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No início de Março passado, houve quem julgasse que a pior coisa que iria acontecer-lhe em 2020 seria o cancelamento das férias de Páscoa numa estância de ski italiana. No final de Março, ainda havia quem acreditasse que, após mais uns dias em confinamento, o SARS-CoV-2 seria debelado e a vida regressaria de imediato ao padrão usual, mas à medida que o ano foi progredindo, o optimismo ingénuo foi dando lugar ao pessimismo auto-comiserativo e 2020 foi prontamente catalogado como annus horribilis, ou até, “o pior ano das nossas vidas”.

Annus horribilis vs. annus mirabilis

O que faz um ano ser “horrível” depende de numerosos factores cuja consideração e ponderação não podem deixar de ser moldadas pelo escopo de interesses e pela subjectividade de quem faz o julgamento, o que é ironicamente comprovado pela origem da expressão annus horribilis e da sua antónima, annus mirabilis.

A primeira aparição do termo annus horribilis parece ter ocorrido em 1891 numa publicação anglicana e foi aplicada ao ano de 1870. O que terão os anglicanos visto de tão calamitoso em 1870? Bem, nasceu um certo Vladimir Ilyich Ulyanov, que seria causa de incontáveis e intermináveis tumultos (que ainda não cessaram), mas disso não podia saber-se em 1891; teve início a Guerra Franco-Prussiana, que seria desastrosa para os franceses e um triunfo retumbante para os prussianos; mais perto da esfera de interesses de uma publicação anglicana, em Tianjin, na China, uma turba massacrou 17 europeus – quase todos padres e freiras – e algumas dezenas de chineses convertidos ao cristianismo. Todavia, o que tornou o ano indelevelmente infausto aos olhos anglicanos foi o facto de o papa Pio IX ter estabelecido como dogma da Igreja Católica a infalibilidade papal em termos de fé e moral (mas não no de previsão de resultados de competições desportivas ou no do melhor método para preparar um espresso).

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Pio IX, por George Peter Alexander Healy, 1871

O termo annus horribilis parece ter sido cunhado em oposição a annus mirabilis, termo que foi empregue pela primeira vez em 1667 por John Dryden. Surge no título do poema épico Annus mirabilis: The year of wonders of 1666, celebrando 1) as vitórias militares dos ingleses sobre os holandeses, em 1665-66, e 2) o facto de o Grande Incêndio de Londres, de Setembro de 1666, não ter sido pior. Dryden atribuiu a intervenção divina o facto de o incêndio, que lavrou durante cinco dias, ter causado apenas seis vítimas (segundo os dados oficiais), mas é difícil perceber como pode um fogo que destruiu as casas de 70.000 dos 80.000 habitantes da City ser inscrito na coluna das “coisas boas” de 1666.

O Grande Incêndio de Londres de 1666, segundo artista anónimo, 1675

Não menos paradoxal é que Dryden tenha omitido do balanço do ano o facto de Londres ter sido assolada em 1665-66 por uma epidemia de peste bubónica que matou 100.000 dos seus 350.000 habitantes e forçara Dryden a buscar refúgio no pacato povoado de Charlton, no Wiltshire, onde escreveu o seu poema.

A Grande Peste de Londres de 1665-66

O termo annus horribilis começou por não suscitar adesão e (salvo uma referência isolada no The Guardian, em 1985) só voltou a ser usado um século depois, em 1992, quando a rainha Isabel II o introduziu no discurso comemorativo do 40.º aniversário da sua coroação, em que admitiu que 1992 não seria um ano que recordaria com prazer. Os eventos que fizeram de 1992 um annus horribilis, na perspectiva da monarca, foram, por ordem cronológica: a separação dos Duques de York; o divórcio da princesa Ana; o suicídio do príncipe Albrecht (sobrinho de Isabel); a publicação do livro de mexericos Diana: Her true story; a publicação de fotos da Duquesa de York a apanhar banhos de sol em topless; a divulgação de gravações de conversações telefónicas em que Diana fazia confidências a um íntimo; o alvejamento da rainha com ovos por manifestantes durante uma visita a Dresden; e um incêndio no Castelo de Windsor. 1992 pode ter sido terrível para Isabel II, mas, uma vez que a família real inglesa é apenas um ornamento dispendioso e não tem relevância fora da “bolha” dos jornais tablóides e das “revistas de coração”, na perspectiva de um londrino que não seja assinante da Hello! ou da Royal Life o annus mirabilis de 1666 foi incomparavelmente pior do que o annus horribilis de 1992.

