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Chegado o fim do ano, é tempo de olhar para trás e fazer as habituais contas. No que diz respeito à literatura, não faltaram coisas boas, como mostram as escolhas de 2018 dos jornalistas e colaboradores do Observador.

Este ano, foi a não-ficção que esteve em força. Mas, curiosamente, não foram tanto as obras de História que convenceram. A maioria preferiu livros de teor ensaístico ou biográfico, de que são exemplo Thomaz de Mello Breyner – Relatos de uma época, de Margarida de Magalhães Ramalho, sobre o médico do rei D. Carlos que durante a noite dava consultas a prostitutas, ou Monsieur Proust, escrito pela governanta Céleste Albaret, que relata, entre outros pormenores, como o escritor francês gostava de comer croissants na cama.

Marcel Proust é, aliás, um dos autores mais referidos na lista dos melhores livros de 2018, em parte graças à publicação de textos menos conhecidos pela E-Primatur. Dulce Maria Cardoso, que publicou recentemente um novo romance, surge em segundo lugar. Mas nestas escolhas couberam também contos, poesia e tantas outras coisas que o melhor é mesmo dar uma vista de olhos.

Carlos Maria Bobone

A Gargalhada de Augusto Reis
Jacinto Lucas Pires
Porto Editora

Não foi um ano fantástico para o romance português. Este tríptico — que junta uma realizadora de cinema, um poeta vindo de um bairro social, e um alto quadro do Estado Novo — acaba por ser das empreitadas mais interessantes. Não só pelo retrato ainda esfumado de uma burocracia importante no regime mas pouco comprometida com ele, mas também pela alegria branda que repassa o livro.

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Thomaz de Mello Breyner – Relatos de uma época
Margarida de Magalhães Ramalho
Imprensa Nacional – Casa da Moeda

Uma biografia exaustiva do médico e amigo do rei D. Carlos que baloiçava entre a corte e as vielas de Lisboa, onde dava apoio médico às prostitutas, por exemplo. Thomaz de Mello Breyner — Relatos de uma época não só nos dá acesso a informações difíceis de encontrar no meio dos seus intermináveis diário como permite, através da vida do biografado e sem enxúndia de circunstância, obter um retrato muito completo da sociedade do fim do século XIX.

La Hispanidad como Problema
Miguel Ayuso
Consejo de Estudios Hispánicos Felipe II

No meio dos escombros da Espanha unida, este livro de Miguel Ayuso é um milagre de lucidez. Não só pelo rigor histórico e pela erudição, mas sobretudo por se tratar de um caso raro de uma defesa patriótica da unidade espanhola, sem com isso cair numa teodiceia pouco fundamentada. Miguel Ayuso é um grande conhecedor da história política de Espanha, e percebe como poucos a ideia de tradicionalismo que, mal ou bem, foi mantendo a Espanha unida durante vários séculos.

Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa
Alexandre Andrade
Relógio d’Água

Um enredo em que se misturam dois tempos, com a busca do Graal transposta para o nosso século. Aquilo que poderia ser um artifício de gosto duvidoso transforma-se, pela mestria técnica do autor, quase num acontecimento natural. Alexandre Andrade escreve de uma forma quase fria, com aquela nudez puritana que, entre os grandes, encontramos em Racine e, entre os nossos, encontramos em quase ninguém.

O Bairro dos Jornais
Paulo Martins
Quetzal

Este livro é uma impressionante relação dos jornais que passaram pelo Bairro Alto, do modus vivendi em cada um e da vida quotidiana no bairro. A quantidade de informação, não só sobre os jornais, mas também sobre Lisboa, é verdadeiramente assombrosa.

As escolhas de Carlos Maria Bobone

Joana Emídio Marques

Fuck The Polis
João Miguel Fernandes Jorge
Relógio d’Água

João Miguel Fernandes Jorge é um poeta com uma obra rara, um universo tão vasto quanto particular, tão intenso quanto discreto. Há quem não dê por ele e há os que seguem os seus livros como fragmentos preciosos e solenes da poesia como uma arte imemorial que se liga ao mais profundo, pessoal e quotidiano. As palavras funcionam para João Miguel Fernandes Jorge como os traços e manchas com que um pintor compõe uma imagem, como os fios das tecedeiras ou das parcas se unem até formar um manto ou um destino.

