É classificado de forma quase unânime como o pai do Ministério Público moderno. Teve influência na forma como a Assembleia Constituinte olhou para a magistratura e na construção da primeira lei orgânica do Ministério Público. Foi procurador-geral da República entre 1984 e 2000, participou ativamente na construção do Código de Processo Penal de 1987 que determinou que o Ministério Público seria o dono da investigação (substituindo o juiz de instrução criminal) e reconstruiu a organização do titular da ação penal com base na especialidade. O primeiro órgão foi o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, no final dos anos 80, e o último foi o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em 1999.
Numa entrevista ao programa “Justiça Cega”, da Rádio Observador, José Narciso Cunha Rodrigues faz propostas concretas para uma reforma da Justiça que promova o equilíbrio entre as liberdades e garantias dos cidadãos e a eficiência da administração da justiça, critica os subscritores do Manifesto dos 50, diz que é “redutor” restringir os problemas da Justiça ao Ministério Público e diz que o reforço dos juízes é uma questão fundamental para a recuperação da credibilidade do Judiciário.
Desde as buscas da Operação Influencer, em novembro de 2023, podemos dizer que estamos a assistir a um confronto clássico nos Estados modernos entre o poder político e o poder judicial, ou o Ministério Público (MP) foi longe demais?
Não, aquilo a que estamos a assistir é a uma evolução da sociedade, com transformações que ocorreram em praticamente todos os sectores e colocaram a justiça sob escrutínio. Isso está relacionado com a comunicação social, com as redes sociais e com a coesão social. Falar só do Ministério Público é interessante, mas é redutor, porque os problemas são maiores.
São gerais, em toda a administração da Justiça?
Sim.
Mas não reconhece que existe aqui um confronto entre o poder político e o poder judicial?
Não reconheço que exista esse confronto. O poder político, nos últimos anos ou décadas, encarregou-se de criar uma espécie de caldo de cultura para que esse confronto existisse. Judicializou-se praticamente toda a vida política, criando pontos de contacto com a censura penal, na contratação pública, nas decisões políticas e isso gerou naturalmente caminhos…
… não houve um trabalho de prevenção? Sempre que um político é constituído arguido isso leva sempre a uma consequência política.
A constituição de arguido é um meio de defesa das pessoas que estão sob investigação, mas transformou-se numa espécie de alerta. Se a pessoa é constituída arguida, a opinião pública sabe imediatamente que ela tem um processo e que pode ser julgada.
É essa judicialização da vida política que está a referir?
Essa judicialização tem a ver com os pontos de contacto, que são de louvar, porque realmente a vida política não pode ser excluída do controlo judicial, mas foi-se longe demais. Tenho-me pronunciado com regularidade sobre a proteção da privacidade [dos titulares de cargos políticos] e hoje pode dizer-se praticamente tudo sobre os políticos. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem uma jurisprudência tão ampla que praticamente nada é crime, desde que o que se diga de um político tenha interesse público.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa sobrepõem-se à proteção do bom nome e da vida privada na jurisprudência do TEDH?
O Reino Unido já reagiu e foi publicado um protocolo, o protocolo número 15, à Convenção Europeia de Direitos Humanos, que limitou um pouco essa tendência. E espero que ela se limite, porque daqui a algum tempo ninguém quer fazer política, porque qualquer coisa que faça pode vir na primeira página de um órgão de comunicação social, com os nomes mais absurdos e mais injustos em relação à conduta desse político.
Devia haver um trabalho legislativo no sentido de haver uma prevalência do direito ao bom nome em relação à liberdade de imprensa?
Esses dois direitos [a liberdade de imprensa e o bom nome] são direitos fundamentais mas têm de ser ponderados com equilíbrio e devemos compatibilizá-los e harmonizá-los na medida do possível. Isso não pode ser medido só pelo interesse público. E mesmo na avaliação do interesse público é necessário atuar com ponderação e com bom senso.
Deixe-me voltar ao debate que está ser feito sobre a autonomia do Ministério Público. Vê como admissível que o poder político venha a promover um retrocesso da autonomia externa?
O poder político tem toda a margem de avaliação para fazer o que entender. No plano dos princípios, acharia isso incorreto. Não interessa ao escrutínio sobre o poder político, à Justiça e ao próprio poder político. Se o poder político fizesse isso, ia passar os dias na Assembleia da República a responder por aquilo que tinha feito. É necessário manter a pureza dos princípios e mexer nas coisas que têm a ver com a administração quotidiana da Justiça e do Ministério Público.
