Vera Amaro cuida do filho desde que ele nasceu, há 32 anos. A história é longa e difícil. Com apenas dois anos, a terrível notícia de um tumor no cérebro de Ricardo, que teve de fazer radioterapia e quimioterapia. Aos dez anos, outro tumor, agora na coluna, que navegou para os pulmões. Pouco depois, um linfoma. Vários problemas de saúde, tratamentos atrás de tratamentos. Nos últimos tempos, a situação tem piorado. No ano passado, entre abril e junho, Ricardo teve seis AVC. E Vera sempre ao lado do filho.
“Agora tem sido mais grave”, diz. Há cerca de um ano, detetaram-lhe uma massa nas artérias do coração, a seguir uma lesão degenerativa ao nível do sistema nervoso central que o faz perder massa encefálica. “Procuro respostas, segundas opiniões, pelo meu filho vou ao fim do mundo.” Ricardo tem 96% de incapacidade, precisa da mãe dia e noite.
Vera é cuidadora a tempo inteiro, mãe de três filhos. Nos 32 anos de vida de Ricardo, passou mais tempo no IPO de Lisboa do que fora dele. Todo o tempo somado, terão sido seis anos sem estar naquele edifício, deixando por longas temporadas a casa em Faro, no Algarve, onde mora com dois dos filhos: Ricardo, que é o mais velho, e com o mais novo de 13 anos. O do meio, de 22 anos, já tem a sua vida.
A ocupação profissional foi intermitente, chegou a abrir um gabinete de estética, mas há seis anos teve de deixar de trabalhar. Ricardo estava a piorar, na instituição onde o deixava algumas horas do dia chamavam-na com frequência, o filho sentia-se mal. “É muito frustrante ter de deixar de trabalhar. Estava muito em baixo, tinha perdido as esperanças de tudo, uma pessoa sente-se impotente.” Está separada do pai de Ricardo há muitos anos, vive com o subsídio do cuidador informal e a pensão de invalidez do filho.
Sabia que tinha de partilhar o que sentia e procurou apoio. “Conheço muito bem os meus limites, sei quando tenho de pedir ajuda. O nosso cérebro e as nossas emoções pregam-nos muitas partidas.” Em outubro do ano passado, Vera Amaro ligou para a Linha de Apoio Psicológico para Cuidadores Informais e foi encaminhada para consultas de psicologia online, que frequenta desde então, de duas em duas semanas. “Esta ajuda é um diamante em bruto para quem precisa.” As conversas têm-lhe feito bem, dado uma certa tranquilidade. “É uma descarga de emoções, deito para fora o que não faz falta cá dentro. Conversamos sobre a minha situação e eles [os psicólogos] estão sempre lá para mostrar as coisas de outra maneira. Quando falo com eles, fico mais leve, mais relaxada.”
A Linha de Apoio Psicológico para Cuidadores Informais surgiu em setembro de 2023, iniciativa da Europacolon Portugal – Apoio ao Doente com Cancro Digestivo, para dar suporte emocional e psicológico a cuidadores de pessoas com doenças crónicas. Está disponível a cuidadores de todo o país através dos números 960 199 759 e 808 200 199, de segunda a sexta-feira das 10h00 às 12h00 e das 15h00 às 18h00. O custo é de uma chamada local. Até ao momento, recebeu 250 chamadas, 150 feitas por mulheres, e realizou 77 consultas, 42 presenciais e 35 online, a cuidadores encaminhados para consultas de psicologia. Os casos mais complicados são encaminhados para esta resposta gratuita. A média de idades dos cuidadores é de 59 anos.
Rafael Fernandes ligou para a linha no fim do ano passado e passou a ser seguido em consultas de psicologia, primeiro semanalmente, a partir de maio de 15 em 15 dias. “A minha situação era muito urgente”, admite. Cuidou da mãe nos últimos três anos. Em 2008, Sandra Bertelli, de 49 anos, teve um acidente de viação, ficou paraplégica, esteve 11 meses internada, chegou a estar acamada ano e meio. Em 2021, Rafael estava a treinar uma equipa de futebol em Espanha, estava tudo acertado para a mãe ir morar com ele, tudo preparado… e ela sofreu um enfarte.
Os planos mudaram. De repente. Rafael Fernandes deixou o trabalho, fez as malas, regressou a Coimbra para cuidar da mãe. Tornou-se cuidador permanente, mesmo com apoio domiciliário. “Quando há uma dependência muito grande, acabo por estar 24 horas sempre em alerta.” Sempre disponível. A sua vida deu uma grande volta. Deixou de trabalhar na sua área, ainda chegou a ter um emprego noutro setor, não tinha praticamente vida social. Estava de rastos, deprimido, sozinho a cuidar da mãe. “Era o contexto, por não ter contacto com o meu pai há dez anos, pela ausência do meu irmão a trabalhar na Bélgica, sem namorada e sem amigos.” Decidiu procurar ajuda psicológica, tinha visto um cartaz com o número da linha telefónica para cuidadores. “Já não conseguia mais, já tinha passado dos meus limites. Quando a nossa cabeça anda com tanta coisa agarrada, é natural que a vida não vá para a frente.”