Desde 2014 que não publicava e agora, já perto do fim deste ano, ei-lo de volta com este Fuck The Polis ou a Grécia revisitada onde as cidades de hoje são as cidades de ontem, onde cada objeto, cada gesto, cada paisagem é mais do que um “aparecer” ou um modo discursivo; é uma fundura, uma aura onde os tempos se encontram num longínquo que aparece em instantes fugazes, na ruína, na derrota, na erosão, como esse mítico rio (Ilissos) que correu em Atenas e hoje não existe senão como um fio de água canalizada nos arrabaldes da metrópole.

Ultimato
Diogo Vaz Pinto
Maldoror

2018 ficará na história da poesia portuguesa como o ano em que a raiva, a fúria, o desespero encontraram uma voz em Ultimato, de Diogo Vaz Pinto. O livro que não segue aquela que parece ser a máxima desta época, “fake it until you make it”, mas foi, apesar da sua força, da sua originalidade e da sua dureza, totalmente ignorado pelos media, pelos júris de serviço aos prémios literários, pelos comissários e curadores de eventos. Ultimato diz-nos que há uma geração que já não se revê no esplendor futurista de Álvaro de Campos, nem no spleen decorativo dos poetas sem qualidades, que brada à maneira do Velho do Restelo (alter-ego de Camões) contra a “glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”.

Arquipatologia. Tratados I-IX
Filipe Montalto
Edições Colibri

A pequena edição universitária desta obra corre o risco, como tantas coisas que se editam em Portugal, de passar totalmente despercebida, não obstante a sua importância para os estudos da cultura Portuguesa, nomeadamente do Renascimento. Publicados em 1614 por Filipe Rodrigues Montalto ou Elias Filoteu (1567-1616), os 18 tratados de Arquipatologia antecipam o que veio a ser a psiquiatria moderna. O seu autor, um médico cristão-novo reconvertido ao judaísmo, exerceu a sua profissão na corte de Maria de Medicis e a sua morte precoce fez com que a originalidade do seu pensamento nunca tenha sido devidamente reconhecida.

Escrito em latim, Arquipatologia é a primeira grande tentativa de sistematização da doença mental. A obra aborda ainda a relação entre doença mental e sintomas físicos (hoje designadas como “origem psicossomática”) e faz uma abordagem totalmente nova da dor, que descreve como algo que não é apenas físico mas que está também ligado à imaginação e à sensibilidade.

Este primeiro tomo que reúne os tratados de I a IX  é fruto de uma trabalho de vários anos feito por latinistas, médicos, psicólogos e filósofos. Foi coordenado por Adelino Cardoso, discípulo do filosofo português Fernando Gil, pelo psiquiatra José Morgado Pereira e por Manuel Silvério Marques, do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL). Em paralelo, foi publicado um conjunto de ensaios, a Dor e o Sofrimento e Saúde Mental, escritos a partir dos estudos de Montalto.

Livro Por Vir
Maurice Blanchot
Relógio d’Água

Nenhum livro é uma história acabada para aqueles que verdadeiramente leem, e por isso esta é uma obra essencial para aqueles que procuram refletir sobre a literatura e as suas complexas formas de representar a experiência humana. Maurice Blanchot não teme romper com os conceitos de géneros literários nem com a arrumação científica que aquieta muitas almas. A sua abordagem das obras de Proust, Goethe, Kafka, Artaud, Borges, Beckett, Virginia Woolf, etc., é indisciplinada, provocativa e exigente.

O Livro por Vir tinha sido publicado pela Relógio D’ Água em 1984 e não houve, até esta reedição, mais nenhuma tradução da obra em Portugal.

Escritos sobre Cinema 
João Bénard da Costa
Cinemateca

Durante anos e anos, os espectadores da Cinemateca sabiam que as “folhas de sala” com os textos de João Bénard da Costa eram tão imperdíveis como os filmes. Houve até quem os colecionasse ou arquivasse religiosamente. Há mesmo quem, ainda hoje, vá lê-los como quem revê um filme porque sabe que ali vai encontrar sempre pensamentos renovados sobre o cinema, o poder das imagens, pequenas histórias de bastidores, constelações de significados, símbolos ou corpos interligados, numa trama que talvez só Bénard da Costa visse. Talvez ele inventasse tudo aquilo para nos manter presos com ele ao grande fascínio do cinema. Estes “escritos” não podem ser reduzidos a um género, nem se esgotam no cinema; cada um deles é uma peça sobre a história, a filosofia, a política e a arte do nosso tempo e de qualquer tempo que advenha. Poucos são em Portugal os verdadeiramente escritores. Bénard da Costa é um deles.