Tendo em conta a forma como exerceu os seus mandatos com procurador-geral, consegue compreender que os dirigentes do Ministério Público tenham receio de exercer o poder hierárquico?
A hierarquia é fundamental, está na Constituição. O que hoje acontece é que o Estatuto do Ministério Público foi usado para tornar a hierarquia uma solução fluida e, por vezes, contraditória. Os magistrados do Ministério Público da linha sindical — e outros dos quadros superiores — quiseram ter uma autonomia que os equiparasse praticamente aos juízes e conseguiram levar isso ao Estatuto [do Ministério Público]. Só existe o poder de dar instruções. Quanto ao procurador-geral e aos procuradores regionais, os magistrados de base são totalmente independentes, porque não está previsto o poder de instrução mas sim uma hierarquia processual — como também acontece com os juízes. Por exemplo, em caso de conflitos de competência, em caso de impedimentos, em caso de reclamações hierárquicas. Isto foi uma solução que atenta contra a Constituição e que gerou esta dificuldade que estamos a viver.
Manifesto dos 50: “Se o problema fosse só o Ministério Público, as soluções seriam muito mais fáceis”
O debate sobre uma reforma da justiça tem sido muito marcado pelo Manifesto dos 50, que pede uma reforma da justiça. Já me disse há pouco que não entende que o problema seja exclusivamente o Ministério Público. Como vê este Manifesto dos 50?
Quando o manifesto surgiu, achei uma iniciativa de cidadania respeitável e, porventura, oportuna. Mas depois comecei a ver que o manifesto se tinha transformado numa espécie de coro de uma tragédia grega, no sentido literal do termo, em que há sempre um elemento que critica uma solução. Por vezes com uma grande estatura intelectual, mas o que sei é que não têm qualquer ideia do que estão a comentar e a criticar.
Não conhecem o sistema de justiça?
Não conhecem o sistema de justiça. E têm uma ideia apenas, diria, de resultado.
Há penalistas que assinaram o manifesto: Faria Costa, Maria João Antunes… Mas não são eles que têm dado a cara, têm sido outras pessoas.
Não têm sido eles. E devo dizer que lamento, porque muitas vezes são pessoas que respeito e até admiro e que continuam lançadas nessa ideia de criticar tudo o que aparece. Por exemplo, António Barreto defendia que se devia acabar com as escutas telefónicas.
Quem ouve os subscritores só ouve falar em Ministério Público.
Infelizmente, o problema não é só do Ministério Público. Se fosse, as soluções seriam muito mais fáceis.
Que outros problemas identifica na justiça?
Há muitos problemas do lado dos tribunais. A justiça de hoje está totalmente fora do seu tempo porque convive com vetores com os quais não é capaz de lidar. As redes sociais, que deturpam as provas que são apresentadas, por exemplo. Outro problema é o modelo escritural de funcionamento da Justiça, que corresponde a um paradigma ultrapassado. Há também a incapacidade da Justiça e da magistratura judicial de lidar com os órgãos de comunicação social. Por exemplo, quando eles contrariam e prejudicam a genuinidade dos depoimentos.
Depois há outras questões. Por exemplo, os megaprocessos do Ministério Público têm a ver, muitas vezes, por falta de meios. Mas também com a ideia do princípio da legalidade. O princípio da legalidade, que existe em poucos países, leva a que o Ministério Público tenha de investigar tudo. Devia ser criado o princípio da oportunidade, que é o que mais vigora nos Estados-membros da União Europeia.
O Ministério Público deveria ter o poder de decidir investigar o que entende como prioritário?
Mas um princípio de oportunidade regulado. Porque o que se passa hoje com a política criminal, que está definida pela Assembleia da República, é realmente um contrasenso. Para quê definir a política criminal se todos os crimes têm de ser investigados? A Assembleia da República diz quais são os crimes que têm que ser investigados com prioridade… Há uma incongruência. Então, se todos têm de ser investigados porque é que há prioridade para uns e não para outros? E porque é que o sistema não responde a todos? Eu sei que os críticos vão atirar-se a mim. O princípio de oportunidade é que é natural. Faz com que nos Estados Unidos, por exemplo, as investigações sejam feitas em meses e as pessoas sejam julgadas em meses. O que aqui criticam muito…
Isso seria uma medida decisiva de promoção da celeridade processual?
