto, foi condenado a prisão perpétua, mas antes explicou como tudo foi preparado, e como uma parte fundamental foi o apoio do regime norte-coreano no processo. O seu irmão, Takeshi Okamoto, era um dos líderes fundadores do grupo e estava exilado na Coreia do Norte desde março de 1970, quando, juntamente com outros sete elementos do grupo, sequestraram um avião da Japan Airlines com 129 pessoas a bordo, armados com espadas de samurai e bombas artesanais, e o desviaram para Pyongyang.
Seis meses depois de começado o exílio na Coreia do Norte, os membros do Exército Vermelho Japonês conheceriam George Habash, líder da Frente Popular para a Libertação da Palestina, que estava de visita a Pyongyang para pedir o apoio do regime norte-coreano ao seu movimento. Recebidas garantias de financiamento e armas, Habash e a liderança dos membros do Exército Vermelho Japonês fizeram um pacto para cooperar em futuros ataques. Alguns militantes do Exército Vermelho Japonês seguiriam Habash até ao Vale de Beqaa no Líbano, onde receberam treino em táticas de guerrilha, treino militar e fabrico de explosivos de instrutores norte-coreanos.
Kozo Okamoto foi condenado a prisão perpétua, mas acabou por ser libertado em 1985 numa troca de prisioneiros entre Israel e a Frente Popular para a Libertação da Palestina. Seria novamente preso anos mais tarde, juntamente com outros membros do Exército Vermelho Japonês, no Líbano, onde ficaria a viver depois de cumprir uma pena de três anos por tentar viajar com um passaporte falso, depois de o governo libanês lhe ter concedido asilo político pela sua participação em ações de resistência contra Israel.
A ligação da Coreia do Norte com o Exército Vermelho Japonês é antiga e continuou, com muitos dos seus membros ainda exilados em Pyongyang, mas estava longe de ser única. “No final dos anos 60 e início dos anos 70, a Coreia do Norte tinha relações extensas com grupos terroristas e extremistas em África, no Médio Oriente e na América Latina. Em meados dos anos 70, Gana, Chade, Republica Centro Africana, Argentina e Mauritânia seguiram o exemplo do Sri Lanka e suspenderam relações diplomáticas devido às relações norte-coreanas — provadas ou suspeitas — com grupos de insurgentes”, de acordo com um relatório desclassificado pela CIA.
Segundo a CIA, o treino militar a movimentos revolucionários começou por ser uma forma de “provar as suas credenciais revolucionárias” e as missões diplomáticas fora de Pyongyang teriam instruções para manter o contacto com grupos insurgentes. Em parte, como aconteceu em África, os norte-coreanos estavam a tentar assegurar apoio à escala global à sua causa, apoiando movimentos de esquerda pelo mundo, mas também com interesses financeiros por detrás: este era um negócio no qual tinham experiência e as relações com estes grupos ajudavam a suportar a vasta rede de contrabando e tráfico de droga da Coreia do Norte.
“Nos anos 70, a Coreia do Norte começou a apoiar muitos governos e movimentos revolucionários em África e no Médio oriente, dando apoio militar, enviando pilotos para o Egito durante a guerra do Yom Kippur, deu apoio ao movimento contra o Apartheid na África do Sul, apoiou movimentos na Namíbia, no Zimbabué, em Angola, na Etiópia. Muitas das relações contemporâneas evoluíram a partir dessas relações. Houve muito apoio solidário, mas também eram relações de conveniência”, explica Ken Boydston do Peterson Institute for International Economics.
A teia fez-se sentir um pouco por todo o mundo. Em 1971, o México acusou a Coreia do Norte de treinar 50 jovens mexicanos em Pyongyang, de lhes dar passaportes norte-coreanos, dinheiro para despesas e recrutar mais guerrilhas no México, com o objetivo de provocar um golpe de Estado no nesse país. Parte deste grupo foi detido pelo governo mexicano e os seus membros confessaram terem sido treinados na Coreia do Norte. O governo mexicano avisou os Estados Unidos: dezenas de norte-americanos treinados em Pyongyang estavam a caminho dos Estados Unidos, juntamente com centenas de cubanos que receberam o mesmo treino. Um destes terá estado envolvido na bomba colocada no edifício do Capitólio, em Washington, na madrugada de 1 de março de 1971. O grupo Weather Underground reivindicou o ataque e disse que este era uma resposta à intervenção no Camboja. Os atacantes nunca foram detidos.