As escolhas de Joana Emídio Marques

Jorge Almeida

Contos completos e outros textos
Marcel Proust
E-Primatur

Pergunta-se demasiadas vezes que valor teria o resto da obra de Marcel Proust se este não tivesse escrito o romance Em Busca do Tempo Perdido, quando seria muito mais útil perguntar qual seria o verdadeiro valor desse grandioso romance se não existissem os textos que Proust escreveu antes. A leitura de Contos completos e outros textos permite-nos responder a estas duas perguntas, e a outras bem mais interessantes, enquanto nos deleitamos invejosamente com a prosa excecional de Proust. (Na frase anterior, onde se pode ler “prosa excecional”, escrevi inicialmente “prosa inimitável”, mas tal não é verdade. A prova disso mesmo é o conjunto de pastiches feitos por Proust, e incluídos neste livro, que nos provam que para um grande artista nada é “inimitável”).

Monsieur Proust
Céleste Albaret
Imprensa da Universidade de Lisboa

O que também ajuda a perceber esse monumento maior da literatura que é o romance de Marcel Proust é o livro de memórias de Celéste Albaret, a governanta e confidente do escritor durante um período considerável dos anos que este dedicou à escrita de Em Busca do Tempo Perdido. Para além dessa ajuda preciosa, este livro traz aos leitores de Proust uma doce sensação de vingança pois. se durante a leitura do romance sentimos frequentemente que o escritor nos espiou a alma e, posteriormente, a divulgou ao mundo, não deixamos agora de sentir um certo prazer enquanto o vemos comer o seu croissant na cama ou a perguntar a Celéste se não ficaria ridículo com um bigode como o do Charlot.

Cartas a Milena
Franz Kafka
Relógio d’Água

Foi do posto dos seus antiquíssimos “38 anos de judeu” que Franz Kafka conheceu a jovem Milena, sua admiradora e esposa de um intelectual que frequentava o meio literário de Praga. Dois meses depois de terem começado a trocar cartas com um intuito exclusivamente profissional, Kafka escrevia a Milena que esta era a primeira pessoa com quem estabelecera uma conversa sincera, não porque fosse incapaz de o fazer com os outros, mas porque ela fora a única a ter “olhos verdadeiros e compassivos” para com ele. Entre estas duas cartas já Kafka fizera planos para um futuro a dois e sugerira a Milena que esta se separasse do marido. Estas cartas, pela primeira vez publicadas em Portugal na sua totalidade, mostram-nos que Kafka não foi só um espírito lúcido permanentemente angustiado, mas que também foi um homem como todos os outros, meio habilidoso e meio trapalhão na tentativa de galantear algo que lhe era querido.

Portugal Contemporâneo
J.P. Oliveira Martins
BookBuilders

A história da literatura tem uns quantos exemplos de primeiras frases inesquecíveis: a cadência da longa primeira frase de História de Duas Cidades (Charles Dickens) é tão memorável como a concisão do “Call me Ismael” de Moby Dick, como o tom perentório de “Mrs. Dalloway said that she would get the flowers herself”, do romance de Virgina Woolf, ou como o espanto de Gregor Samsa em ter acordado metamorfoseado num inseto, no célebre conto de Kafka. Nenhumas delas é, todavia, melhor do que a frase “Sua Majestade fora a Belém comer uma merenda”, que Oliveira Martins usa para abrir Portugal Contemporâneo, um dos livros mais extraordinários do século XIX. Por razões incompreensíveis, este livro não foi visto durante largos anos nos escaparates das livrarias. A BookBuilders teve a excelente ideia de acabar com essa lacuna, e fê-lo com uma edição muito recomendável, sobretudo graças às notas explicativas que auxiliam o leitor menos versado na história de Portugal a não se perder entre títulos nobiliárquicos e nomes próprios ou entre Constituições e revoltas populares.