Sim.
Mas não acha que, por exemplo, os megaprocessos também são uma consequência da especialização do Ministério Público?
Não penso isso. O Ministério Público tem de ir juntando tudo ao processo. Aquilo que é importante e aquilo que não é importante. Se aparecer, por exemplo, uma infração ao código da estrada, também é investigado.
“Devemos reforçar os poderes dos juízes na análise dos efeitos dos recursos”
Um estudo do Conselho Superior da Magistratura apresentado no início deste ano concluiu que, num universo de mais de 130 megaprocessos, o tempo médio de resolução era de oito a nove anos, o que contrasta com o tempo médio de resolução de um a dois anos da justiça comum. O legislador deve ter medidas concretas para combater esta discrepância?
Não há nada que justifique que os processos tenham uma investigação de oito, dez, quinze anos. Isso é um contrassenso. Mas também resulta do facto de haver sistemas de recolha de provas que são eles próprios usados de uma forma excessiva ou abusiva. Portanto, ter uma pessoa sob escuta quatro anos é uma coisa inadmissível.
Esse abuso tem de ser combatido?
É evidente. Era interessante saber quantas escutas foram feitas e em que processos foram utilizadas. O Conselho Superior do Ministério Público tem direito a ter essa informação. E era bom para o poder político que se soubesse quantas escutas foram feitas, em que processos foram utilizadas (por exemplo, os que não tiveram condenação ou que não chegaram ao fim) para saber o uso que se está a fazer das escutas.
Podemos falar de abusos do Ministério Público. Mas também há um problema nos abusos em matéria de recursos. Na Operação Marquês, por exemplo, o principal arguido já apresentou mais de 40 recursos para impedir um julgamento de um inquérito que foi concluído em 2017. Essa é uma patologia que merecer ser combatida?
Há dias, numa intervenção que fiz, elenquei cerca de 20 sugestões para uma reforma da Justiça. E uma delas tinha a ver com um ponto que considero muito importante: reforçar a soberania dos juízes. Se tirarmos o direito ao recurso, as pessoas tendem a dizer que é uma perda de garantia dos cidadãos. Mas na generalidade dos sistemas [europeus] dá-se a possibilidade ao juiz de filtrar os recursos. Filtrar, por exemplo, no Supremo Tribunal de Justiça. Há também outra solução que é a autorização para recorrer. Pede-se a um tribunal superior autorização para recorrer e esse tribunal autoriza ou não autoriza. No nosso país não há essas soluções.
Defende uma restrição do recurso penal para o Supremo Tribunal de Justiça?
Até sou favorável a uma maior abertura ao recurso para o Supremo, mas com esses poderes de filtragem ou de autorização. O Supremo autoriza ou não o recurso.
Apoia que se reveja o nosso sistema de recursos para tentar equilibrar melhor as liberdades e garantias e a efetividade processual?
Sim. E tendo como grande agente o juiz, a soberania do juiz.
Não faz sentido, por exemplo, que um advogado consiga apresentar 30, 40, 50 incidentes de recusa de juízes no mesmo processo. Na teoria, até pode recusar todos os juízes que sejam titulares dos autos. E sempre com efeito suspensivo…
… paralisando o processo. É possível ter outra solução, a que eu proponho, em que o juiz tem mais poderes para reprimir o abuso do processo. Essa é a soberania do juiz. Temos que tirar consequências de os tribunais serem um órgão na soberania. E os titulares devem ter esses poderes.
Também concorda que se deve restringir o acesso ao Tribunal Constitucional em termos de recurso penal?
Não deve restringir-se o acesso. O que deve existir é a possibilidade de os recursos terem um efeito devolutivo e não suspensivo. Ficaria satisfeito se o Tribunal Constitucional pudesse ele próprio definir se o recurso tem efeito suspensivo ou não. Eu sou pela soberania do juiz. E isso iria repor o respeito pelos tribunais e a confiança nos cidadãos.
“Há dirigentes do Ministério Público a mais. Justifica-se uma alteração para evoluirmos”
Há dirigentes do Ministério Público a mais?
Sim, que se enredam neles próprios. Isso tudo é uma ideia de hierarquia extremamente pesada e que não dá base à capacidade criativa dos magistrados e aos seus tempos de organização de trabalho. Isso é mau. Aí, o Sindicato do Ministério Público tem muita razão. Há que fazer alguma coisa. Portanto, há que purificar, há que limpar o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público dessas impurezas que foram introduzidas..
