“Este arranque do 3º período mais parece o início de um ano letivo”, resume Susana Mancelos, mãe de duas raparigas, a Carolina, que frequenta o 9º ano da Escola Secundária Sebastião e Silva, e a Constança, aluna do 6º ano da Escola Básica de São Julião da Barra, ambas em Oeiras. Tal como elas, mais de um milhão de alunos do ensino básico e secundário regressaram esta terça-feira, dia 14, à escola através dos ecrãs de computadores, telemóveis e tablets.
As duas alunas tiveram o primeiro dia preenchido com aulas. A Carolina, de 14 anos, arrancou às 10h10 com uma aula de físico-química através de videoconferência. O convite para entrar na plataforma digital Cisco Webex (a escolhida pela autarquia para o modelo de aulas à distância) foi enviado aos alunos na véspera. À hora marcada, e durante 50 minutos, toda a turma, sem exceção, reuniu-se na “sala de aula” e o professor até deu matéria nova.
Já Constança, de 11 anos, não teve aulas por videoconferência, mas não lhe faltaram trabalhos para fazer em casa. As fichas de inglês, português e matemática já estavam na plataforma Inovar, logo de manhã, à sua espera. Juntamente com o sumário das aulas. Esta terça-feira, também o dia dela arrancou às 10h. Ou melhor, até começou mais cedo porque às 10h, quando ligou o computador, já estava vestida, com o quarto arrumado e o pequeno-almoço tomado. Tal e qual como se fosse para a escola – com a vantagem de não ter de se levantar às 7h00. Este ensino em “modo casa” não segue à risca o horário escolar. As tarefas têm é de estar prontas até ao final do dia. Esta terça-feira, por exemplo, durante a tarde nenhuma das irmãs teve aulas online. Aproveitaram o tempo para ler ou concluir os trabalhos.
“Para eles é tudo natural. Os pais é que estão ansiosos e têm mais dúvidas. Penso que têm receio que este seja um ano perdido. O que não me parece. Apenas não se pode querer que seja igual a um ano normal”, diz Susana. Durante a manhã, Carolina só comentou com a mãe que viu o quarto dos amigos no ecrã do computador, enquanto decorria a aula. E que também eles viram o dela. Mas quanto a isso, ainda não tinha uma opinião formada.
Por volta das 12h, esteve online na aula de educação física. A conversa foi curta, apenas para a professora frisar que a partir de segunda-feira, dia 20, começam as emissões do #EstudoemCasa (espaço que vai ocupar a grelha da RTP Memória das 09h às 17h50) e que os estudantes terão de acompanhar as aulas transmitidas pela televisão. Isto apesar de os conteúdos programáticos para os alunos do ensino básico continuarem desconhecidos dos professores.
Através da grelha, já divulgada pelo Ministério da Educação, percebe-se que as disciplinas estão agrupadas para cada dois anos de escolaridade (com exceção do 9.º ano). Este é o modelo que se vai manter enquanto as aulas presenciais estiverem suspensas, segundo explicou o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, em entrevista à RTP: “Como não era possível chegar a todos os alunos através dos meios mais tecnológicos, vamos poder fazê-lo pelos meios mais tradicionais”.
Os números confirmam-no: Internet ou equipamentos informáticos não são recurso para 5% dos agregados familiares com filhos até aos 15 anos. Por outro lado, 83% dos lares têm televisão por cabo – sendo que o canal RTP Memória é também emitido na Televisão Digital Terrestre
Apesar de Oeiras (juntamente com Lisboa e Cascais) ser um dos municípios onde se concentra o maior número de famílias com rendimentos elevados, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, a autarquia fez um levantamento das necessidades dos mais de 20 mil alunos que ali estudam e concluiu que existiam 1.914 jovens e 30 professores que não dispunham dos meios necessários para acompanhar este processo letivo. A todos a autarquia entregou equipamentos (tablets, computadores portáteis e smartphones), câmaras, microfones e routers para aceder à Internet.
Não foi o caso da Carolina ou da Constança. Cada uma tem o seu próprio computador com acesso à internet. Não precisam sequer de o partilhar. Nem com os pais, os dois em casa em teletrabalho. “Só assim é possível fazer uma gestão familiar. De outra forma, não dava”, assume a mãe. Apesar de ter um horário flexível que lhe vai permitindo acompanhar o estudo das filhas ao longo do dia, ou esclarecer alguma dúvida, é graças a uma grande dose de disciplina que também ela se senta ao computador, todos os dias da semana, a partir das 8h30 e o dá por terminado às 18h/18h30. E é isso que também tenta incutir nas duas jovens.
“É importante aproveitar esta altura para lhes dar mais autonomia. Tenho sorte porque a Carolina é muito atenta nas aulas e concentra-se na hora de estudar. A Constança até pode ser mais distraída, mas não preciso de lhe pedir mais do que uma vez para concluir os trabalhos”. Só o uso do telemóvel durante as “aulas” é que terá de ser revisto neste 3º período. “Vejo-a a trocar mensagens com as amigas ou no Instagram. E isso agora não é compatível com o estudo porque os professores vão começar a dar matéria nova. O que não aconteceu no final do 2º período, quando já estavam em casa. Só tinham fichas para fazer”.
