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Aos 37 anos, as defesas de Iker Casillas já valeram vários títulos — incluindo o Euro 2008 e 2012, o Mundial de 2010 e três Ligas dos Campeões –, mas a verdadeira defesa da sua vida deu-se esta quarta-feira, quando o guarda-redes do FC Porto sofreu um enfarte agudo do miocárdio durante um treino da equipa portista. Casillas deu entrada no Hospital CUF Porto e foi submetido a um cateterismo cardíaco, permanecendo ainda internado. Está estável e a dar “os primeiros passos na sua recuperação”, de acordo com o departamento médico dos portistas.
Iker Casillas. “Tudo controlado por aqui, um susto grande, mas com as forças intactas”
Esta doença cardíaca é responsável por milhares de mortes em Portugal e na maior parte dos casos está associada a um estilo de vida e hábitos menos saudáveis. Mas como atinge também alguns atletas de alta competição como Iker Casillas? Que cuidados se deve ter? Que doença é esta afinal? E o que pode acontecer depois? Oito perguntas e respostas de especialistas que explicam a doença do jogador espanhol.
O que é um enfarte do miocárdio?
Um enfarte do miocárdio — mais conhecido por ataque cardíaco — acontece quando há a oclusão de uma ou mais artérias coronárias, ou seja, quando há uma obstrução de um dos vasos sanguíneos (com dois ou três milimetros de diâmetro) que são responsáveis pela chegada do oxigénio e outros nutrientes ao nosso músculo cardíaco (miocárdio). Como resultado, as células que estão nessa área vão morrendo e o músculo começa a sofrer porque não está a ser irrigado.
Na manhã desta quarta-feira, Iker Casillas estava fazer “um treino muito intenso”, segundo o agente do guarda-redes, quando se sentiu mal: “Doía-lhe muito o peito, a boca, os braços”, explicou Carlo Cutropia à Rádio COPE. A dor, ardor ou aperto no peito é o principal sintoma associado a um enfarte do miocárdio, sendo que as sensações podem estender-se ao braço esquerdo, ao pescoço e ao queixo. Mas não só. Há ainda outros sintomas, como náuseas, vómitos e suores, e sinais como o batimento descompassado do coração. “O mais comum é a dor no peito, que normalmente se estende para o pescoço, para a mandíbula ou para o braço. No fundo, é uma sensação de uma dor muito grande no peito e esse é dos principais sintomas do enfarte”, explicou ao Observador o cardiologista Vasco Gama Ribeiro.
Que procedimentos devem ser seguidos nestes casos?
Durante o treino no Olival, o guarda-redes do FC Porto manifestou alguns destes sintomas e, por isso, o departamento médico atuou de imediato perante as suspeitas de que se tratava mesmo desta situação clínica, pedindo ao hospital “para ter uma equipa em alerta” e de prevenção para que quando Iker Casillas chegasse “pudesse ser diagnosticado” definitivamente com a maior brevidade possível. A descrição foi feita por Nélson Puga, o médico do FC Porto, numa entrevista ao Porto Canal.
“Imediatamente após ter feito o diagnóstico, pudemos atuar rapidamente em termos de hemodinâmica [circulação do sangue]”, assegurou ainda o médico. Iker, nas palavras do seu agente, “teve toda a sorte do mundo”, uma vez que estava a treinar e tinha presente no local uma equipa médica que rapidamente o assistiu e encaminhou para um hospital privado. “Se acontecesse em casa poderia ter consequências tremendas e imprevisíveis”, sublinhou Carlo Cutropia.
Vasco Gama Ribeiro, tal como todos os cardiologistas, vai de encontro a esta teoria: o tempo é essencial. Nestes casos, agir nos primeiros minutos é vital para garantir o mínimo de sequelas. “Nós, os cardiologistas, costumamos dizer que o tempo é miocárdio e, de facto, é verdade. Quanto mais rápido for o tratamento, maior é a quantidade de miocárdio que é salva”, acrescentou o cardiologista ao Observador.
Todo controlado por aquí, un susto grande pero con las fuerzas intactas. Muchísimas gracias a todos por los mensajes y el cariño ???????????? pic.twitter.com/i3TXsELUGD
— Iker Casillas (@IkerCasillas) May 1, 2019
Sempre que reconhecer sinais e sintomas como os que foram explicados, deve-se ser visto imediatamente por um médico. Para isso, o contacto com o 112 é obrigatório, bem como detalhar o que se sente. “Chamar de imediato o INEM ou o médico e ir logo para um hospital onde tenha a possibilidade de fazer o tratamento urgente. Isso é o que há a fazer e o que foi feito no caso do Iker Casillas. E isso salvou-o”, referiu o cardiologista, acrescentando que os sintomas nunca devem ser ignorados.
Quais são as causas que podem provocar um enfarte do miocárdio?
