“Eu acho que isto é pura demagogia, porque este trabalho requer conhecimentos na área da Saúde. Não vejo qualquer interesse nisto”. É assim Isabel Cristina, enfermeira na Unidade de Saúde Pública de Santa Maria da Feira, reage ao possível recrutamento de pessoas sem ligação à área da Saúde para ajudarem os profissionais de Saúde Pública no rastreio e no acompanhamento de pessoas infetadas com o novo coronavírus e respetivos contactos.
E se alguns profissionais não veem com bons olhos esta decisão do Governo, há quem prefira encará-la como a solução possível, como é o caso do presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia. Rui Portugal, subdiretor-Geral da Saúde, por seu lado, acha que esta medida pode trazer mais recursos para as unidades de Saúde Pública, que estão “sequiosas” de pessoas, e não vê qualquer inconveniente no facto de se estarem a recrutar pessoas sem ligação à área da Saúde: “Não acho que um professor de Biologia tenha menos competências que um estudante de enfermagem.”
Mas permanece a questão: como é que o Governo tenciona operacionalizar esta medida? Este sábado, na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros extraordinário, o primeiro-ministro deu poucas pistas. Apenas anunciou que uma das medidas previstas no estado de emergência era a mobilização tanto de pessoas do setor público em isolamento profilático e de trabalhadores do grupo de risco, como de professores sem componente letiva atribuída e de militares das Forças Armadas, para ajudarem os profissionais de saúde “nas ações de rastreio e também nas ações de acompanhamento e vigilância de pessoas em confinamento obrigatório”.
Quem serão ao certo estas pessoas? Quem irá dar formação a estas pessoas? Quem irá supervisioná-las? Quantas pessoas espera o Executivo recrutar? Pouco se sabe. O Observador contactou inicialmente o Ministério da Saúde, que encaminhou as questões para o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública. Em resposta às questões colocadas, o Ministério tutelado por Alexandra Leitão indicou que “estão a ser considerados trabalhadores da carreira de assistentes técnicos, técnicos superiores e algumas carreiras especiais”, mas não foi mais específico, acrescentando que um despacho dos responsáveis pelos Ministérios da Administração Pública e da Saúde irá definir ao certo quais serão as suas funções, nomeadamente “as regras sobre o local e horário do desempenho de funções”, e como será feita a formação.
Segundo o decreto-lei que regulamenta a aplicação do estado de emergência, publicado este domingo, estas pessoas irão não só realizar inquéritos epidemiológicos, como também fazer o rastreio do contacto de doentes com Covid-19 e fazer o seguimento de pessoas em vigilância ativa. Ainda assim, o documento sublinha que a afetação dos trabalhadores a determinadas funções “deve ter em conta a respetiva formação e conteúdo funcional” e o desempenho dessas função poderá ocorrer “em local e horário diferentes dos habituais”.
Ainda na resposta enviada ao Observador, o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública explicou que só “nos próximos dias” é que o Governo irá fazer o levantamento dos trabalhadores que irão desempenhar estas funções, sendo que o recurso a estes funcionários irá depender “das necessidades que, em concreto, se forem fazendo sentir por parte da autoridade nacional de saúde, tendo em conta o evoluir da situação epidemiológica”. A verdade é que há muito que se ouve falar na falta de pessoas para o rastreio e acompanhamento dos doentes com Covid-19 e dos seus contactos.
A remuneração será a mesma que estes trabalhadores teriam no exercício das suas profissões, mas estarão “sujeitos às mesmas regras que os restantes trabalhadores que, atualmente, fazem os rastreios, designadamente, sigilo profissional“, acrescenta o Ministério.
O Governo não adianta, contudo, quantos funcionários acha que irá recrutar, nem se tal recrutamento terá um caráter obrigatório ou não. Na conferência de imprensa, António Costa indicou ainda que já foram identificadas mais de mil pessoas para o efeito: “Neste momento estão já identificado um conjunto de 915 funcionários públicos que, estando neste momento sem atividade no seu local de trabalho, por integrarem grupos de risco, mas que estão aptos naturalmente a desempenhar esta função, poderão ser mobilizados para apoiar os profissionais de saúde. E também 128 docentes sem componente letiva atribuída, que se poderão juntar também a este esforço nacional para apoiar os profissionais de saúde na capacidade de rastreamento e de vigilância”, afirmou o primeiro-ministro, na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros extraordinário.