E a minha festa de homenagem? Ensaios para Alexandre O’Neill
Joana Meirim (organização)
Tinta-da-China

Uma boa parte dos leitores portugueses tem alguma relutância em se dedicar à leitura da escrita ensaística. Alega-se amiúde, e talvez com razão, que a literatura ensaística peca pelo uso de uma linguagem técnica, muitas vezes obscura, o que, diz-se, acaba por afastar imediatamente os não-iniciados nos mistérios dessa espécie de discurso privado parecido com rendas de bilros. Este conjunto de textos sobre a obra de Alexandre O’Neill (da poesia à publicidade) mostra que é possível escrever ensaios de valor científico manifesto sem sacrificar a sua inteligibilidade, permitindo, assim, que a conversa intelectual se alargue para lá dos confins das freguesias do costume, o que, como devíamos saber, é sempre saudável e agradável.

As escolhas de Jorge Almeida

João Pedro Vala

Sessenta Contos
Dino Buzzati
Cavalo de Ferro

Dino Buzzati dedicou grande parte dos seus esforços literários a ridicularizar a nossa pretensão de saber, a humilhar a ilusão que todos partilhamos de que percebemos minimamente o que estamos aqui a fazer, de que controlamos a vida, de que somos capazes de traçar limites entre o que pode ou não acontecer. Depois de ler Sessenta Contos, a única certeza com que ficamos é a de que Buzzati é um escritor extraordinário. Já não é mau.

Eles Eram Muitos Cavalos
Luiz Ruffato
Tinta-da-China

Se formos rigorosos, Eles Eram Muito Cavalos saiu em dezembro de 2017, o que não lhe permitiu integrar a lista do ano passado. Como o país de que Ruffato é originário (o Brasil) decidiu retroceder algumas décadas durante este ano que agora acaba, pode ser que ninguém note.

Variedades da Experiência Religiosa
William James
Relógio d’Água

A sua generosidade intelectual aliada a uma impressionante seriedade e robustez de pensamento fazem de William James um dos autores mais relevantes dos últimos duzentos anos e de Variedades da Experiência Religiosa a mais importante novidade do mercado editorial português em 2018.

A Vítima Tem Sempre Razão?
Francisco Bosco
Tinta-da-China

Francisco Bosco procura devolver alguma serenidade e bom-senso à discussão de surdos em que se tornou o debate acerca do feminismo e dos direitos das minorias, tentando também recordar que há, no entanto, questões mais prementes, como a pobreza, que parte da esquerda parece ter esquecido. Ainda que dado a alguns (e não negligenciáveis) exageros, A Vítima Tem Sempre Razão? é um livro muito recomendável.

Contos Completos e Outros Textos 
Marcel Proust
E-Primatur

Em boa hora, a E-Primatur decidiu começar a reparar o lamentável abandono a que toda a obra de Marcel Proust, com exceção de Em Busca do Tempo Perdido, é votada em Portugal. É certo que pouco do que Proust escreveu antes da sua obra-prima tem um décimo do valor, mas se esse fosse um critério aceitável, a feira do livro podia mudar-se para a Rua da Betesga.

As escolhas de João Pedro Vala

Nuno Costa Santos

A Expulsão do Outro
Byung-Chul Han
Relógio D’Água

Filósofo nascido em Seul que se afirmou na Alemanha, Byung-Chul Han tem procurado perceber, livro a livro, quais armadilhas em que caiu esta sociedade cansada, na qual cada um oferece a sua intimidade a um sistema que muito agradece para melhor vender o seu peixe digital. Em A Expulsão do Outro aponta para a expulsão da diferença em nome do comércio entre “consumidores”, todos iguais. Em consonância com um seu outro livro, O Aroma do Tempo, destaca o fim do olhar, da voz, da linguagem, do erotismo, como sintomas da doença do like e da adição à selfie. Pode parecer por vezes que o que afirma Byung-Chul Han é óbvio e elementar. Mas topar a evidência é, muitas vezes (e é o caso), uma arte praticada pelos melhores. “Só os profetas enxergam o óbvio”, escreveu, com acerto, Nelson Rodrigues.

Obra Perfeitamente Incompleta
José Sesinando
Tinta-da-China

Volume que reúne livros importantes de Sesinando (ou José Palla e Carmo, autor das palavras prévias ao livro), figura invulgar, e por isso necessária, na literatura portuguesa. Personalidade culta, ensaísta de O Tempo e o Modo, tradutor experimentado, resolveu também ocupar o (necessário) espaço de adepto do nonsense, de parodiante das convenções da arte literária, de jogador de palavras. A sua prosa e a sua poesia são hinos humorísticos pejados de jogos que uma leitura demasiado veloz não captará. Quando faz férias do ato de desconstruir, Sesinando quer contruir — basta ler a Cantata para o Nosso Tempo. Mas é uma edificação que pouco dura. Porque o gozo e a vontade de sabotar são mais fortes do que qualquer desejo de posteridade. Basta espreitar as “variações pessoanas” para perceber isso.

