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Não é todos os dias que uma peça como esta vê a luz do dia. Uma impressionante safira birmanesa (acompanhada por outras quatro de menor dimensão), emoldurada por mais de 1.400 diamantes. Na forma de uma tiara, o tesouro pertenceu a D. Maria II, a segunda mulher a sentar-se no trono português, entre os anos de 1834 e 1853.
A Christie’s prepara-se para leiloar a peça, no dia 12 de maio, e com uma base de licitação que vai dos 153 e 317 mil euros. A tiara integra o leilão Joias Magníficas, ao lado de outros tesouros igualmente singulares da coleção de Estefânia de Beauharnais, grã-duquesa de Baden, filha adotiva do imperador Napoleão I. No total, nove peças serão licitadas dentro de poucos dias, em Genebra.
Poderá a magnífica tiara vir para Portugal? A pergunta irrompeu de imediato. Semanas depois da primeira reação, o Estado português, por intermédio da Direção-Geral do Património Cultural, continua a analisar uma possível compra, segundo apurou o Observador. O momento seria especialmente oportuno para receber a peça em Lisboa, numa altura em que se prepara a abertura do Museu do Tesouro Real, dentro do Palácio Nacional da Ajuda, onde aliás é possível ver um retrato de D. Maria II, pintado por Ferdinand Krumholz, a usar a famosa tiara. A inauguração está prevista para este verão.
D. Maria II, a primeira rainha “com gosto”
“É uma peça de valor extraordinário”, anuncia Eduardo Alves Marques, investigador e autor do livro ‘Se As Joias Falassem’, publicado em 2009, em conversa com o Observador. Fala numa “peça muito moderna para a altura”, já desenhada para se converter facilmente noutras joias, que poderiam ser usadas em ocasiões distintas. Através de encaixes, a tiara divide-se em nove alfinetes. “Na minha opinião, será uma peça da década de 30 [do século XIX]. As joias transformáveis são uma grande novidade desse período e uma moda que se estende até aos anos 20 do século XX, altura em que parece uma coisa chamada bandeau tiara, que também pode ser usada como gargantilha”, continua.
Mas como poderia a rainha portuguesa, nascida no Brasil, estar a par da última moda europeia? Com cerca de 13 anos, a infanta mudou-se para Paris, onde o pai a deixou ao cuidado da madrasta, D. Amélia de Leuchtenberg, imperatriz do Brasil, enquanto em Portugal se travavam as Guerras Liberais. “Começa a haver imprensa e é muito curioso ver que D. Maria foi a primeira a ser divulgada numa estampa como exemplo de bem vestir, a usar um vestido branco para ir à ópera, em 1832. Não digo que a tiara tenha sido adquirida em Paris nesse momento, até porque na altura elas não têm tanto poder aquisitivo, mas é desse período”, sublinha.
Ao mesmo tempo, existe uma grande familiaridade com a família imperial francesa, afinal D. Amélia era neta da imperatriz Josefina, a primeira mulher de Napoleão I. “Ao contrário do que se pensa, a rainha é uma mulher profundamente elegante, que frequenta os melhores salões de Paris”, afirma Alves Marques.
Em 1834, após a abdicação do tio, a infanta foi coroada rainha de Portugal. De acordo o o investigador, D. Maria II introduziria modas e tendências parisienses na corte de Lisboa e a tiara terá sido uma central no seu papel como ícone de bom gosto. “Pela primeira vez é a rainha quem escolhe as suas coisas, o que nunca tinha acontecido antes. Até então, existiam ministros plenipotenciários, responsáveis por ir a Paris fazer compras para o monarca. O rei pedia-lhes o melhor, mas não escolhia por si”, explica.
O absolutismo estava para trás e a revolução industrial avançava galopante. D. Maria II é a primeira rainha de uma nova era e a primeira a fazer as suas escolhas com base no próprio gosto, uma sensibilidade cultivada em Paris e que a terá feito escolher a tiara de safiras e diamantes para a sua coleção de joias particular. “É por isso que esta tiara é tão identitária. Ela pertence a um período específico, a um gosto específico e a um território específico, que é Portugal”.
A viagem da tiara
Foi com montes e montinhos sobre a mesa que se repartiram as joias da rainha após a sua morte, a 15 de novembro de 1853 — sete, mais precisamente, para que cada um dos filhos herdasse uma parte da coleção privada da mãe. “Foi quase como se fosse um sorteio, à exceção de D. Pedro, o seu sucessor, que deveria receber as joias mais importantes para que fossem herdadas pela sua futura mulher”, explica o mesmo autor.
A tiara já lá estava, como prova o inventário feito em 1854, aquando das partilhas. O documento, encontrado pelo autor, discrimina peças adquiridas pela rainha, oferecidas e herdadas da mãe, a imperatriz Maria Leopoldina da Áustria. João Pedro Lourenço e João Estanislau de Souza — “ambos Mestres do Officio do Ouro e Contrastes” — foram então chamados ao Palácio das Necessidades para proceder à avaliação.