No Sri Lanka, o embaixador norte-coreano foi expulso em 1971 depois de um grupo de insurgentes locais ter sido detido quando planeava o sequestro e assassinato da primeira-ministra Sirimavo Bandaranaike, alegadamente como prenda de aniversário para Kim Il-sung. Quando foram presos, os insurgentes confessaram que o plano foi delineado na embaixada norte-coreana naquele país.
De acordo com uma edição da revista Time de 1971, a Coreia do Norte treinava cerca de 2000 elementos de guerrilhas em 25 países. Pelo menos 700 estariam a receber treino na Coreia do Norte, um treino com uma duração entre seis e 18 meses, de um rigor extremo e que tentava formar os rebeldes em todas as vertentes da guerra: artes marciais, operação de armas, táticas de guerrilha, táticas de vigilância, propaganda, fabrico de bombas, recolha de informação e um vigoroso programa de preparação física.
O regime tentava chegar a todas as partes do mundo. Deu apoio financeiro e vendeu armas à oposição na Jamaica, no Peru, ao regime da Nicarágua, deu treino militar e armas a grupos que lutavam pela independência em África, como a UNITA, deu treino em táticas de guerrilha a um grupo de militantes do IRA (Irish Republican Army) e até tentava cativar movimentos de esquerda nos Estados Unidos, como os Black Panthers. O seu líder, Eldrige Cleaver, visitou mesmo a Coreia do Norte várias vezes e um dos seus filhos nasceu em território norte-coreano.
O apoio militar chegou também aos Tigres Tamil, no Sri Lanka. De acordo com Rohan Gunaratna, diretor do International Centre for Political Violence and Terrorism Research em Singapura, a Coreia do Norte vendeu armas aos já extintos Tigres Tamil no Sri Lanka desde 1997. O especialista em terrorismo diz que entrevistou antigos membros dos Tigres Tamil no decurso da sua investigação e que a maior parte das armas era produzida na China e depois transportada por navios norte-coreanos, com bandeiras falsas de outros países, uma técnica muito usada pelos norte-coreanos desde que as sanções sobre as suas exportações foram agravadas.
“As armas eram transportadas em operações de contrabando em navios como o Ocean Lady [um navio usado para operações de contrabando pelos Tigres Tamil que deu à costa no Canadá com refugiados do Sri Lanka e alguns membros deste grupo], com os negócios a serem feitos a partir da embaixada da Coreia do Norte na China”, explicou.
A relação mais duradoura seria com grupos terroristas no médio oriente. O apoio à Frente Popular para a Libertação da Palestina enquadrava-se no apoio a outros grupos marxistas ou anti-imperialistas da parte de Pyongyang, mas o apoio às Fatah, ao Hamas e ao Hezbollah obedecia a uma lógica mais comercial.
Em maio de 1984, Yasser Arafat visitou Pyongyang para se encontrar com Kim Il-sung e recebeu a promessa de que o regime iria fornecer armas para a causa palestiniana: artilharia, lança-rockets, metralhadoras anti-aéreas e morteiros. Também nos anos 80, Hassan Nasrallah, que viria a ser secretário-geral do Hezbollah, Mustapha Badreddine, eventualmente o seu chefe de contra-espionagem, e Ibrahim Akil, o líder dos serviços de informação do movimento, terão recebido treinamento durante vários meses na Coreia do Norte, onde desenvolveram o que viria a ser o modus operandi que caracteriza o grupo terrorista: secretismo, disciplina e organização.