Luanda, Lisboa, Paraíso
Djaimilia Pereira de Almeida
Companhia das Letras

Luanda, Lisboa, Paraíso, situado primeiramente numa Lisboa dos anos 80, cidade cuja luz nunca iluminou os protagonistas Cartola e Aquiles, tem dois territórios como pano de fundo (Angola e Portugal) e duas pessoas que ao viajar do primeiro país para o segundo são recebidas como estranhos — e por uma série de circunstâncias que os vão, aos pouco, esgotando. Para utilizar os termos do narrador, Luanda tornara-se uma miragem e Lisboa era uma cidade sem árvores. Ao segundo livro, a autora de Esse Cabelo cria uma história que, além de tratar do tema complexo da identidade, se dedica a temas humanos como a doença, a relação pai-filho, a sobrevivência e a amizade. O estilo é excelente e dedica-se ora a assinalar a crueldade da vida ora a desenhar páginas de enormíssima beleza.

O Pai da Menina Morta
Tiago Ferro
Tinta-da-China

O Pai da Menina Morta, do brasileiro Tiago Ferro, é uma obra desarrumada e desassossegada como só pode ser um livro escrito por um pai que perdeu a filha de oito anos. Compõe-se de uma série de apontamentos que estão entre a dor e a culpa — e a incapacidade de ter certezas sobre o que fazer a seguir. Obra com um registo próprio, fragmentária e experimental (no seu desespero), pode ser integrada numa família literária, hoje evidenciada, que parte do eu para contar outra coisa (por alguma razão a epígrafe do livro é um texto de Karl Ove Knausgård). “Eu não quero ser o Pai da Menina Morta. Eu sempre serei o Pai da Menina Morta”, diz a certa altura quem escreve, assinalando de uma forma direta uma pesada condição que o acompanhará para sempre. Contém, o livro, revelações de dor, alusões a sexo, contactos com professoras de meditação e cartomantes, listas de medos, feridas que nunca se irão curar. A literatura não salva mas procura consolar o desespero e a solidão.

Os cães ladram facas
Charles Bukowski
Alfaguara

São versos como estes que podem ser encontrados em Os cães ladram facas, antologia poética de Charles Bukowski: “se não rebentar de dentro de ti,/a despeito de tudo,/ não o faças”. É um mais do que questionável conselho a quem quer ser escritor, próprio de quem via na literatura um exercício radical vindo das entranhas. O que podemos dizer é que a “mensagem” aí contida está de acordo com o projeto de Bukowski, o de se apresentar poeticamente de camisa amarrotada, verbo urgente e pouco simpático. É a forma intensa como se apresenta esta antologia, com tradução à altura de Rosalina Marshall, que a torna poderosa e entusiasmante para quem quer espreitar a sujidade escondida no verso dos cartazes. Uma América de famílias violentas, pobres, que habitam cidades “merdosas”, entre bebidas, sexo, uma visão trágica da humanidade e um ocasional pássaro azul.

As escolhas de Nuno Costa Santos

Rita Cipriano

Eliete — A vida normal
Dulce Maria Cardoso
Tinta-da-China

Sete anos depois de O Retorno, Dulce Maria Cardoso tem um novo livro. Eliete é uma história (aparentemente) normal sobre uma mulher normal, com trabalho, marido e duas filhas, que nunca soube sonhar alto ou ter uma ambição maior do a de deixar de usar óculos. Essa normalidade, onde nunca coube a estranheza, é marcada por conceitos herdados da ditadura salazarista, presente ao longo de todo o romance, como uma sombra. Mas serve também de metáfora ao mundo atual, onde, apesar da informação abundante, parecemos, tal como Eliete, incapazes de ver o que está mesmo debaixo do nosso nariz. Escolhemos fechar os olhos, permanecer dentro da nossa própria bolha e fugir do que é não é normal. Porque o que é estranho causa tempestades e as tempestades obrigam a mudanças. E estas, já se sabe, geralmente não são vistas com bons olhos.