“Medidas são péssimas para restauração e muito duras para todos. Mas são necessárias”, assume Costa
“Quem é que se vai responsabilizar pelos erros destas pessoas?”
A enfermeira especialista em Saúde Pública Isabel Cristina considera esta medida “um bocadinho irrealista”, porque o tipo de trabalho que é realizado pelos profissionais de Saúde Pública requer conhecimentos na área da saúde e isto aplica-se tanto aos inquéritos epidemiológicos, que são feitos aos casos positivos de Covid-19, como às vigilâncias ativas das pessoas que estiveram em contacto com casos positivos e que foram colocadas em isolamento profilático durante 14 dias.
“Os inquéritos epidemiológicos é um tema que é só dos profissionais de saúde e não é para qualquer um, são para os especialistas em Saúde Pública. Temos alguns colegas que não sendo especialistas nesta área estão a fazê-los, mas são pessoas com conhecimento na área da saúde, não pessoas com conhecimentos na área da História ou do Inglês”, afirma Isabel Cristina.
A enfermeira da Unidade de Saúde Pública de Santa Maria da Feira destaca ainda o facto de existirem questões que se prendem com a ética e com a deontologia dos profissionais de saúde, nomeadamente a questão do sigilo profissional e a proteção de dados, e que nada têm a ver com os códigos de outras profissões.
“Eu como enfermeira especialista nunca iria ensinar um professor ou outra pessoa que não seja da área da Saúde a fazer inquéritos epidemiológicos. Não tem a ver com a nossa idoneidade profissional. Quem é que se vai responsabilizar pelos erros destas pessoas?”
Apesar de considerar que estas pessoas poderiam dar uma ajuda no trabalho administrativo, a enfermeira reforça que não é aí que há escassez de recursos: é nos profissionais para fazer inquéritos epidemiológicos. “O que acontece é que estamos de tal maneira atrasados que estamos a permitir que os vírus ande a passear, porque não conseguimos chegar em tempo útil às pessoas. Para isso é preciso mobilizar profissionais de saúde, não outros técnicos de outras áreas.”
“Ainda temos enfermeiros especialistas em Saúde Pública que não estão em Unidades de Saúde Pública”
Catarina Alves, enfermeira na Unidade de Saúde Pública do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Baixo Tâmega, critica precisamente esta gestão dos recursos humanos, referindo que não estão a ser utilizados todos os recursos com competências para realizar os inquéritos epidemiológicos.
“Nós tivemos tempo para planear esta segunda vaga e não o fizemos. Tivemos tempo de alocar os recursos certos para os locais certos e isso não aconteceu. Ainda temos enfermeiros especialistas em Saúde Pública que não estão em Unidades de Saúde Pública, estão na prestação direta de cuidados. Primeiro tínhamos de pegar em todos estes recursos e depois pensar que outras pessoas podiam ajudar”, diz a enfermeira, acrescentando que lhe parece “pouco prudente” que estas pessoas realizem inquéritos epidemiológicos, porque não têm conhecimentos na área da Saúde.
A enfermeira, que também integra o gabinete de crise da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte desde março, não consegue perceber de que forma é que o Governo está a planear a integração destes novos recursos humanos, mas sublinha que eles poderiam ser uma “mais valia” na comunicação e na transmissão de uma mensagem mais clara aos cidadãos, algo em que o Executivo e as autoridades de saúde têm tido “alguma dificuldade” em fazer.
“Se calhar estas pessoas seriam úteis para esclarecer os cidadãos, porque há medidas que basta estudarmos para podermos elucidar a população em geral. Agora substituir os profissionais de saúde parece-me insensato.”
O presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP) assume que este não é a solução ideal, mas “atendendo ao estados das coisas, não podemos ser muito esquisitos com os recursos disponibilizados”. Tal como já tinha referido à rádio Observador, na noite de sábado, Ricardo Mexia diz que desde março que é pedida uma mobilização de recursos para as unidades de Saúde Pública e sublinha que teria sido mais fácil dar formação e integrá-los não só nas plataformas, como nas rotinas destas equipas numa altura “maior acalmia” do que agora, “no olho do furacão”.