Com as mudanças na liderança da Coreia do Norte, o apoio a estes grupos foi-se tornando cada vez menos uma questão de ideologia e mais de estratégia. O treino e o apoio logístico a grupos como o Hamas e o Hezbollah ajudariam estes grupos a tornarem-se cada vez mais autónomos e eficazes nos seus ataques. O know-how norte-coreano na construção de túneis – uma técnica aperfeiçoada após a destruição do Norte pelas forças norte-americanas na Guerra da Coreia – permitiria a estes dois grupos não só criar esconderijos eficazes, mas também atacar escolas, comunidades e postos fronteiriços em território israelita. O material vendido ao Irão e à Síria, e o seu apoio na produção de mísseis e rockets, continua a chegar às mãos destes dois grupos.
A rede de túneis foi descoberta no verão de 2014, durante a operação depois do rapto e assassinato de três jovens israelitas pelo Hamas. Os militares israelitas deram de caras com uma extensa rede de túneis que permitiam ao Hamas esconder a sua posição e armas, bem como entrar em território israelita para realizar ataques.
Testas de ferro, navios fantasma e as obras solidárias dos Kim
O modus operandi é o mesmo usado no Médio Oriente, em África ou na Ásia e está centrado em dois pontos chave. O primeiro é a rede de embaixadas e missões diplomáticas. Para permitir o acesso aos países e maior liberdade de atuação, a Coreia do Norte nomeia como diplomatas para as embaixadas dos países destas regiões responsáveis das empresas norte-coreanas que fabricam e vendem armas, e que são atualmente alvo de sanções pelas Nações Unidas, como a Korea Mining and Development Trading Corporation (KOMID) e a Green Pine International. Estes são responsáveis por organizarem os negócios de armas proibidos pelas Nações Unidas com os responsáveis de cada um dos países, utilizando para isso uma série de empresas de fachada, normalmente com sede em território continental chinês, mas também em Hong Kong, e em outros territórios asiáticos, como no Sri Lanka, na Malásia ou nas Filipinas, ou em paraísos fiscais como as Ilhas Virgens britânicas, Antigua, ou as Seychelles.
“Os países que os recebem sabem quem são estas pessoas que vão trabalhar para as embaixadas e nas missões diplomáticas. É comum haver diplomatas que são apanhados em operações de contrabando. Isto acontece desde os anos 70. Há vários casos de embaixadas que foram usadas para planear ataques terroristas ou dar apoio a grupos rebeldes hostis aos governos daqueles países. Nalguns casos as relações diplomáticas foram cortadas, noutros houve só um afastamento. Agora, com as sanções cada vez mais fortes, os postos diplomáticos passaram a ser uma forma de proteger os responsáveis destas empresas e fazer negócios que seriam ilegais à luz do direito internacional”, explicou um ex-agente de uma agência de informação norte-americana.
De acordo com este antigo agente, “há casos em que algumas empresas estão registadas nas mesmas moradas das embaixadas, dando uma cobertura diplomática que permite a essas empresas continuar a operar”. Assim, mesmo quando algum dos seus representantes é foco de atenção ou se acaba por ter de abandonar o país devido à pressão internacional — em alguns casos por passarem a integrar a lista de pessoas alvo de sanções — as empresas mantêm a estrutura e há uma substituição de pessoal que permite que os negócios continuem a ser realizados.
A rede funciona em torno de algumas, limitadas, figuras centrais que servem de facilitadores e a gerem — casos da KOMID e da Green Pine International. Assim que é descoberto o papel que desempenham em atividades ilegais, são criadas novas empresas fantasma que servem para continuar as operações, o que faz com que as Nações Unidas, os Estados Unidos e a União Europeia permaneçam numa espécie de jogo do gato e do rato. Muitas dessas empresas estão sedeadas na China continental e em Hong Kong, mas as Nações Unidas têm conseguido encontrar algumas, em parte porque partilham os mesmos donos, as mesmas moradas e os mesmos contactos, inclusivamente de email.
O segundo ponto chave desta rede é o transporte. Com a intensificação das sanções internacionais ao comércio norte-coreano, as embarcações norte-coreanas foram alvo de restrições de maior controlo. Para não serem detetados, os navios norte-coreanos usam bandeiras falsas, navegam com o equipamento desligado, só o ligando em zonas com muita afluência junto dos portos, e sem fazerem comunicações com estes mesmos portos durante as viagens.