Mais do que a história normal de uma “vida normal”, Eliete é um convite à reflexão — sobre nós próprios, o mundo e o nosso lugar nele. É um livro atual, que olha para o passado para compreender o presente e talvez lançar alguma luz sobre o futuro, sempre incerto.

O Mundo Gay de António Botto
Anna Klobucka
Documenta

Num país onde os estudos sobre o Modernismo são dominados por figuras de gigantes, é difícil encontrar um bom trabalho sobre um autor que não seja Fernando Pessoa, José de Almada Negreiros ou Mário de Sá-Carneiro. E isso é uma pena. A história da corrente modernista portuguesa fez-se graças ao trabalho de muitos outros bons escritores e artistas que, com a passagem do tempo, acabaram atirados para segundo plano (o que, na verdade, acontece com quase todos em comparação com Pessoa) ou esquecidos. É esse o caso de António Botto.

Quando se fala em Botto, fala-se por causa da polémica em que esteve envolvido (da chamada “Literatura de Sodoma”) ou por associação a Pessoa, de quem era amigo próximo. Nunca se fala em Botto para salientar quão bom poeta era ou para referir o papel inigualável que teve na história da literatura portuguesa. Autor inovador com uma abordagem literária única e uma coragem sem precedentes, António Botto foi o primeiro português a assumir publicamente a sua homossexualidade e o primeiro escritor a fazê-lo sem véus, sem mensagens codificadas, num país agarrado a todos o tipo de preconceitos. O seu livro Canções marcou a literatura portuguesa dos anos 20 mas sobretudo a sua sociedade, que nunca tinha postos uns olhos numa coisa assim. Nem lá fora existe uma obra que se lhe equipare.

Foi procurando devolver o lugar que lhe é devido, que Anna Klobucka, investigadora e professora no Departamento de Português da Universidade de Massachusetts Dartmouth, decidiu escrever um ensaio com “pistas e sugestões” sobre “o escritor e criador único à escala nacional e europeia que foi António Botto”. O Mundo Gay de António Botto chegou no verão, mas é fruto de 11 longos anos de trabalho. Apesar de Klobucka considerar que está longe de ser perfeito, o seu trabalho é um passo importante, que, aliado à publicação de uma nova edição da poesia de Botto pela Assírio & Alvim, também neste ano, torna acessível e mais compreensível a obra deste grande poeta português.

Fausto
Fernando Pessoa (edição de Carlos Pittella)
Tinta-da-China

O Fausto de Fernando Pessoa foi publicado pela primeira vez por um primo do poeta, Eduardo Freitas da Costa, em 1952. Depois desta primeira edição, seguiram-se outras, que, de uma modo geral, tentaram sempre apresentar o Fausto como aquilo que ele não é — uma obra com princípio, meio e fim. Só mais recentemente, no início deste ano, é que surgiu uma edição que pretende mostrar a peça inspirada no mito de Johann Georg Faust tal como Pessoa a deixou na “arca” — como um aglomerado de fragmentos maioritariamente inacabados e sem ordem aparente.

Da responsabilidade de Carlos Pittella, esta é a primeira edição crítica da peça de Pessoa. É também a primeira a apresentar os diferentes textos cronologicamente, permitindo ao leitor acompanhar a construção do Fausto pessoano, evidenciando ao mesmo tempo as suas muitas particularidades. Por exemplo: Pessoa trabalhou no Fausto durante um longo período da sua vida, desde 1907 ou 1908 até perto da sua morte. Isto coloca a peça lado a lado com o Livro do Desassossego, mas mostra também que precede os heterónimos e continua depois deles, sendo possível encontrar vestígios deles nele. Foi esse trabalho persistente e contínuo que levou Manuel Gusmão a descrever o Fausto de Fernando Pessoa não como um “poema inacabado”, mas “inacabável”. Uma ideia partilhada pelo editor deste novo Fausto: “Se acharmos que o Fausto é uma coisa inacabada, então é um fracasso. Se o considerarmos uma peça inacabável, é um labirinto, uma espiral, um diário de busca — da busca do conhecimento, da verdade”.