Justifica-se uma alteração para recuarmos?
Não é para recuarmos, é para evoluirmos. Porque esta solução é autoritária no plano dos princípios. Há um grande mal-estar do Ministério Público, que é justificado e que passa para a comunicação social. Isso também teve como consequência outro problema grave. O Ministério Público não tem tempo para dirigir as polícias. E aí está um problema a que eu atribuo a maior gravidade. As polícias que temos, em particular a Polícia Judiciária, são órgãos competentes. Sem qualquer menosprezo para com essa capacidade, é o Ministério Público que tem a função de dirigir as polícias.
Sempre defendeu que a Polícia Judiciária devia estar sob a tutela orgânica do Ministério Público.
Sempre fui pragmático e sempre aceitei que a tutela orgânica estava bem no Governo e a tutela funcional no Ministério Público.
A direção nacional da Polícia Judiciária, liderada por Luís Neves, defende isso mesmo que acabou de dizer.
Mas isso levou a grandes confrontos com o poder político, porque o poder político tentou durante muitos anos que a Polícia Judiciária ficasse dentro da órbita do poder executivo. E no meu tempo, o ministro da Justiça sabia muito mais da investigação criminal do que o procurador-geral. Porque a polícia ia relatar ao ministro, não ia relatar ao procurador-geral, o que achava muito mal. Não sei se com o tempo…
Acha que isso ainda acontece hoje em dia?
Não tenho informação sobre isso.
Mas na altura já achava isso mal. E também hoje em dia, tendo em conta o princípio da separação de poderes, acho que também isso é dificilmente compreensível. Isso já não é assim hoje.
O princípio da separação de poderes, que hoje está muito na moda, deve ser visto com alguma cautela. Porque a nossa Constituição fala em separação e interdependência dos poderes. E há áreas de contato sempre entre os poderes. Na Justiça, há a área da logística, do planeamento, do orçamento, tudo isso que em grande parte está ainda no Governo. E está bem que seja assim. Percebo. E, precisamente, ainda acontece interdependência entre os diferentes poderes.
“Sou a favor que existam pessoas estranhas às magistraturas nos órgãos de gestão”
Recorrentemente surgem algumas ideias de alteração, por exemplo, da composição do Conselho Supremo do Ministério Público, para o equiparar ao Conselho Supremo da Magistratura. A ideia seria ter uma maioria de elementos nomeados pelo poder político. Justifica-se essa alteração nessa lógica de interdependência dos poderes?
Isso tem uma raiz histórica muito interessante. Depois do 25 de Abril, o primeiro Conselho Superior da Magistratura foi constituído só por juízes. Eu, na altura, era um relativamente jovem magistrado. Fui chamado para apoiar tecnicamente o Governo nessa área e achava que devia haver pessoas estranhas à magistratura. Isso foi corrigido na primeira reforma que se fez a seguir. Sou muito a favor de haver pessoas estranhas às magistraturas nos órgãos de gestão.
Na sua opinião, não se justifica esta alteração da composição do Conselho Superior do Ministério Público?
Não, os problemas não se resolvem por aí. Embora seja justificado que o estatuto dos sindicatos, particularmente do Ministério Público, seja interpretado em função da Constituição e da lei. Isto é, os sindicatos não devem ter poder de decisão nas estruturas do Estado de Direito.
O Conselho Superior do Ministério Público é composto por magistrados que são eleitos pelos seus pares nas diferentes categorias. O poder do sindicato no Conselho deriva um pouco daí. Faz sentido, por exemplo, ter menos magistrados eleitos?
Faz sentido temperar um pouco essa solução em benefício de pessoas estranhas à magistratura.
Nomeadas pela Assembleia da República e pela ministra da Justiça?
Nomeadas pelo poder político. Mas não é aí que estão os problemas.
Os procuradores regionais de Lisboa, do Porto, de Coimbra e de Évora, que são os elementos imediatamente a seguir ao procurador-geral da República e ao vice-procurador-geral na hierarquia do Ministério Público, são eleitos pelo Conselho Superior do Ministério Público. Faz sentido que sejam diretamente nomeados pelo procurador-geral para termos uma estrutura mais vertical?