A maior parte dos enfartes, explica ao Observador Manuel Pedro Magalhães, cirurgião cardíaco do Hospital da Cruz Vermelha, resultam da existência de doença coronária prévia, que pode ser mais ou menos abundante em função da genética e antecedentes familiares, de doenças como a diabetes e a hipertensão arterial e também em função de hábitos e estilos de vida, como o tabagismo, a utilização de substâncias aditivas, a falta de exercício físico e o excesso de peso. Além disso, o stress a mais pode também ser um fator de risco que leva a acidentes cardiovasculares.
Há também outros casos que causam o entupimento da artéria, como é o caso das embolias — os chamados trombos que entram numa artéria coronária e podem entupi-la — e da dissecção da coronária, ou seja, quando há uma rutura numa das camadas das artérias. Estes dois casos, refere o cardiologista, são mais raros e podem acontecer subitamente, mesmo tendo feito exames previamente que nada detetam. Terá sido esse o caso do guarda-redes do FC Porto.
Que medicação e tratamentos são administrados?
No início de todo o processo, explica Manuel Pedro Magalhães, é administrada eparina, uma substância que ajuda a que as plaquetas não se agreguem umas às outras e obstruam ainda mais a artéria. Depois de confirmado que se trata de um enfarte do miocárdio, “leva-se imediatamente a pessoa para uma sala de angiografia”. Aí, um tubo fino oco é empurrado através de uma picada na artéria até se chegar à aorta e colocado dentro da coronária esquerda e direita onde, através da utilização de um produto médico, se vai conseguir perceber qual é a artéria que está entupida.
Depois desse procedimento, e se for possível fazer tratamento no laboratório, dentro desse mesmo tubo “vai ser colocado um fio de arame que passa a zona da lesão e serve de guia para se colocar um outro tubo que tem um balão completamente colapsado”. O efeito é simples: quando esse balão chega ao local do aperto ou da oclusão, é enchido e vai comprimir a parede da artéria para fora. A este processo chama-se angioplastia. Depois disso, e na maior parte dos casos, é feita a colocação de um stent: um outro balão semelhante que tem à volta dele um tubo de rede metálica (como as molas das esferográficas) e que vai manter a artéria aberta.
Iker Casillas foi submetido a um cateterismo cardíaco no Hospital CUF Porto. Trata-se de um exame diagnóstico que permite saber exatamente onde se encontra a obstrução que está a causar o enfarte e, assim, atuar com precisão. De seguida, foi-lhe colocado um stent.
Em alguns casos, pode ser necessária a intervenção cirúrgica, mas “muito raramente”, explica Vasco Gama Ribeiro.
É normal um desportista de alta competição ter um enfarte aos 37 anos?
É unânime entre todos os especialistas que o caso de Iker Casillas é uma exceção. Não é comum um atleta de alta competição, que mesmo com 37 anos é considerado novo quanto ao perfil desta doença, sofrer um enfarte do miocárdio, especialmente tendo em conta o estilo de vida saudável e rigoroso que é obrigado a ter. Mas pode acontecer.
Em declarações à Bola Branca, Domingo Gomes, especialista em medicina desportiva e ex-médico do clube portista, refere que este aspeto deve ser um dos primeiros a ser analisado após a recuperação de Casillas: “A questão que se coloca é porque é que um homem de 37 anos, com a atividade desportiva ao mais alto nível, teve um enfarte do miocárdio. Não é normal. Não tive nenhum caso, nem parecido, com este em 26 anos como responsável pelo departamento médico do FC Porto. Tem de haver, neste caso, um fator intrínseco”, explicou.
Este fator intrínseco pode, por exemplo, passar pela hereditariedade. “É necessário saber se houve mortes súbitas na família até aos 55 anos, pessoas na família que tenham patologias deste tipo, sobretudo nos pais, irmãos ou avós. Ou se ele tem um gene deste tipo”, explicou Domingos Gomes, acrescentando que “os fatores de stress têm também muita importância e também isso tem de ser observado“.
Vasco Gama Ribeiro, por sua vez, disse ao Observador que a possibilidade de se tratar de um problema genético é alta, uma vez que este jogador “é uma pessoa muito saudável” e que nem sempre se consegue antecipar este problema, por muitos exames que sejam feitos. Prova disso é o facto de que em 50% dos doentes com doença coronária, o primeiro sintoma é a morte súbita.
Já Nuno Cadim, especialista em cardiologia desportiva explicou à Bola Branca que quando se trata de um problema de saúde num atleta de alta competição, existe uma “divisão arbitrária dos 35 anos”. Quando o atleta tem menos de 35 anos, “a principal causa são doenças cardíacas hereditárias”. Quando se trata de um desportista com mais de 35 anos, “são problemas das artérias coronárias, que é precisamente o que o Casillas teve”, explicou.