As escolhas de Rita Cipriano

Susana Romana

A Educação de Eleanor
Gail Honeyman
Porto Editora

Fica-me muito mal assumir publicamente que escolhi ler um livro por causa do Instagram, mas estamos em 2018 e os influenciadores não servem só para vender cremes com glitter e pepitas de unicórnio. O original (versão que li) chama-se Eleanor Oliphant Is Completely Fine e foi um enorme êxito no Reino Unido, com os direitos para cinema já comprados por Reese Witherspoon (a mesma atriz/produtora que levou o livro Big Little Lies das prateleiras para a televisão, com resultados altamente galardoados). Cedi a ler depois de cerca de 342 fotografias do livro pousado em mesas de cafés hipsters.

A Educação de Eleanor marca a estreia literária de Gail Honeyman, que conseguiu assim nos seus quarentas cumprir o sonho de se tornar escritora a tempo inteiro — e logo com um dos bestsellers do ano. Relatado na primeira pessoa, o livro é um tratado trágico-cómico sobre a solidão. Mas não sobre a solidão imposta, já tão abordada: é sobre a escolha de ficar sozinho, sem qualquer interesse em ter de pactuar para lá do básico da convivência humana. A inspiração de Honeyman foi uma entrevista sobre o tema, mas que não se focou nos idosos, o principal alvo do isolamento. O gatilho para esta obra de ficção foi o depoimento real de uma rapariga, com menos de trinta anos, que se gabava de não abrir a boca para falar com ninguém desde o momento em que saia do emprego na sexta à tarde até ao seu regresso na segunda de manhã.

Eleanor é uma excêntrica que se contenta com uma vida simplificada e que tem as competências sociais de um pedaço de gravilha. A sua vida consiste num trabalho de escritório que executa mecanicamente, em telefonemas todas as quartas-feiras para a sua mãe, em ver sempre os mesmos programas de televisão e em embebedar-se epicamente até adormecer no seu apartamento nos subúrbios de Glasgow. Tudo muda quando o novo informático da empresa ousa fazer o que nunca outro colega fez: não tratar Oliphant como uma maluca.

O resto, desenganem-se, não é uma história de amor: é a história de descoberta de uma mulher que não sabe sequer como funciona um centro comercial ou uma ida a uma festa de aniversário. E que, afinal, não é bem aquilo que parece. Surpreendente, cheio de wit britânica, trágico, a lembrar a escrita da saudosa Sue Townsend (criadora dos diários de Adrian Mole) e de ler num só fôlego. Eleanor Oliphant não quer a vossa companhia, mas levem-na a um café hipster à mesma.

Eliete — A vida normal
Dulce Maria Cardoso
Tinta-da-China

Para mim, a escritora Dulce Maria Cardoso é o melhor autor português da atualidade. Foram sete longos anos de espera entre o livro que a tornou mais conhecida (o fantástico O Retorno, sobre o regresso de uma família de retornados a viver provisoria e precariamente num hotel em Cascais) e a primeira parte desta Eliete.

E o que encanta neste volume é a banalidade. Dulce Maria Cardoso descreve como ninguém o mediano, o quotidiano, o banal, o aborrecido. Reza a lenda que “Seinfeld” era uma série sobre nada, mas ninguém escreve sobre o nada como esta escritora. Eliete é uma mulher normal, com uma família normal, a viver num subúrbio da Grande Lisboa normal, com referências de vida normais e amplamente reconhecíveis. Mas descritos com uma precisão incrível, uma espécie de frescura dada a uma memória antiga que nem sabíamos bem que tínhamos. A beleza dos pormenores que não têm beleza nenhuma.

Eliete não é uma heroína e a sua jornada podia ser a minha, a da minha vizinha ou a da minha contabilista. É uma mulher em lume brando que resolve tentar aumentar a ebulição da sua existência, mas sempre sem grande rasgo. Um romance sobre a vidinha, que são os mais angulosos e difíceis de fazer história. Mas Eliete faz.

Sou Um Crime. Nascer e crescer no apartheid
Trevor Noah
Tinta-da-China

Trevor Noah, O Comediante e Trevor Noah, O Apresentador Do Daily Show não são para aqui chamados. Aliás, pena será se os leitores deste livro se ficarem apenas por aqueles que são fãs do trabalho humorístico do sul-africano. O grande protagonista de Sou Um Crime é Trevor Noah, O Miúdo Mestiço Que Nasceu Em Pleno Apartheid, dez anos antes do fim do regime e da libertação de Nelson Mandela.