476: Queda do Império Romano do Ocidente

A queda do Império Romano do Ocidente não só marcou o início de um longo período de guerras, tumultos, pilhagens, fome, epidemias e regressão tecnológica, como se tornou numa metáfora para todos os colapsos civilizacionais.

“Destruição” (1836), o 4.º quadro da série “A maldição do Império”, em que o pintor americano Thomas Cole representou a ascensão e queda de uma cidade imaginária que representa o Império Romano

Não há dúvida de que as condições de vida na Europa decaíram notoriamente a partir do século V, o que é tão perceptível na esfera do espírito – como seja a produção literária e dramatúrgica – como no domínio material – nas casas, as telhas deram lugar a coberturas de colmo e os utensílios de cerâmica perderam sofisticação, na pecuária assistiu-se à diminuição apreciável do tamanho médio das reses. A formidável rede de estradas criada pelo Império deixou de ser mantida e a proliferação de salteadores tornou as viagens por terra inseguras, mas a viagem por mar não era alternativa, já que, na ausência da marinha imperial, a pirataria tomara conta dos mares. Resultou daqui que o intenso comércio entre diferentes regiões, dentro e fora do Império, foi severamente reduzido, o que teria feito rejubilar os inimigos da globalização e os profetas da produção e consumo local, acaso nesse tempo já existisse tal fauna. Com a queda do Império, a vida do europeu médio tornou-se mais pobre, penosa, desconfortável, monótona, tacanha e curta.

O argumento para declarar o ano de 476 como horribilis é o de ter sido nessa data que foi formalmente extinto o Império Romano do Ocidente. A 4 de Setembro, em Ravena, que substituíra Roma e Mediolanum (Milão) como capital do Império, Odoacro (Flavius Odoacer), um oficial de origem germânica que assumira o comando dos foederati (unidades formadas por “bárbaros” que integravam o exército romano) em Itália, pôs termo ao reinado de dez meses do imperador Rómulo Augusto, um rapaz de 16 anos que, na verdade, não tinha mais legitimidade para ocupar o trono imperial do que Odoacro, uma vez que tinha sido proclamado imperador pelo seu pai, Orestes, um general que derrubara o anterior imperador Júlio Nepos (ele mesmo um golpista que apenas reinara 14 meses).

Mas, em 476, o Império era uma pálida sombra do que fora, pelo que Odoacro não se deu ao trabalho de, como tinham feito tantos usurpadores antes dele, assumir o título de imperador ou de colocar um fantoche no seu lugar: contentou-se em fazer-se proclamar rei de Itália (o Império estava, na prática, confinado à Península Itálica, embora formalmente detivesse autoridade sobre algumas regiões da Gália e da Dalmácia) e remeteu os símbolos do poder imperial para Constantinopla, sede do Império Romano do Oriente. Também ao contrário do que era uso, Odoacro poupou a vida do infeliz e inofensivo Rómulo Augusto (que passou a ser conhecido, depreciativamente, como “Augustulus”, diminutivo de “Augustus) e enviou-o para o exílio na Campânia.

476 não foi mais horribilis do que 475 ou 477: o Império entrara em declínio no início do século IV e a queda nos indicadores de prosperidade e sofisticação civilizacional tornara-se evidente a partir do início do século V, coincidindo com as invasões visigóticas de Itália, comandadas por Alarico, que se tinham iniciado em 401 e culminaram em três cercos a Roma, em 408, 409 e 410, tendo o último resultado no saque da cidade pelos visigodos. Não fora o primeiro saque da antiga capital imperial – tinha sido pilhada pelos gauleses de Brennus em 390 – nem seria o último – em 455 foi a vez dos vândalos de Genserico. É provável que, para os romanos, os anos de 390, 410 e 455 tenham sido bem mais horribilis do que 476, cujo significado foi meramente simbólico.

“O saque de Roma em 410”, por Joseph-Noël Sylvestre, 1890

Enquanto os séculos V e VI foram um período sombrio para os habitantes da Península Itálica e da Europa Ocidental – no cômputo de cálculos macabros que é O grande livro das coisas horríveis, Matthew White estima em 7 milhões o número de mortos nos conflitos entre o Império e os bárbaros só entre 395 e 455 –, os territórios do Império Romano do Oriente prosperaram ao longo do século V e do primeiro terço do século VI, o que nos lembra, mais uma vez, que o julgamento do que é um bom ou mau ano depende da posição de quem o faz.