O que acontece depois de um enfarte?
Depois de ter alta hospitalar, que no mínimo acontece após três a quatro dias de internamento, a maior parte dos casos exige uma alteração no estilo de vida da pessoa, através da prática regular de exercício físico e de uma alimentação mais saudável. Mas, mais uma vez, tudo depende do que levou ao enfarte do miocárdio e da gravidade das sequelas.
Será também necessária a utilização de medicamentos que reduzam o risco de novos episódios de enfarte, diz a CUF no seu site, e o tratamento e exercícios de reabilitação, bem como um acompanhamento médico atento.
Iker Casillas vai poder continuar a jogar?
É a grande questão que se coloca, agora que se sabe que o jogador está estável, mas é também a mais prematura de se fazer neste momento. Para já, sabe-se que Casillas não deverá jogar, pelo menos, até ao fim da época.
Entretanto, o agente de Iker Casillas deixou uma mensagem de esperança num possível regresso do guarda-redes aos relvados. “Três dias no hospital e depois tranquilidade. Passado esse período, estará em forma, dando-nos alegrias”, referiu à Rádio COPE. Mas é aqui que as opiniões divergem. Domingos Gomes diz não ter conhecido ao longo da sua carreira na medicina desportiva um caso em que um jogador tenha regressado aos relvados depois de um enfarte do miocárdio.
“Não conheço um caso dessa natureza. Tenho conhecimento de patologias valvulares de jogadores que voltaram a jogar. Mas na parte elétrica do coração não conheço um caso de um jogador que depois de um enfarte do miocárdio voltasse a jogar a nível profissional”, explicou à Bola Branca.
Da mesma opinião é Juan António Corbalán, ex-médico da seleção espanhola de basquetebol e antigo atleta profissional. “Poderá fazer uma vida perfeitamente normal, mas não praticará desporto profissional”, referiu à televisão espanhola TVE, acrescentando que “não se pode jogar futebol com um ‘stent coronário’, muito menos um guarda-redes”.
Já Nélson Puga, o médico do FC Porto, referiu que ainda é cedo para falar sobre o futuro do guarda-redes, uma vez que tudo depende de um conjunto de fatores: “Da medicação que terá necessidade de fazer, da avaliação que terá de ser feita, não apenas em situações de repouso mas também de stress com o exercício físico a que ele é sujeito nesta atividade de alta competição, e também da vontade que ele tenha em continuar este tipo de atividade”. Só depois de ponderadas todas estas questões, “com muita calma e muito diálogo”, é que se vai decidir sobre o seu futuro.
Ao Observador, Vasco Gama Ribeiro explica que “só depois de terminado o tratamento e de serem feitos mais exames” é que se vai perceber o que pode acontecer, mas é otimista em relação ao futuro. Há também, segundo o cardiologista Manuel Pedro Magalhães, outro aspeto que nada tem a ver com a capacidade do coração do guarda-redes depois do enfarte, mas que pode ter influência no futuro dentro das quatro linhas: o efeito psicológico. De acordo com Nélson Puga, a vontade de Casillas “em continuar a fazer este tipo de atividade” pode ser também de levar em conta.
Qual o período de recuperação?
Tudo depende da dimensão das sequelas sofridas e “o tipo de sequelas depende do tempo que se demorou a fazer o tratamento”, refere Vasco Gama Ribeiro ao Observador. Se o tratamento for imediato, como foi o caso de Casillas, “não deve ter sequelas”, uma informação que o médico do FC Porto confirmou esta quarta-feira: “A situação foi resolvida na hora, sem que ele tenha ficado com qualquer tipo de sequelas”.
Mas, pelo menos durante seis meses, Iker não deverá jogar, uma vez que colocou um stent e vai necessitar de fazer uma medicação (chamada dupla anti-agregação) que fará com que as suas plaquetas não funcionem. Durante esse período, não é aconselhável a realização de atividades com contacto físico, como é o caso do futebol (sobretudo à frente da baliza), uma vez pode fazer vários hematomas e, como as plaquetas não funcionam, sangrará mais facilmente.
Segundo Nuno Cadim à Bola Branca, “se foi uma artéria pequena e se a zona e a quantidade de tecido cardíaco que morreu foi muito pequena, as implicações serão menores”. Mas, pelo contrário, “se o enfarte foi grande e se o coração ficou com lesões extensas e muito graves, as implicações serão, com certeza, muito maiores”, acrescentou. Tudo passa pelo momento que se vê “a quantidade de tecido cardíaco que morreu”. Só depois poderemos saber se o caso de Iker Casillas implica o final da sua carreira ou não. Até lá, a garantia mais importante vem do médico do FC Porto: “Que ele vai ficar perfeitamente recuperado e restabelecido, disso temos praticamente a certeza”.