O título é mais auto-explicativo do que possa parecer: filho de uma mãe negra e de um suíço branco, o mero nascimento de Trevor em 1984 constituía uma grave violação da Lei da Imoralidade de 1927 , que explicitava que: “Qualquer mulher nativa que permita que um homem europeu tenha relações carnais ilícitas com ela (…) terá cometido um crime e estará sujeita a uma pena de prisão por um período não superior a quatro anos”.

Sim, esta autobiografia é divertida, como se seria de esperar de um comediante. Mas também é trágica (a mãe foi vítima de violência doméstica e até de uma tentativa de homicídio), política (as explicações sobre as diferentes línguas e dialetos da África do Sul são essenciais para compreender o país) e ativista (exemplificando variadas facetas da discriminação e segregação). Um livro que, sendo extremamente pessoal, permite pintar um retrato vívido e detalhado do apartheid que não passa nos documentários: o apartheid que se espelha no dia a dia das pessoas de um país confuso, fragmentado e heterogéneo — mas onde um miúdo adolescente é só um miúdo adolescente, ralado com raparigas e borbulhas. A isto alia-se uma escrita vibrante e altamente relacionável, num livro surpreendente e que é uma grande obra por si só, muito para lá do resto da carreira de Noah.

As escolhas de Susana Romana

Vasco Rosa

O Mundo da Escrita. O poder das histórias que formaram os povos e as civilizações
Martin Puchner
Temas & Debates

O Mundo da Escrita é a história dos livros (ou de alguns livros famosos, pelo menos) tal como foram lidos ao longo dos séculos (e por vezes por figuras destacadas da epopeia humana), da boa crença no livro como objeto de civilização, e na literatura como modeladora da história. “A lição mais importante da história da literatura é que a única garantia de sobrevivência é o uso continuado” — um aviso a todos, educadores incluídos.

Caretos e Coretos. Tradições populares em Portugal
Vera Marques Alves (texto) e Carolina Celas (ilustrações)
Museu Casa da Moeda

Trata-se de um surpreendente trabalho de redação, ilustração e grafismo, mostrando a excelência de certos sectores da Edição Portuguesa, e aqui muito bem aplicado a coisas realmente nossas: as arrecadas de Viana, os jugos dos bois, as colchas de Castelo Branco, o figurado de Barcelos, os caretos transmontanos, os espigueiros do noroeste — pretextos para edição de moedas de coleção. Não pode a Imprensa Nacional fazer também uma tiragem em inglês?

Os Ballets Russes: Modernidade após Diaghilev
Isabel Capeloa Gil e Paulo Campos Pinto (organização)
Documenta

Um conjunto de ensaios dedicados à impactante arte dos centenários bailados russos, “fenómeno cultural total da modernidade” que ainda ressoa e fascina (e permitindo imaginar o que terá sido à época…). Uma segunda parte do livro é dedicada à exposição sobre o tema promovida pelo Museu Nacional do Teatro e da Dança, incidindo sobre a passagem da companhia por Lisboa, parte da qual na Galeria Millenium. Excelente reportório documental e fotográfico.

Ether. Um laboratório de fotografia e história
Susana Lourenço Marques
Dafne

António Sena e a sua galeria de fotografias na Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa, finalmente contada e analisada exaustivamente. Nunca esperei que alguém enfrentasse o desafio — a meu ver, óbvio e indispensável — de evitar que a inusitada aventura da “Ether / Vale tudo menos tirar olhos” caísse no esquecimento, mas Susana Lourenço Marques cumpriu-o plenamente. E fazendo-o com a editora Dafne, pôs tudo nos seus devidos lugares. Sem qualquer dúvida, um dos livros de 2018.

A Arte de Caminhar. Um passo de cada vez
Erling Kagge
Quetzal

A Arte de Caminhar é um sortido de reflexões quase filosóficas, com abundantes (quase excessivas até) apropriações de testemunhos de gentes das artes e das letras de todos os tempos, dedicadas ao ancestral ato de andar — e as mais variegadas experiências pessoais do norueguês Erling Kagge são o piso que lhes serve de pretexto. O autor de Silêncio na Era do Ruído advoga a longa caminhada como liberdade, para concluir que “os nossos pés são os nossos melhores amigos” (p. 75). E também nos diz que “a maneira como uma pessoa caminha pode dizer-nos mais sobre ela do que o seu rosto” (p. 85). Interessante.

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