Não, eles são nomeados pelo Conselho Superior sob proposta do procurador-geral da República. Com a exceção do procurador-geral de Espanha, não há na Europa mais nenhum procurador-geral com esse poder. Não há sistemas tão verticais como há em Portugal. Geralmente, em França ou em Itália, o procurador-geral está nas jurisdições supremas. Daí para baixo é o procurador do Tribunal da Relação que manda. Está mais desconcentrado o sistema. Noutros países, como os nórdicos ou no Reino Unido, o procurador-geral também é ministro da Justiça e tem mais poderes, obviamente. O nosso sistema é equilibrado, viveu da experiência desses países e, portanto, não deveria ser mudado.
“É preciso um procurador-geral que tenha liderança, sentido de diálogo e responsabilidade”
A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, afirmou em entrevista ao Observador que o próximo procurador-geral, a nomear em outubro, terá de ter um “perfil de liderança, de gestão e de comunicação” para “pôr ordem na casa”. O país precisa de um procurador-geral com este perfil?
Não precisa de nenhum procurador-geral que meta ordem na casa, porque isso foi uma hipérbole que a senhora ministra utilizou e eu não faço nenhum reparo a isso. É necessário um procurador-geral que tenha liderança, que tenha um sentimento de responsabilidade e diálogo e, sobretudo, que saiba estar num lugar que é cheio de arestas, porque é contíguo ao poder político. Há o Ministério Público, há a magistratura judicial, há a comunicação social e todos esses poderes criam dificuldades na gestão do Ministério Público.
A solução para os problemas que identifica e diagnostica no Ministério Público passam por uma nova liderança?
Eu não disse por uma nova liderança. Vai ser substituída a procuradora-geral porque acabou o mandato. Mas um procurador-geral tem que ter essas capacidades. Isso é certo e a senhora ministra reconheceu isso e reconheceu bem. No entanto, mesmo com uma liderança desse tipo, é necessário fazer reformas sérias e justas nas leis que governam a Justiça.
Dê-me exemplos dessas reformas que defende.
A sociedade mudou muito nos últimos 30, 40 anos. Perdeu-se o sentimento de responsabilidade social. Os juízos de opinião hoje prevalecem sobre os juízos dos tribunais. A opinião é que vale. Hoje, a opinião baseia-se muito nas redes sociais e ainda não foi encontrada a solução jurídica para escrutinar esse fenómeno.
A Justiça é muito influenciada pelo exterior?
Sim, quer a Justiça, quer a comunicação social. Naturalmente, a comunicação social hoje também tem fontes que vêm das redes sociais e as redes sociais são uma fonte de juízo. Por outro lado, o cidadão comum hoje não tem o compromisso ontológico que o faria respeitar os tribunais. Há um autor, Fukuyama, que disse que o liberalismo moderno criou dúvidas sobre os fins últimos da vida e sobre o bem comum. O pós-modernismo criou uma sociedade que substituiu os princípios por relativismo moral e agora o relativismo cognitivo, em que mesmo a opinião é subjetiva, mesmo os factos são subjetivos — há uma apreciação dos factos subjetiva ao lado das fake news, que no fundo compromete todo o sentido de observação do mundo e da vida. A administração da Justiça é feita com base em factos, nomeadamente uma justiça penal ou uma condenação tem que ser, obviamente, assente em factos dados como comprovados. Mas são os factos dados pelas testemunhas, pelos peritos, pela própria opinião pública, que não deve ser avaliada em si, mas, portanto, pela experiência comum que resulta disso tudo.
Mas é difícil ter uma reforma em que faça da Justiça uma espécie de ilha. Se problema é geral da sociedade, como é que podemos fazer com que a Justiça se defenda disso?
Isso deve ser tido em conta no recrutamento dos magistrados, particularmente no recrutamento de juízes, que não devem apenas ter uma qualificação técnica ou jurídica, devem ter mundo, devem ter uma experiência vivida e devem ser capazes de observar o mundo dessa maneira. Sempre houve uma margem grande de incerteza na Justiça — essa margem hoje aumentou e, portanto, essa margem só se resolve com a incerteza a ser absorvida pela confiança. Tudo milita contra a confiança na Justiça e os órgãos de comunicação social têm tido o seu papel nisso.
Os órgãos de comunicação social têm contribuído mais para erodir a confiança na Justiça do que propriamente para reforçá-la?