A peça de diamantes e safiras surge como o segundo lote — “um diadema composto de nove peças de tirar e pôr, sendo a do centro maior”, como se lê no manuscrito, onde se contam ainda 1415 diamantes e se dá pela falta de outros cinco. No mesmo inventário, os mestres constataram que todos os “diamantes brilhantes” têm tamanhos diferentes, sendo os maiores “de boa qualidade”, enquanto “os outros mais pequenos entre elles alguns ha que são defeituosos por serem delgados, e terem seu ligeiro ár de côr amarella”. Também as cinco safiras são referidas — “de diversos tamanhos, e de bonita côr”. Na altura, a tiara foi avaliada em dois contos de reis.
“O uso da tiara tem a ver com protocolos muito específicos, é uma representação de poder. Bem mais tarde, no casamento de D. Carlos e D. Amélia, por exemplo, essa referência estava latente no próprio convite. Determinados convidados tinha de usar luvas e tiara na igreja, era uma questão de identificação”, contextualiza Alves Marques, ele próprio comissário de uma exposição que tem inauguração marcada para o final de maio. Nela, o investigador irá recriar os aposentos privados da rainha no Palácio das Necessidades.
Embora a leiloeira aponte a infanta D. Antónia como a responsável por levar a joia da mãe para fora de Portugal, aquando do seu casamento com o príncipe Leopoldo de Hohenzollern-Sigmaringen (que herdou, segundo a Christie’s, as joias de Estefânia de Beauharnais, sua avó), o mesmo investigador, baseado em documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, presume que a tiara tenha sido entregue à irmã mais velha, a infanta D. Maria Ana. “Os próprios filhos trocaram peças entre eles e isso é justificado mais tarde em cartas. Percebe-se, por exemplo, que D. Pedro V trocou algumas peças com D. Antónia”.
“Possivelmente, houve trocas entre as duas irmãs”, adiciona. “Castelo de Hohenzollern-Sigmaringen existe uma ala portuguesa e lá dentro está o dote levado por D. Antónia: joias, porcelanas, mobiliário, tudo o que a faz recordar a mãe. Nestas trocas e presentes, além do estatuto e do lado pecuniário do valor dos objetos, também há o valor sentimental”, detalha. A peça terá, certamente, ficado entre irmãs. D. Maria Ana, por sua vez, casou em 1859 com Jorge, o príncipe herdeiro da Saxónia.
Duas gerações depois, a descendência das infantas une-se em casamento — a princesa Margarida Carolina da Saxónia (filha do príncipe Frederico Augusto, herdeiro da infanta portuguesa mais velha) casa em 1920 com o príncipe Frederico de Hohenzollern-Sigmaringen, filho da princesa Maria Teresa Bourbon-Duas Sicílias e do príncipe Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen, um dos três herdeiros da infanta D. Antónia.
Independentemente do trajeto feito pela peça até então, é aqui que ambas as possibilidades confluem. Do casamento já referido nascem sete filhos. O segundo mais novo, o príncipe João Jorge de Hohenzollern-Sigmaringen, casa em 1961 com a princesa Brígida da Suécia, irmã do atual rei, ela própria vista a usar a tiara publicamente. Os atuais detentores desta peça só poderão ser descendentes do casal — o príncipe morreu em 2016, a princesa tem, atualmente, 84 anos.
Outras peças da rainha pela Europa
“Existem dois tipos de peças: as joias que eram do Estado e que são inalienáveis, e as joias pessoais dos monarcas. Após a morte, estas últimas são dispostas por ordem de importância. Por isso é que esta tiara surge logo no início — é uma joia extremamente importante na coleção particular de D. Maria II”, reitera Alves Marques.
Mas a tiara de diamantes e safiras, que também se divide em nove alfinetes, não é um caso único. Com sete filhos, terão sido muitas as joias da rainha portuguesa que se espalharam pela Europa, embora Eduardo tenha duas histórias em mente, uma delas referente a um conjunto de colar, pulseira, brincos e fivela de cinto em ouro e turquesas, descoberto numa coleção privada de descendentes da condessa d’Edla.
“Estas peças foram herdadas pelo infante D. João, que morreu com tifo aos 19 anos. Nessa altura, as joias que recebeu voltam para a herança do pai”, explica. Outrora rei consorte, D. Fernando terá então oferecido o conjunto à mulher com quem casou em 1969.
Outro dos vestígios da disseminação da coleção de D. Maria II pela Europa foi a leilão em 1991, também em Genebra, pela Sotheby’s. Bem menos exuberante, a pulseira continha cabelo da própria rainha e até uma fotografia da monarca. Fazia parte de uma coleção de pertences importantes de D. Manuel II, último rei de Portugal. Sem filhos, Augusta Victoria, a mulher e última rainha que o país teve, terá deixado este e outros tesouros da monarquia portuguesa aos sobrinhos.