“Estava a arrastar-me e já não sabia para que lado ir”
André Louro é psicólogo clínico e investigador. Está do outro lado desta linha telefónica, que garante confidencialidade, que encara como um espaço seguro para expor preocupações, medos, emoções, e que ajuda a lidar com os desafios diários de quem cuida. Tudo através de apoio emocional, orientação psicológica, informações e estratégias. “Há uma certa vergonha que é preciso desmistificar que é preciso pedir ajuda. Muitas vezes, os cuidadores já nos chegam num estado lastimável, como último recurso.” Deprimidos, emocionalmente exaustos, em sobrecarga física e mental, isolados socialmente, em stress e ansiedade, em processos de luto, alguns com ideias suicidas.
Cuidadores cansados, que não conseguem dormir, sempre em estado de alerta com receio de que a mãe, o pai, o filho, a filha, se levantem sozinhos e não saibam onde estão, ou queiram ir à casa de banho, ou precisam de medicação àquela hora certa. Cuidadores que quase não saem de casa, que deixaram de ter vida social, que largaram o emprego para cuidar. Cuidadores sem férias, sem tempo para si, com dificuldades em gerir o tempo. A cada chamada, uma história.
Como a de Matilde, cuidadora de várias pessoas da família. Quer contar a sua história, mas pede para lhe mudarmos o nome, para proteger os seus. Em 2018, a mãe teve um AVC, ficou com mazelas ligeiras, saiu do hospital e veio para casa. Uma semana depois, o marido fica a saber que tem um linfoma e inicia os tratamentos. “Estava em cuidados com a minha mãe e com o meu marido.” Entretanto, o pai faz uns exames médicos e tem de mudar três válvulas no coração. O marido acaba o tratamento, o pai é operado. Tudo em meio ano. “Sempre com amor, com muita fé, sempre focada na cura, no que era essencial, colocando as minhas emoções e os meus sentimentos de parte.” A guardar tudo dentro de si.
Entretanto, veio a pandemia e o mundo fechou-se em casa. “Vivíamos os quatro, estávamos juntos, todos em recuperação”, recorda. Estranhamente, confessa, foram os melhores momentos da sua vida. Em 2022, os quatro apanharam o vírus, ultrapassaram aparentemente bem a Covid-19. Meio ano depois, já em 2023, o pai piorou. “Foi internado e já não voltou.” O luto tem sido um processo difícil. Matilde é filha única, moravam os quatro na mesma casa, agora são três. O marido disse-lhe para ligar para a linha de apoio psicológico para cuidadores. “Estava mesmo a precisar de toda a ajuda e mais alguma. Com a partida do meu pai, estava a arrastar-me e já não sabia para que lado ir.”
O luto é um dos casos que chegam à linha. “Há cuidadores em processos de luto, estavam sobrecarregados e, de repente, não têm nada e não sabem o que vai ser da sua vida”, diz André Louro. “Nos casos de burnout, acaba por haver uma certa despersonalização, uma certa negligência, chegam a um ponto em que já não conseguem dar apoio”, acrescenta. A linha tenta minimizar a sobrecarga emocional dos cuidadores informais, muitos sem rede familiar ou suporte comunitário, bem como capacitar os cuidadores com conhecimentos e recursos para melhor lidarem com o dia a dia. “Os cuidadores informais têm uma espécie de trabalho 24 horas por dia, a disponibilidade é diminuta, a vantagem da linha é que podem ligar quando necessitam”, diz o psicólogo. Um número sempre ligado, um apoio permanente.
Patrícia Oliveira é psicóloga, também atende chamadas e escuta cuidadores. Há preocupações que vêm à superfície, medos constantes, desabafos de quem sofre. “Há pais já idosos, cuidadores de filhos, preocupados porque não conseguem um local para os institucionalizarem.” E que pensam constantemente no que vai ser dos filhos depois de partirem. Há mães e pais a cuidar de crianças doentes. Filhos a cuidar da mãe e do pai. Cabeças que não sossegam e que podem chegar ao limite. “Por vezes, há situações de ideação suicida em momentos de elevados níveis de stress, em que partilham essas ideias”, adianta a psicóloga.
Matilde ligou para a linha no ano passado, contou o que se passava, foi encaminhada para as consultas de psicologia. Inicialmente, todas as semanas; depois, mais espaçadas. Sente que está melhor e já voltou a trabalhar. Um apoio à distância de um telefonema, consultas de psicologia presenciais e gratuitas no espaço da Europacolon, no edifício do núcleo regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro, no Porto. “Ir a um privado é caríssimo.” Sai com outra energia. “Sinto que tenho melhorado bastante, sinto bastante apoio, são profissionais [os psicólogos] competentes, que estão lá sempre que é preciso.” “Sinto-me aliviada, penso ‘esta já está’, já contei, sou encorajada a pensar de forma positiva, a focar-me no que é essencial e prioritário.” Matilde agradece o apoio. “Se deixamos de estar para nós, não estamos para os outros.”