“Desolação” (1836), o 5.º e último quadro da série “A maldição do Império”, por Thomas Cole

536: Conjugação de calamidades do reinado de Justiniano

A prosperidade e sofisticação do Império Romano do Oriente conheceram o apogeu no reinado de Justiniano I, que ascendeu ao trono de Bizâncio em 527 e empreendeu um ambicioso programa de restauração do Império (renovatio imperii), conquistando, a oeste, antigos territórios do Império Romano do Ocidente no Norte de África e em Itália, contendo, a leste, as ambições expansionistas do Império Sassânida, ordenando a construção e reconstrução de basílicas (a Hagia Sophia de Constantinopla ganhou então a monumentalidade que hoje lhe conhecemos), erigindo monumentos e promovendo as artes e as letras. Este ímpeto sofreu uma grave perturbação em 536 e, ainda que Justiniano retomasse o seu programa expansionista e de mecenato artístico até ao final do reinado, em 565, o Império Romano do Oriente não tardaria a entrar em declínio.

Um anjo mostra a Justiniano o modelo que deverá seguir para reconstruir Hagia Sophia. Ilustração por Herbert Cole, 1912

536 ficou marcado pela conjugação de infortúnios inexplicáveis, um pouco por todo o mundo: os testemunhos da época falam da diminuição da intensidade da luz solar, da aparição de espessos e persistentes mantos de nevoeiro amarelado e da ocorrência de neve durante o Verão em lugares onde nunca antes fora vista e de vários fenómenos climáticos extremos, de que resultou a perda maciça de colheitas e fome generalizada. Estes relatos têm sido atestados pelo estudo dos anéis de crescimento dos troncos das árvores e de “cores” de gelo de glaciares, que sugerem que no final de 535 ou início de 536 terá ocorrido uma gigantesca erupção vulcânica que terá lançado na atmosfera uma tal quantidade de cinzas e sulfatos que terá obstruído a penetração da radiação solar no Hemisfério Norte, dando início à “Pequena Idade do Gelo da Antiguidade Tardia”. Esta prolongou-se até 547 – embora de forma menos intensa do que nos terríveis anos de 536-37 – possivelmente devido a novas erupções c.540 e c.547, sendo as hipóteses de localização destes episódios de vulcanismo objecto de variadas hipóteses, que contemplam a Islândia, o Alaska, a Indonésia ou El Salvador. Seja qual for a origem, o fenómeno será provavelmente o mesmo que, pela mesma altura, causou más colheitas e fome na China, Índia, Peru e Mesoamérica.

Em 541, abateu-se sobre as populações enfraquecidas pela fome do Próximo Oriente e da Bacia Mediterrânica mais um flagelo: uma pandemia que ficou conhecida como “Peste de Justiniano” e que era, provavelmente a peste bubónica, com origem remota na região de Tian Shan, na Ásia Central, na fronteira entre o que são hoje o Quirguistão, o Cazaquistão e a China (há uma longa tradição de “Chinese virus”).

Durante a Peste de Justiniano, São Sebastião, de joelhos, em cima, à direita, suplica a Jesus para que interceda em favor de um coveiro infectado pela peste (deitado, em baixo, à esquerda). Quadro de Josse Lieferinxe, c.1497-99

O próprio Justiniano contraiu a doença mas sobreviveu; muitos dos seus súbditos não tiveram a mesma sorte e estima-se que durante este surto, que teve o seu pico em 541-42 e só terminou em 549, terão perecido 30 a 50 milhões de pessoas, o que representaria cerca de um terço a metade da população da Europa e Bacia Mediterrânica. A peste, ao dizimar os trabalhadores agrícolas e quebrar os circuitos comerciais, veio intensificar a fome causada pelo fracasso das colheitas, mas nem esta combinação de calamidades pôs termo às campanhas militares de Justiniano contra os povos germânicos em Itália e contra os sassânidas na Síria. É difícil estimar as baixas resultantes destes conflitos e os relatos contemporâneos do cronista Procópio de Cesareia, que acompanhou o general bizantino Belisário em campanha, e apontam para 15 milhões de mortes em Itália e 5 milhões no Norte de África, são pouco dignos de crédito. O que é certo é que, durante o reinado de Justiniano, a combinação de guerra, fome e peste teve efeitos devastadores na Bacia Mediterrânica – e para coroar o rol de calamidades, em 551, a costa fenícia entre Tiro e Tripoli foi massacrada por um forte sismo (hoje conhecido por Sismo de Beirute), seguido por tsunami.

755: Revolta An Lushan

A história do mundo vista pelos olhos ocidentais tende a focar-se na Europa e a esquecer o resto do planeta, mas no cômputo de annus horribilis não pode deixar-se de fora a China, pois a sua história foi marcada por numerosas guerras civis e o facto de a sua população ser numerosa leva a que as calamidades aí causem grande mortandade. Entre as mais devastadoras guerras civis que tiveram lugar na China está a Rebelião de An Lushan, que decorreu entre 755 e 763.

