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Não, sim, não. A dança decisória do Tribunal Supremo de Angola sobre a abertura do ano judicial é um dos sinais visíveis do momento de confusão que o topo da justiça angolana atravessa.
Na segunda-feira, a dois dias da cerimónia, o mais alto órgão judicial do país desmarcou a cerimónia agendada para esta quarta-feira, dia 1 de março, por razões técnicas. Algum tempo depois anunciava que afinal sempre se ia realizar pois os problemas técnicos já estavam ultrapassados. Mas na terça-feira de manhã, o secretário-geral do Tribunal Supremo confirmava ao Observador que essa informação fora “revogada” sine die. “A cerimónia solene da abertura do ano judicial 2023 foi adiada para data a anunciar oportunamente”, respondeu Altino Kapalakayela. Desta vez sem qualquer justificação técnica ou outra.
Na verdade, o Tribunal Supremo — que também está envolto numa forte polémica, sob um inquérito judicial de extorsão e tráfico de sentenças — ficou no meio de um braço-de-ferro entre dois inquilinos de dois palácios cor-de-rosa vizinhos: o Presidencial e o de Justiça, onde funciona o Tribunal de Contas (TdC). O impasse terminou esta quarta-feira: a presidente do Tribunal de Contas renunciou ao seu cargo e de juíza conselheira, depois de dois dias intensos, a culminar duas semanas de jogo de forças com João Lourenço.
Ao fim da tarde de segunda-feira, um comunicado-bomba do Presidente de Angola, a partir do Palácio da Cidade Alta, tornava oficial o que até então era oficioso. Disse ao mundo que “tem vindo a acompanhar com alta preocupação” as “ocorrências” que envolvem o nome da presidente do TdC, Exalgina Gambôa. Não dizia quais, mas na nota de imprensa colocada na página da Presidência de Angola no Facebook sublinhava que são “suscetíveis de comprometer o normal funcionamento deste importante órgão do poder judicial e manchar o bom nome da Justiça angolana”.
Por isso, no seu papel constitucional de “promover e garantir o regular funcionamento dos órgãos do Estado” e na defesa dos “mais altos interesses” de Angola, o Presidente decidiu retirar a confiança política a Exalgina Gambôa. Mais, no comunicado explicava como a juíza conselheira tinha sido convidada a demitir-se no dia 21 de fevereiro e ainda não o tinha feito.
No dia 22, a juíza entregara no Palácio da Cidade Alta uma carta a colocar o seu lugar de chefe do TdC à disposição. No texto, Exalgina Gambôa invocava “as suspeitas de irregularidades veiculadas pelas redes sociais dirigidas contra o cargo e a instituição” que representa para tomar essa decisão, “no interesse e salvaguarda do bom nome da justiça angolana”.
O que a juíza conselheira não disse é que corria um inquérito da Assembleia Nacional, depois de o jornalista e ativista Rafael Marques ter feito uma denúncia, no ano passado, sobre má gestão de fundos públicos, tanto ao Parlamento quanto à Procuradoria-Geral da República. Desde junho de 2022 que o também fundador da organização não governamental Ufolo publica no MakaAngola trabalhos de investigação que envolvem Exalgina Gambôa. Revelou, por exemplo, que a juíza conselheira gastou mais de 3,7 milhões de euros em mobílias para a sua casa, e como o TdC se “transformou na agência de viagens gratuitas” para a presidente e os seus três filhos entre Luanda e Lisboa. Também o Africa Monitor e o Correio Angolense noticiaram que as contas de um dos seus filhos em Portugal, alegadamente com dinheiro do Tribunal de Contas, tinham sido congeladas.
Se fosse jubilada, a juíza conselheira não podia ser presa preventivamente
Nessa primeira carta que Exalgina Gambôa deixou em mãos na Presidência (a economista não foi recebida por João Lourenço), a ex-deputada do MPLA dizia-se “apta a continuar a exercer” as sua funções de juíza conselheira do TdC, lembrando que fora empossada depois “de concurso público realizado pelo Conselho Superior da Magistratura em 2018”.
Ou seja, a antiga deputada do MPLA deixava de ser presidente do TdC mas não abandonava o seu lugar de juíza, recusando claramente a indicação que João Lourenço lhe tinha dado no dia 21. O Presidente não gostou e disse-o publicamente no dia 27, no já referido comunicado.