Só desde os anos 2000, as autoridades de vários países interceptaram navios que transportavam armamento e outro equipamento militar com destino à Síria, ao Irão, ao Iémen, à Líbia e a Myanmar, entre outros. Um dos casos mais conhecidos é o do MV Francop, um navio alemão que viajava com a bandeira de Antigua, quando foi interceptado pela Marinha israelita com 500 toneladas de armas a bordo, escondidas em 36 contentores entre centenas de outros, com destino ao porto de Latakia, na Síria, de onde seriam transportados para o Líbano para serem entregues ao grupo terrorista xiita Hezbollah. As Nações Unidas concluíram em 2014 que os rockets e mísseis que este navio transportava teriam “muito provavelmente” sido produzidos na Coreia do Norte, e até a forma escolhida para esconder o armamento no navio era a mesma usada recorrentemente pelos norte-coreanos.
A Coreia do Norte tem usado também empresas aparentemente não relacionadas e com atividades que ainda não são alvo de sanções para operacionalizar estes negócios. Um dos casos mais conhecidos é o da Mansudae Overseas Projects, responsável pela construção de estátuas e monumentos de grandes dimensões, em especial em África, como é o caso da Estátua de Samora Machel no centro de Maputo, em Moçambique. De acordo com as Nações Unidas, esta empresa estaria a ser usada como fachada para os negócios de armas da KOMID e da Green Pine International, e também para providenciar mão-de-obra norte-coreana – em condições consideradas pelas Nações Unidas como quase escravatura – para a construção de fábricas de munições e de produção de mísseis, projetos esses que seriam coordenados por especialistas norte-coreanos enviados para estes países.
Das armas químicas à guerra civil na Síria
A 13 de fevereiro, Kim Jong-nam, meio irmão do atual líder da Coreia do Norte, morreu no aeroporto de Kuala Lumpur quando esperava pelo voo de regresso à sua casa adotada, Macau, onde estava exilado desde 2003.
O nome de Kim Jong-nam chegou a ser apontado à sucessão de Kim Jong-il, que o nomeou para um alto cargo no Ministério da Segurança Pública e o encarregou da inovação tecnológica no reino eremita. Mas tornou-se um embaraço depois de ser detido quando tentava entrar no Japão com um passaporte falso, para uma visita à Disneyland de Tóquio com a sua família.
Quando esperava no aeroporto pelo voo de regresso a Macau, Kim Jong-nam foi atacado por duas mulheres — uma de origem indonésia e outra vietnamita –, tendo cada uma delas esfregado uma substância na cara do norte-coreano. Cerca de 20 minutos depois, Kim Jong-nam acabaria por morrer, ainda no aeroporto. As duas mulheres foram detidas pela polícia da Malásia e garantiram que foram levadas a fazer este ataque. A Coreia do Sul e a Malásia acusam a Coreia do Norte de estar por detrás do assassinato, mas Pyongyang nega.
[Veja no vídeo o momento do ataque a Kim Jong-nam]
A chave do mistério estará no químico usado: o VX, uma substância neurotóxica que impede o funcionamento de uma enzima fundamental para o corpo humano e que leva o corpo a entrar em colapso, e que é considerado uma arma de destruição maciça pelas Nações Unidas.
Há muito que as autoridades suspeitam que a Coreia do Norte tem um programa de armas químicas e biológicas. De acordo com uma análise do governo da Coreia do Sul datada de 2012, Pyongyang terá quatro bases militares equipadas com armas químicas e onze locais onde estas armas são produzidas e armazenadas, e poderão ter entre 2500 e 5000 toneladas deste tipo de agentes químicos. Os sul-coreanos estimavam também que o principal foco dos norte-coreanos estava no desenvolvimento dos gases VX e Sarin. A Coreia do Sul acredita ainda que Pyongyang tem a capacidade de produzir armas biológicas com antrax, cólera, febre tifóide, febre amarela, entre muitos outros.