An Lushan, por autor anónimo

O general An Lushan (originário do Turquestão) tinha sido um dos favoritos do imperador Xuanzong, o 7.º da dinastia Tang (reinado: 713-56), que o cumulara de presentes – incluindo uma luxuosa mansão – e lhe confiara o comando de três territórios no Norte da China. Porém, quando da morte, em 752, do poderoso primeiro-ministro Li Linfu (um aliado de An Lushan), a concubina imperial Yang Guifei puxou os cordelinhos para que o cargo fosse parar às mãos do seu primo Yang Guozhong, que, pouco a pouco, não só tomou o lugar de An Lushan na predilecção do imperador, como fez tudo para convencer este de que An Lushan conspirava contra ele.

O imperador Xuanzong e a concubina Yang Guifei (no 2.º painel a contar da direita), por Kanō Eitoku (1543-1590)

An Lushan, encurralado entre a crescente desconfiança manifestada pelo imperador e as provocações lançadas por Yang Guozhong, concluiu que a sua vida corria perigo e que só lhe restava o caminho da rebelião: em 755 lançou-se à conquista da capital regional de Luoyang, desbaratou as tropas imperiais e proclamou-se imperador de um estado a que deu o nome de Yan. Após várias batalhas com desfecho pendendo para um lado ou outro, em 756 as tropas de An Lushan tomaram e pilharam a capital imperial, Chang’an, que fora abandonada por Xuanzong (e por boa parte dos seus dois milhões de habitantes). A substituição de Xuanzong pelo filho, que interpretou a fuga do pai como abdicação e se proclamou imperador, com o nome de Suzong, no final de 756, e o assassinato de An Lushan pelo seu filho An Qingxu, no início de 757, não significaram o fim do conflito entre os Tang e a secessão Yan. Este arrastou-se até 763 e terminou com a vitória dos Tang, graças a uma aliança com tibetanos e uigures, que teve como preço a cedência a estes pela China dos seus territórios mais ocidentais e a concomitante perda do controlo chinês sobre a Rota da Seda (como se vê, a ideia, que o regime de Xi Jinping tenta hoje passar, de que a China é uma entidade monolítica e imutável é uma falácia).

O resultado destes oito anos de conflito foi que, entre os censos de 754 e de 764, a China passou de 53 para 17 milhões de habitantes, o que significa que o império perdeu 2/3 (36 milhões) dos seus habitantes. Este número tem servido para apontar a Rebelião de An Lushan como uma das maiores atrocidades da história, mas alguns investigadores põem em causa a fiabilidade dos censos e propõem um cômputo de mortes mais modesto: “apenas” 13 milhões.

1211: Invasão mongol da China

Quatro séculos e meio – e várias guerras civis – após a Rebelião de An Lushan, a China viu-se a braços com um inimigo externo. A China estava então dividida entre as dinastias Jin, de etnia Jurchen (afim dos manchus), que dominava o Norte, e Song, de etnia Han, que dominava o Sul. Os Jin tinham conseguido controlar os irrequietos nómadas das vastas estepes a nordeste semeando a discórdia entre eles, mas um mongol chamado Temujin conseguiu, mediante uma combinação de astúcia e brutalidade, unificar estes povos sob a sua liderança e em 1206 proclamou-se senhor de todos os mongóis, assumindo o nome de Genghis Khan.

Ainda antes de ser aclamado Khan, Temujin já começara a assediar o Império Tangut, que abrangia o território do Xia Oriental e era vassalo dos Jin, mas só se lançou na sua conquista em 1209. O Império Tangut pediu ajuda ao imperador Jin, Wanyan Yongji, mas este ignorou o pedido e os Tangut foram rapidamente derrotados e os seus soldados incorporados nas hostes mongóis. Em 1211, após várias manobras de provocação, os mongóis invadiram a China dos Jin.

Batalha de Yehuling, a primeira entre mongóis e chineses Jin, em 1211, segundo o Compêndio de crónicas (Jami’ al-tawarikh, c.1307-16), do historiador judeu persa Rashid al-Din Hamadani

O imperador Wanyan Yongji subestimara o poderio dos bárbaros da estepe, que, poucos meses depois tinham derrotado os exércitos chineses e estavam às portas da capital Jin, Zhongdu (a moderna Pequim). Os mongóis eram peritos na guerra de movimento mas, nesta altura, tinham ainda escassa prática da guerra de cerco, pelo que marcaram passo face às muralhas de Zhongdu e acabaram por levantar o cerco a troco do pagamento de um tributo e foram assolar outras cidades Jin. Como se não bastassem os mongóis para dar dores de cabeça a Wanyan Yongji, na província de Jilin, no nordeste, eclodiu uma revolta que rapidamente ganhou grandes proporções. Os mongóis voltaram a surgir às portas de Zhongdu em 1215 e como, entretanto, já tinham apurado as tácticas de cerco, tomaram e saquearam  a cidade.