“Sempre em sobressalto, não dá para desligar”
O apoio psicológico tem sido importante para Rafael Fernandes sair do sítio onde tinha mergulhado. “Está a ser fundamental. O isolamento social faz muito mal à saúde mental”, diz. Conta que aprendeu imenso nos últimos anos como cuidador da mãe, que despertou para muitas outras coisas na vida, que pode ser um testemunho na área da saúde mental. Rafael garante que a terapia o tem salvado, apesar de ter demorado a decidir partilhar o que sentia. “A desabafar, a pôr cá para fora, agora trabalho nisso com bastante atenção.” De uma coisa não tem dúvidas: “Pedir ajuda é o primeiro passo para mudar, para tentar mudar alguma coisa.” A mãe deu entrada há dias num lar, perto de sua casa, Rafael continua sempre perto.
Cada momento é um momento, cada pessoa é uma pessoa. A psicóloga Patrícia Oliveira garante que não há relógios na mesa, não há tempo estipulado para cada telefonema que vem da linha. “A chamada dura o tempo que a pessoa precisa, o tempo que seja necessário, para partilhar medos e emoções, para falar sobre a sua vida e restantes problemas, para tirar dúvidas.”
Escutar, dar informações, prestar esclarecimentos, ajudar a desenvolver estratégias para gerir ansiedade, stress, para melhorar a qualidade de vida dos cuidadores. “Trabalhamos a prevenção do problema, as capacidades para lidar com determinadas situações, para que tenham uma postura pró-ativa. Não é dar o peixe, é dar a cana”, diz André Louro. “Há algumas estratégias que podem ajudar, pequenos truques.” Como esta, por exemplo: o cuidador ter um intercomunicador, daqueles que se coloca nos quartos dos bebés, que dá sinal quando acordam, para não estar em estado de alerta permanente e conseguir descansar e dormir. Ou ajudar a fazer uma lista de perguntas com as questões a não esquecer quando se vai ao médico, ao psicólogo, ao psiquiatra.
A linha telefónica estará disponível até ao fim do ano, a Europacolon Portugal equaciona prolongar este apoio que, neste momento, é financeiramente suportado por fundos da associação, sobretudo peditórios e donativos, sem qualquer dinheiro público, e pela empresa farmacêutica Merck — assegurando, dessa forma, uma psicóloga a tempo inteiro e os serviços do psicólogo que coordena o projeto.
Um estudo sobre saúde mental do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, divulgado há poucos meses, revelava que 83% dos inquiridos já se encontraram num estado de exaustão emocional, e quase oito em cada dez (78%) admitiram ter sentido necessidade de apoio psicológico, em algum momento da sua vida de cuidador.
“Os cuidadores informais são uma franja da população que está escondida, que quase se imola e deixa de viver a sua vida”, diz Vítor Neves, presidente da Europacolon Portugal. A linha de apoio surge depois de a Europacolon ter feito alguns webinars para cuidadores em 2022. A procura foi tímida, mas a associação não desistiu. “Se existem cuidadores, se existem necessidades que aumentam, porque não se aproximam mais?” A associação avançou com a linha e as consultas de psicologia gratuitas. “O grande desafio é motivar as pessoas a usufruírem gratuitamente de um apoio a que têm direito, ultrapassando algumas barreiras”, diz Vítor Neves.
Vítor Neves vê muitos cuidadores como ilhas isoladas que não procuram ajuda, que deixam de ir ao centro de saúde falar com o médico de família, que não cuidam de si. “Por vezes, a pessoa cuidadora inibe-se de transmitir as suas necessidades, não as partilha porque não quer sobrecarregar a pessoa de quem cuida. E deixa de ir ao cabeleireiro, ao café, deixa de ter autoestima. A pessoa cuidada morre e, de repente, fica perdido na vida.” Na linha, fala-se de tudo.
Vera Amaro sai pouco de casa, não consegue deixar o filho numa instituição para descanso do cuidador, trata dos afazeres domésticos e de tudo o que Ricardo precisa. “Sempre em sobressalto, não dá para desligar.” Quando precisa, marca consulta. “É muito difícil ter algum apoio psicológico e psiquiátrico no SNS, não temos muito apoio ao nível da saúde. Como cuidadores, não temos direito a nada.”
Vai agarrando forças onde pode e ganhando energias dentro de si. Tem de ser. “Tenho as minhas gavetas muito arrumadinhas, mas também vou-me muito abaixo.” Há dias e dias, momentos e momentos, Vera já deixou de fazer perguntas para as quais não tem respostas, vive com menos pressa, gere melhor as suas emoções. As manhãs são mais agitadas, tenta repousar um pouco quando Ricardo dorme a sesta à tarde. E continua a ir ao fim do mundo pelo filho.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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