No mesmo dia, a juíza conselheira escreveu nova carta. Não com a demissão, mas a pedir a jubilação antecipada. Não a invocar as suspeitas que pairam sobre si, mas a falar de problemas de saúde “que têm interferido negativamente no desempenho das suas funções”.
Pedindo a reforma, Exalgina Gambôa manteria, de acordo com a Lei nº.7/94 (Estatuto dos Juízes) o salário por inteiro, bem como as regalias dos magistrados, incluindo a imunidade judicial, que a impedia de ser presa preventivamente.
Mas se o Presidente não tem poderes para a demitir — apesar de ter sido ele a escolhê-la de entre três nomes propostos pelo Conselho Superior de Magistratura Judicial (CSMJ) — também não os tem para a reformar. Porque é que Exalgina Gambôa pediu então a jubilação a João Lourenço? “Porque está completamente perdida” respondeu ao Observador Rui Falcão, porta-voz do MPLA, o partido no poder há 48 anos. “Tem é que fazer esse pedido ao CSMJ, o órgão que decidirá se a jubila ou não”. E caberia também a este órgão decidir se a economista continua como Presidente do TdC ou como juíza.
Um processo que, depois desta terça-feira, podia ser acelerado. Pouco mais de meio dia após a carta de jubilação de Exalgina Gambôa, a PGR, tutelada pela Presidência da República, emitia um comunicado a informar que a juíza tinha sido constituída arguida por suspeitas de peculato, extorsão e corrupção bem como um dos seus filhos (este por alegada prática dos dois últimos crimes).
Presidente do Tribunal de Contas de Angola e filho foram constituídos arguidos
O Procurador-Geral da República (que está demissionário desde dezembro e ainda não sabe se a sua demissão foi aceite) informava que “em reação a informações e denúncias públicas de que teve conhecimento abriu um processo de inquérito” e que terminado este, “e em função dos factos apurados” instaurou um processo-crime à juíza e ao seu filho Hailé da Cruz.
A acareação com os ministros no Palácio da Cidade Alta
Independentemente do processo-crime, o impasse continuava. E Exalgina Gambôa — a única (que se saiba) do círculo de amigos próximos de João Lourenço que ousou fazer-lhe frente desta forma — mantinha (ainda) o braço-de-ferro com João Lourenço.
Competia então ao Conselho Superior de Magistratura Judicial — liderado por Joel Leonardo, também ele debaixo de um inquérito judicial, lembra Rui Falcão — decidir o destino da juíza. A menos que a magistrada se demitisse, entretanto. O porta-voz do MPLA admitia na terça-feira de manhã ao Observador que Exalgina Gambôa estava a resistido a sair, mas acreditava que isso seria “efémero”, apesar de lembrar que a retirada da confiança política, na segunda-feira tornada pública, já acontecera em privado, há uma semana. E assim foi: ao meio dia desta quarta-feira a Presidência da República fazia saber que a juíza tinha apresentado a sua renúncia e que esta tinha sido aceite.
Mais uma vez, não se percebe como é que o pedido de renúncia é apresentado ao Chefe de Estado quando deveria ser o CSMJ a fazê-lo e como, nessa circunstância, João Lourenço o aceita. No comunicado à imprensa do Tribunal de Contas apenas é dito que “Exalgina Renée Vicente Olavo Gambôa apresentou a sua renúncia ao cargo ao Presidente da República com conhecimento ao Conselho Superior de Magistratura Judicial”.
As conversas com João Lourenço sobre este assunto não começaram esta semana. Numa reunião ocorrida no dia 14 de fevereiro no Palácio da Cidade Alta, Exalgina Gambôa terá sido sujeita a uma reunião de acareação, avançou o MakaAngola. “Uma coisa nunca vista num Estado de Direito”, comenta um analista político sob reserva de identidade.
Segundo o relato de Rafael Marques, em causa estariam exigências da juíza e dos seus filhos de “percentagens em negócios e alegados atos de chantagem para aprovação de contratos ministeriais submetidos à fiscalização preventiva do Tribunal de Contas”.
No encontro com João Lourenço, estavam também os ministros dos Petróleos e Recursos Minerais e da Energia e Águas, o Procurador-Geral da República, Pitta Groz, e, “como testemunhas, a presidente da Assembleia Nacional e a vice-presidente do MPLA, Carolina Cerqueira e Luísa Damião”.