O assassinato de Kim Jong-nam pode ter sido a demonstração mais aberta das capacidades norte-coreanas, mas não foi a única. Em 2005, as forças sírias testaram o lançamento de uma versão mais desenvolvida de um míssil de longo alcance com capacidade para transportar uma ogiva com armas químicas, sem sucesso. O míssil, que acabaria por cair junto da fronteira com a Turquia, foi produzido pela Coreia do Norte e vendido à Síria. Em 2007, também na Síria, um teste com um míssil que transportava gás Sarin e VX correu mal e provocou a morte a técnicos sírios, iranianos e norte-coreanos.
As autoridades norte-americanas e israelitas foram tendo conhecimento da cooperação entre a Síria, a Coreia do Norte e o Irão no desenvolvimento de armas químicas e biológicas através destes testes falhados, mas desde pelo menos 2012 que as Nações Unidas têm sido informadas, e reportam todos os anos desde então, que a Coreia do Norte tem dado assistência no programa de armas químicas da Síria.
As Nações Unidas foram informadas por um dos seus membros, presumivelmente a Grécia, de que em novembro de 2009 teriam intercetado um navio mercante com 13 mil fatos protetores contra químicos e 23.600 medidores para detetar armas químicas. O carregamento teria saído do porto norte-coreano de Nampo e teria como destino Latakia, na Síria. Um mês antes, as autoridades sul-coreanas apreenderam uma carga com fatos protetores semelhantes num navio com a mesma origem, Nampo, e o mesmo destino, Latakia. Em abril de 2013, um navio com bandeira líbia foi interceptado pelas autoridades turcas. Nele as autoridades encontraram 1.400 espingardas e pistolas, 30 mil munições e máscaras de proteção contra gás.
De acordo com as Nações Unidas, os compradores seriam entidades sírias que estão identificadas como testas de ferro do Syrian Arab Republic Scientific Studies and Research Centre, que teria tido vários negócios no passado com a KOMID para a compra de material proibido ao abrigo das sanções aplicadas à Coreia do Norte e à Síria, o instituto suspeito de ser responsável pelo programa de armas químicas da Síria.
Recentemente, o New York Times antecipou que o próximo relatório de peritos das Nações Unidas que avalia o cumprimento das sanções aplicadas à Coreia do Norte, e que deve ser publicado este mês, concluirá que a Coreia do Norte estará a fornecer componentes à Síria para a produção de armas químicas, com dados que demonstram que estes componentes terão integrado a carga de pelo menos 40 navios que transportavam também componentes para a construção de mísseis e outros componentes ilegais à luz das sanções internacionais, todos com origem na Coreia do Norte e com destino à Síria. O mesmo relatório dará ainda conta de que os especialistas norte-coreanos terão estado a trabalhar em instalações identificadas como locais de produção de mísseis e armas químicas.
Mas há muito que as autoridades sabem que o regime de Bashar al-Assad tem à sua disposição um arsenal de armas químicas e biológicas. Um relatório confidencial da CIA da década de 90, desclassificado nos anos mais recentes, identificava uma capacidade de produção de armas já bem desenvolvida. O tema saltaria para a agenda mediática e para o centro das preocupações da comunidade internacional com as acusações ao regime de que estaria a usar armas químicas contra a sua própria população durante a guerra civil que se arrasta.
Uma investigação das Nações Unidas concluiu que o regime terá usado gás Sarin em cinco ocasiões ao longo de 2013, em Khan al-Assal, Saraqib, Ghouta, Jobar e Ashrafiyat Sahnaya.
O apoio norte-coreano ao regime na guerra civil da Síria terá também incluído o envio de 15 pilotos de helicóptero norte-coreanos, de acordo com a Observatório Sírio para os Direitos Humanos, algo que Assad al-Zubi, membro do grupo rebelde Exército Livre da Síria, também tem defendido publicamente. A imprensa sul-coreana diz que estes norte-coreanos terão mesmo pilotado helicópteros em ataques contra os rebeldes na cidade de Aleppo.