O especialista em Saúde Pública destaca ainda que será particularmente difícil dar formação às pessoas que estão em isolamento profilático: “Uma coisa era dar formação a pessoas que até podem vir à unidade [de Saúde Pública] e depois até podem trabalhar à distância, agora estas pessoas não podem pelas suas circunstâncias — e até é por isso que estão a ser mobilizadas.”
Trabalhadores sem formação em Saúde “é o possível”
À semelhança da enfermeira Catarina Alves, o presidente da ANMSP também não sabe de que forma o Governo está a pensar operacionalizar esta medida, mas destaca algumas questões que é preciso esclarecer como o acesso aos sistemas de informação e os equipamentos de comunicações. Isto é, como é que estas pessoas vão ter acesso aos sistemas de informação e se lhes serão fornecidos telemóveis ou computadores para os contactos e para a introdução dos dados. Além, claro, de como serão formados estes trabalhadores que não têm qualquer ligação à Saúde.
“Fica por esclarecer como é que vai ser feita esta integração e principalmente quão rápido pode ser feito, porque de facto temos uma necessidade premente neste reforço e eles têm que rapidamente integrar as equipas para poderem começar a trabalhar.”
Para Ricardo Mexia, a expectativa é que estas pessoas possam retirar algum peso que carregam os profissionais de Saúde Pública na atual vigilância epidemiológica, mas isso não significa que devam fazer todos os trabalhos, especialmente aqueles que são mais técnicos, como os inquéritos epidemiológicos. Ou seja, para o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, estes trabalhadores “fariam as tarefas menos diferenciadas, que é o caso das vigilâncias ativas”.
Mas para isso não é necessário também ter alguma formação em Saúde? Para o especialista em Saúde Pública, numa primeira fase, não, dado que o que é necessário saber é se as pessoas desenvolveram sintomas e se estão a cumprir o isolamento profilático.
“Perante o surgimento de sintomas, talvez faça sentido que depois possam ser abordadas por profissionais de saúde que têm um conhecimento mais adequado para avaliar isso, mas para fazer as chamadas iniciais, dando formação, acredito que podem desempenhar essa função. Não é o ideal, longe disso, agora é o possível”, afirma Ricardo Mexia.
A enfermeira Catarina Alves, contudo, destaca um problema em relação à possibilidade de pessoas que não são da área da Saúde fazerem estas vigilâncias: “Eu não posso vigiar o meu vizinho se não for profissional de saúde. Não me parece válido que um profissional que não seja da área da Saúde vigie a saúde de uma pessoa. Para além das questões técnicas, tem a ver com as atribuições que cada profissional tem no desempenho da sua profissão. É preciso um profissional com competências atribuídas para falar de sintomas e de vigilâncias de alguém.”
A enfermeira da Unidade de Saúde Pública de Santa Maria da Feira, por sua vez, não tem a certeza de que estas pessoas sem formação na área da Saúde possam fazer as vigilâncias ativas, não pelas questões questões éticas e deontológicas, mas também porque mesmo nestas chamadas de curta duração —que duram entre “30 a 50 segundos” — é necessário ter conhecimentos de Saúde.
“Não é fazer um telefonema e dizer à pessoa para ficar ou não ficar em casa. Os familiares dos casos positivos ficam num stress tremendo e é preciso avaliar, perceber o que está por detrás daquele stress e o que podemos fazer para minorar esse stress e essa ansiedade. Há muita questões aqui em que é preciso ter conhecimento e competências na área da Saúde. Parece-me que é muito leviano e muito brejeiro este tipo de medidas que, se forem para a frente, não sei como vamos fazer.”
Atualmente este trabalho de vigilância é feito pelos internos de medicina e pelos alunos de enfermagem. À rádio Observador, Isabel Cristina já tinha criticado esta solução do Governo para tentar resolver a falta de recursos humanos: “Falta-lhes experiência, falta-lhes tato. Não quer dizer que não tenham conhecimentos técnicos e que não os possam aprender, mas falta-lhes este jogo de cintura que tem a ver com a relação do técnico que está atrás do telefone para com a pessoa”, afirmou a enfermeira sobre os alunos de enfermagem.