Sim, é verdade. Tenho de constatar tudo isso, porque reforçar a confiança não cria escândalos nem promove as vendas de jornais. O escrutínio dos órgãos de informação é muitas vezes feito através de decisões, de sentenças, que muitas vezes são justas e quem leva isso à comunicação social muitas vezes são os interessados.
Mas não acha que essa mediatização também aproxima as pessoas da Justiça?
Aproxima de uma forma negativa também. As pessoas não têm confiança na Justiça.
É um problema difícil de resolver numa democracia liberal.
Não há resposta para isso, mas é evidente que, como sabe, quando o cão morde um homem não é notícia, quando o homem morde um cão é notícia. As sentenças judiciais são transcritas quando têm qualquer coisa de exótico, de diferente, quando as partes as levam à comunicação social.
Ainda antes de a comunicação social existir, a ideia da Justiça sempre interessou aos cidadãos — fossem de uma comunidade nacional ou local. A comunidade delega no Estado o exercício da administração da Justiça mas quer saber o que se passa na Justiça.
Sim, a comunicação social é a mediadora dessas decisões. Mas isso não exclui que os órgãos judiciais comuniquem e expliquem as decisões também, como faz, por exemplo, o Tribunal de Justiça da União Europeia, onde trabalhei muitos anos. Porque sempre que há uma decisão, há um comunicado que explica a decisão. E muito bem feito.
Os tribunais portugueses e a Procuradoria-Geral da República deviam seguir esse exemplo?
Sim, deve existir essa política de comunicação. E é por aí também que se deve atuar.
“O DCIAP não criou problemas. O Ticão sim”
Quando era procurador-geral, organizou o Ministério Público com base no princípio da especialização, tendo criado o DCIAP como o expoente máximo dessa estratégia. Que balanço faz dessa aposta?
Não tenho neste momento capacidade de fazer um juízo atualizado. Mas, na altura, essa era uma reforma necessária e foi feita com antecedência em relação a muitos países europeus. Recordo-me sempre que a senhora que dirigia o sistema que foi criado no Reino Unido, do mesmo tipo mas com uma base [de nomeação] política, dizia-me sempre que faltava isso. Quando eu lhe disse que íamos criar isso em Portugal, ela disse-me que era uma grande solução. E depois foram criados os DIAP’s, que foram criados contra a vontade do Governo,
O DIAP de Lisboa, por exemplo, foi criado antes de existir qualquer autorização do Governo.
Não existiu nenhuma. Só começou a existir quando os advogados começaram a dizer que era clandestino. Portanto, porque é que foram criados os DIAP’s? Porque, tendo acabado a investigação feita pelos juízes de instrução, as polícias deviam ser dirigidas por uma magistratura. Isso foi uma questão que durou anos a resolver. O DCIAP foi criado noutras alturas, como digo, já em 1999. E foi criado também contra…
Primeiro teve poderes de coordenação, mas depois alargou-se para ter poderes de investigação também.
Exato. Os poderes eram, sobretudo, de coordenação. Mas veja lá que foi a origem do DCIAP que deu lugar à criação do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Foram criados exatamente na mesma altura e em função um do outro.
Mas foram criados porque a Associação Sindical dos Juízes disse que, sem haver um Tribunal Central de Instrução Criminal, não devia haver DCIAP. E o Governo disse que quem decidia era o poder judicial. Porque tribunais centrais só havia, praticamente, em países que tinham terrorismo. Como é o caso da Espanha, por exemplo. O Ministério Público é indivisível. Portanto, ter um Departamento Central não causa problema nenhum.
Mas o Ticão causou problemas.
Causou problemas em termos de juiz natural. Porque durante muito tempo só foi necessário um juiz. E causou problemas, no fundo, de superespecialização no crime, que é uma má solução mesmo quanto à instrução.
Então, deduzo que não seja a favor, por exemplo, de que exista um tribunal de julgamento que continuasse as competências territoriais alargadas.
Não. Os tribunais penais devem ser o mais possível genéricos. Quando forem especializados, não devem ser especializados em função do Ministério Público, mas em função de critérios próprios.
O segredo de justiça e o caso de Mário Soares
Acha que deve haver um maior equilíbrio entre o segredo de justiça e a liberdade de imprensa?