Aí, “no topo de várias denúncias de corrupção, o Presidente tomou conhecimento de que Exalgina Gambôa convocou o ministro dos Petróleos e Recursos Minerais para exigir que este a incluísse, com 1%, na estrutura acionista da Refinaria do Lobito. Alegadamente, disse ter tido a anuência de João Lourenço para merecer a percentagem no negócio de refinação de petróleos”, escreveu Rafael Marques, citando fontes fidedignas.
Quanto ao filho Hailé Cruz, “terá contactado o ministro da Energia e Águas para exigir o negócio multimilionário de construção das linhas de transmissão de alta tensão no projeto de electrificação do país”.
“O direito de não sair pobre do cargo”
Nessa reunião, ainda de acordo com Rafael Marques, Exalgina Gambôa terá argumentado com o direito de “não sair pobre do cargo”. Segundo o ativista, a juíza seguiu o raciocínio de que o “uso dos cargos públicos pelos seus titulares para enriquecimento [ilícito] pessoal é uma prática corrente e as suas exigências percentuais para aumentar a sua riqueza não fugiam às regras comportamentais da generalidade dos titulares de cargos públicos”, conta Rafael Marques.
O que aqui parece muito linear, pode não o ser, avisa o analista que falou com o Observador sob anonimato. “É preciso não esquecer que o Tribunal de Contas fiscaliza os contratos públicos e que tem colocado algum travão em alguns casos ao governo”. De acordo com esta fonte angolana, os “dois ministros que estiveram presentes nessa acareação, o dos Petróleos e Recursos Minerais e o das Energia e Águas têm sido os que mais se têm queixado ao Presidente de o TdC estar a criar bloqueios nos contratos e a impedir a concretização de muitos projetos”.
As denúncias de alegadas irregularidades de Exalgina Gambôa não são de agora e João Lourenço tem sido muito criticado por nada fazer durante tanto tempo. “O Presidente não pode agir em função das redes sociais, os trâmites legais e institucionais têm de ser seguidos”, começa por responder Rui Falcão, para a seguir explicar “que só agora é que a PGR fez chegar ao titular do poder executivo os resultados do inquérito aberto”. Quando teve conhecimento, diz o porta-voz do MPLA, o Presidente foi perentório com a juíza: “A senhora tem de sair do TdC”. Ela não saiu logo, só depois de ser constituída arguida.
Exalgina Gambôa não é a primeira magistrada a viver um confronto com João Lourenço. Rui Ferreira, o anterior presidente do Tribunal Supremo também foi convidado a sair pelo Chefe de Estado, também resistiu numa fase inicial, mas depois acabou por se demitir, evitando assim mais problemas. A economista escolheu de início um caminho contrário e acabou por ser mais exposta à opinião pública e ao desagrado público do Presidente. “Não são os jornais que julgam uma pessoa. Vamos ver o que dizem os tribunais sobre as suspeitas que a atingem, uma coisa é o Ministério Público, outra a apresentação de provas perante um juiz”, diz o analista sob reserva de identidade.
Rui Falcão apela a que os processos — tanto o do TdC quanto o do Supremo — “sejam céleres, para que as decisões possam reduzir a mancha que eles mesmos [os titulares dos dois tribunais] lançaram sobre as instituições”. A crise que está a afetar a justiça angolana “é um problema muito sério, vai deixar marcas para o sistema judicial, mas são os seus atores principais que estão envolvidos nas suspeitas de má gestão de fundos, tráfico de sentenças e corrupção”. A responsabilidade, frisa, não é de João Lourenço, que “não podia fazer outra coisa” diferente do que fez, devido à separação constitucional de poderes.
Talvez agora a cerimónia de abertura do novo ano judicial conheça nova data. O lema deste ano é “Pela Efetivação da Autonomia Administrativa e Financeira para Fortalecer a Eficiência e a Eficácia dos Tribunais”. Estava previsto que João Lourenço discursasse. Já não terá seguramente Exalgina Gambôa na fotografia de família em frente ao Palácio da Justiça. E Joel Leonardo, o presidente do Tribunal Supremo? E o conhecido Procurador-Geral da República, Pitta Gróz?
(texto atualizado às 16h07 com a informação de que foi João Lourenço quem escolheu o nome de Exalgina Gambôa para o lugar e com o comunicado do Tribunal de Contas)