“A única coisa nova é o recrutamento de pessoas com outras competências”
Já Rui Portugal, não tem a mesma perspetiva. Ao Observador, o subdiretor-Geral de Saúde considera que os internos de medicina “são absolutamente extraordinários” para os rastreios e destaca os “enormes reforços” em termos de recursos humanos que todas as unidades de Saúde Pública tiveram ao longo dos últimos meses, não só através dos recursos “mobilizados pelos próprios agrupamentos de saúde pública”, mas também através de outros recursos como os alunos de enfermagem e médicos que ainda estão a fazer a sua formação geral.
O especialista em Saúde Pública, que não vê dificuldades na operacionalização desta medida, considera o rastreio uma tarefa “relativamente simples” e sublinha que a Direção-Geral de Saúde (DGS) tem cursos online precisamente sobre o tema. Uma vez feito esse curso, as pessoas poderão ser integradas nas equipas de Saúde Pública, ainda que o seu trabalho tenha de ser supervisionado. “Há uma formação, uma distribuição de tarefas e uma gestão desses recursos. Isto são os procedimentos que já foram adotados há algum tempo, não é novo. A única coisa nova é o recrutamento de pessoas com outras competências, que entretanto vão ser treinadas.”
E o facto de não terem uma formação em Saúde, para Rui Portugal, não é um problema, porque considera que “uma pessoa letrada” consegue adquirir novas competências “com muita rapidez” desde que tenha uma boa formação.
Também Ricardo Mexia sublinha que se se tratam de funcionários públicos que desempenhavam outras funções, mas que por “terem doenças de base estão confinados em casa, estes “têm algumas competências” e acrescenta que outros países também recrutaram rastreadores que não eram da área da Saúde.
“Pessoas que tenham competências na área social — psicólogos, assistentes sociais — são ótimas para fazer rastreios. Todas as pessoas que tenham um mínimo atendimento público”, afirma o subdiretor-geral de Saúde ao Observador, acrescentando que um professor de Biologia tem tantas competências quanto um estudante de enfermagem. “Se eu tivesse a gerir, se calhar punha os profissionais a fazer o rastreio de jovens adultos e adolescentes, que estão muito melhor equipados do que outros, do que os estudante de enfermagem eventualmente.”
“Não temos profissionais” para dar formação
No entanto, na perspetiva da enfermeira da Unidade de Saúde Pública de Santa Maria da Feira, não será assim tão simples dar a formação necessária a estes recursos humanos. Não só porque os profissionais de Saúde Pública já estão assoberbados de trabalho, como porque se está a pedir para formar pessoas que não têm qualquer ligação à área, sendo que isso nem sequer é uma tarefa fácil com outros profissionais de saúde.
“Temos que pensar que os profissionais de Saúde Pública estão esgotados, estão a trabalhar até às 11h da noite, muitos deles num stress louco, porque os casos não param de aumentar e não temos tempo para parar um dia ou dois para fazer formação a pessoas que não são da área. Não temos profissionais para isso.”
Ricardo Mexia assume que, para que seja dada esta formação, os profissionais de Saúde Pública vão ter de deixar o seu trabalho de lado, pelo menos durante algum tempo, sendo que se esta formação tivesse sido feito “durante o tempo mais calmo”, haveria “maior disponibilidade”. “Agora a formação terá de ser dada por profissionais que, numa fase inicial, terão de desviar tempo de tarefas nucleares — dos inquérito epidemiológicos ou de outras tarefas — na expectativa que depois possam assumir algumas das tarefas e reduzir a carga para a Saúde Pública.”
Quanto aos cursos online referidos por Rui Portugal, para a enfermeira da Unidade de Saúde Pública de Santa Maria de nada servem sem que haja competências na área da saúde: “Isso não se ganha num curso online”, sem competências e sem treino, diz. Também a enfermeira do ACES Baixo Tâmega sublinha que esta formação seria suficiente para profissionais da área da Saúde, mas não para quem esteja fora desta realidade.