“Agora, se não formos à escola ninguém morre”
A mais de trezentos quilómetros de distância, em Guimarães, Bernardo, de 11 anos, aguarda ainda o arranque do 3º período. O aluno da Escola EB 2,3 João de Meira sabe que foi esta terça-feira, dia 14, mas a semana ainda lhe sabe a férias de Páscoa. Ao contrário de Carolina ou Constança, que já estão a adaptar-se à nova rotina, Bernardo só tem a leitura do livro “Os Piratas”, com 96 páginas, para concluir. Depois, é preencher e enviar a ficha de trabalho que a professora de português já lhe reencaminhou.
Só na segunda-feira, dia 20, coincidindo com o arranque da telescola (ou #EstudoemCasa), é que o corpo docente vai estar em condições para dar início ao ensino à distância. Quando esse dia chegar, já está preparado. Em casa não lhe falta computador com acesso à Internet ou smartphone. A impressora chegou nas últimas semanas.
Na mesma situação está a sua irmã Marta, de 17 anos. A aluna do 12º ano, no Liceu de Guimarães, nem um livro tem para ler. E está assim há 15 dias. A mãe, Eduarda Alves, já lhe chama uma “versão relax” do ensino em Guimarães. Esta professora de físico-química, mãe de três filhos e diretora do agrupamento de escolas de Celorico de Basto, conhece bem os bastidores das escolas e desvaloriza, por isso, alguns problemas para os quais os pais não se cansam de apontar o dedo. Como as avaliações. Ou as metas curriculares: “Este é um ano letivo como nunca se viu. A opção era fechar as portas e mandar todos os alunos para casa. Todo o trabalho extra que se está a fazer online, já é lucro. É assim que se deve olhar para o problema”. E quando as saudades das aulas presenciais apertam, recorda o que lhe foi transmitido durante uma formação online: “Agora, se não formos à escola ninguém morre. Mas se mandarmos os alunos para a escola, alguém pode morrer”, conclui.
Apesar de ter deixado de dar aulas desde que assumiu o cargo de direção, há quase dois anos, sente uma responsabilidade pelo percurso educativo dos 1.917 alunos (dos 3 anos 18 anos) que estudam nas 18 escolas de Celorico. É para que nada lhes falte que trabalha todos os dias. Desde que as escolas encerraram, a 16 de Março. E recorda-se bem das suas primeiras prioridades – porque continuam a ser as mesmas.
“Não estou preocupada com os programas educativos. A minha preocupação são os alunos com carências. Numa primeira fase, foi preciso acautelar os que tinham carências alimentares e que precisavam do apoio social da escola. Depois, fizemos um levantamento das famílias com carências tecnológicas. Algumas não tinham computadores ou Internet por motivos financeiros. Enquanto que outras vivem em zonas onde simplesmente não há rede”, explica a professora Eduarda.
Conclusão: cerca de 200 famílias (10%) da população estudantil não tinha acesso às metodologias digitais necessárias para a concretização do ensino à distância. Tal como fez a Câmara de Oeiras, e muitas outras autarquias espalhadas pelo país, também Celorico de Basto se mobilizou para oferecer 150 tablets e 130 Hotspots e Pens a quem mais precisava.
“Ninguém fica para trás por motivos financeiros”
São mais de 54 mil alunos, dos 6 até aos 15 anos de idade, sem acesso às ferramentas digitais necessárias para o ensino à distância, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística. Mas Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares, fala em mais de 200 mil os alunos prejudicados com a interrupção do ensino presencial. “A falta de acesso às novas tecnologias pode atingir um em cada quatro alunos”, assumiu em declarações à Lusa. “Isto porque há alunos que não têm computador ou possuem uma ligação deficiente à Internet, nomeadamente no interior do país ou em zonas montanhosas”.
Em Celorico de Basto, esta terça-feira, começaram a ser entregues os primeiros aparelhos informáticos. O que significa que “ninguém vai ficar para trás” por motivos financeiros ou tecnológicos. E na próxima semana, todos os alunos já vão poder participar nas aulas online ou por videoconferência que fazem parte da metodologia de ensino utilizada nas escolas de Celorico de Basto.“Em termos informáticos, estamos na vanguarda”, assume Eduarda, ao mesmo tempo que partilha os louros com o marido, professor de informática numa das escolas do agrupamento. E com toda a equipa de docentes.
Admite que é graças ao trabalho desenvolvido ao longo das últimas semanas que 90% dos alunos conseguiram estar, esta terça-feira, às 9h em ponto, em frente ao computador a dar as boas-vindas online ao professor. Mas se for preciso, também se utiliza o telefone para contactar a família de um aluno. Ou outro meio de comunicação alternativo. Não pode é haver nenhum “preconceito”. Porque o mais importante é manter o diálogo, diz.
Ao final do dia, apesar de alguns problemas técnicos que surgiram no momento em que os alunos queriam entrar no Teams (a plataforma do Office 365 que as escolas estão a utilizar), a diretora do Agrupamento de Celorico sentia-se realizada. E recordava aqueles primeiros dias após o encerramento das aulas, a 16 de Março. “Foi como se de repente alguém tivesse gritado ‘bomba’ e todos, professores e alunos, começássemos a correr em várias direções”. Um mês depois, é na reinvenção da palavra equidade que está o segredo. “Não é dar o mesmo a todos os alunos, é dar a cada aluno aquilo que precisa para chegar onde todos chegam”.