O segredo de justiça foi sempre uma categoria que está no âmago das disputas e dos confrontos. Porque o segredo de justiça não importa nada quando a pessoa é pobre ou quando não é notável. Só importa quando as pessoas são notáveis.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos defende que, desde que a violação do segredo de justiça não prejudique a investigação, a liberdade de imprensa se sobrepõe ao segredo de justiça.
O nosso Código do Processo Penal diz que o processo penal é público sob pena de nulidade, ressalvadas as exceções. Mas parece que a exceção é que está tudo no segredo de justiça. E eu pergunto aos senhores que aprovaram esse código: deram-se conta de que decidiram que o processo penal é público e agora dizem que um dos grandes problemas é a violação do segredo de justiça? Não, a violação do segredo de justiça é grave, num sentido, mas a própria pena que é aplicada não permite o uso de sistemas invasivos.
O senhor é a favor que sejam possíveis escutas telefónicas para permitir a investigação desse crime?
Não, não sou a favor. Sou a favor de outra solução. Quando os juízes, ou o Ministério Público (sob o controlo dos juízes), entenderem que há por parte da comunicação social uma deturpação da verdade processual e um prejuízo para as provas, devem fazer uma de duas coisas: ou um esclarecimento público para repor a verdade ou, nos casos extremos, aquilo a que os ingleses chamam contempt of court, que é decidir que não deve ser publicado nada sobre determinada audiência. Esse sistema seria compatível com a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, com os direitos processuais.
Durante os seus mandatos como procurador-geral da República teve processos muito sensíveis do ponto de vista político. Não só em relação ao Governo do PSD mas também em relação à administração de Macau, próxima do PS e que era nomeada pelo Presidente Mário Soares. Houve mesmo a possibilidade de se investigar o então Presidente da República por causa de vários processos, como o caso Fax de Macau e da Emaudio. Porventura, o regime democrático português não estava preparado para um processo com essa índole. 50 anos depois do 25 de Abril, o nosso regime está preparado para este tipo de processos?
Repare, esse facto não teve nada a ver com o país estar preparado ou não.
Eu sei, não havia suspeitas contra o Presidente Soares.
Teve que ver como facto de o procurador que investigou o caso [Rodrigues Maximiniano] ter concluído que não havia indícios.
Exato
E achou que havia contra outras pessoas. E houve uma acusação e julgamento. Houve até o caso excêntrico em que, num caso, foi decidido que havia corrupção e que, no outro, foi decidido que não havia corrupção. São as contradições que tem a Justiça. Agora, isso não é uma questão que tenha a ver com a evolução do Estado democrático. Tem que ver apenas com aquilo que são as provas. E também com uma coisa que é fundamental. Deve haver um sentido de responsabilidade e de rigor na avaliação de processos desse tipo. Não é levemente que se pode decidir num caso desses. Repare, o investigador foi à Alemanha. Eu tinha na altura uma relação com o procurador-geral alemão. Telefonei-lhe e quando o procurador Rodrigues Maximiano chegou à Alemanha tinha lá um procurador e 30 polícias à espera… Portanto, o caso foi investigado. Por vezes há uma ou outra pessoa que acha que, por razões políticas, devíamos ter ido mais longe. Mas o dr. Rodrigues Maximiano fez a sua investigação e concluiu que não havia razão para a abertura de nenhuma investigação contra o então Presidente Mário Soares.
Há uma perceção de uma parte da opinião pública de que o nosso país naquela altura não estava preparado para uma situação dessas. Independentemente de não existirem indícios contra o Presidente Soares.
Nessa altura estava muito em voga o processo “Mãos Limpas” em Itália. E os jornais falavam por vezes que tinha de ser feita aqui uma investigação desse tipo. E aí eu disse que nós não estávamos na situação da Itália, seja em termos de corrupção seja de terrorismo. Penso que fiz uma boa previsão porque o resultado da investigação do caso “Mãos Limpas” foi a chegada da extrema-direita ao poder. Foi um processo de regeneração que chegou ao fim e não restou nada em Itália a não ser uma tendência para regimes radicais.
E a Justiça também tem que ter isso em conta?
Não tem de ter isso em conta mas tem de ter em conta que a Justiça não se destina a punir todos os crimes. A ideia de política criminal não é que todos os crimes têm de ser reprimidos. É que o crime deve ser mantido em níveis toleráveis. E depois não dar azo a que, como aconteceu em Itália, se tivesse deixado de filtrar a Justiça por mecanismos que não são próprios da Justiça.