Cerco mongol a Zhongdu, Compêndio de crónicas, de Rashid al-Din Hamadani

Os Jin, que tinham transferido a capital para Kaifeng, continuaram a resistir aos mongóis e Genghis Khan desviou o seu foco para a Ásia Central e para a Pérsia, onde multiplicou as conquistas e as carnificinas. Voltou à China para tentar conquistar o que restava do Império Jin, mas faleceu em 1227 sem o conseguir, e a missão passou para um dos seus filhos, Ögedei Khan. Os Jin pediram ajuda aos Song, mas estes preferiram auxiliar os mongóis e, em 1234, estes acabaram por encurralar o que restava do exército Jin em Caizhou – o último imperador Jin, Aizong, suicidou-se quando os mongóis venceram a resistência desesperada das tropas de Jin e entraram na cidade.

É difícil avaliar a mortandade resultante da conquista mongol da China: os mongóis costumavam ser implacáveis com as populações das cidades que ousavam resistir-lhes e terão passado muita gente a fio de espada, mas também tinham noção do poder da propaganda e faziam questão de divulgar notícias exageradas dos seus massacres, a fim de criar uma aura de terror e, assim, persuadir outros povos a não oferecer-lhes resistência. A comparação dos censos na China Jin, antes e depois da conquista mongol dá conta de um decréscimo de 30 a 60 milhões de habitantes, mas é plausível que uma parte corresponda a populações que buscaram refúgio no Império Song.

Os mongóis acabariam por invadir também o Império Song, mas este mostrou ser duro de roer e só capitulou em 1276.

Mongóis perseguindo inimigos, Compêndio de crónicas, de Rashid al-Din Hamadani

1315: A Grande Fome

Entre meados do século X e o final do século XIII, a Europa gozou de um clima relativamente ameno, que os paleoclimatologistas designam como “Óptimo Climático Medieval” e que induziu um forte crescimento populacional e até permitiu que os vikings estabelecessem colónias na Gronelândia e na Terra Nova. Isto não significou, claro, que a vida das massas se tivesse tornado mais aprazível e desafogada, até porque o maior número de bocas fez subir o preço dos alimentos e fomes localizadas foram deixando o seu rasto de morte e miséria um pouco por todo o continente. Mas a fome que teve início em 1315 foi diferente das anteriores, pois afectou quase toda a Europa, com especial incidência nas regiões setentrionais.

O mês de Agosto no Queen Mary’s Psaltery, c.1310

Cerca de sete semanas depois da Páscoa, abateram-se sobre o norte do continente fortes chuvas, que se prolongaram pelo Verão dentro, destruindo a maior parte das colheitas (que ou não atingiram a maturação ou apodreceram no solo) e privando o gado de forragem. Com o sol permanentemente envolto em nuvens ou neblinas, caiu também a produção de sal, que era essencial para a conservação da carne. A fome começou a grassar, pois nem sequer havia o recurso, empregue em fomes localizadas anteriores, de importar cereais de regiões que não tivessem sofrido com o mau tempo, pois desta vez a perda de colheitas era generalizada. A única esperança estava em que 1316 fosse um bom ano agrícola, mas a Primavera e Verão de 1316 não foram diferentes dos de 1315 e quando o Outono chegou apurou-se que a colheita de cereais de 1316 fora ainda pior do que a de 1315 – na verdade, foi uma das piores de toda a Idade Média. O tempo invulgarmente chuvoso prolongou-se por 1317 e 1318 e foi agravado por um Inverno glacial em 1317-18, que dizimou as populações debilitadas pela fome.

Muitas terras foram sendo abandonadas, pois os agricultores, em desespero, tinham comido a parte da colheita destinada à sementeira seguinte, bem como os animais usados na lavoura – de qualquer modo, alguns campos estavam tão empapados de água que, mesmo que restassem sementes, bois e gente com energia para conduzir um arado, os trabalhos agrícolas seriam extremamente custosos. O único benefício que adveio deste dilúvio foi que a rotina de guerras, incursões e escaramuças usual na Idade Média ficou suspensa – quando, em Agosto de 1315, Luís X de França tentou pôr na ordem os seus insubmissos súbditos flamengos, o seu exército acabou atascado na lama – no pino do Verão – e teve de retirar-se, deixando para trás quase todo o equipamento e bagagem.

O tempo e as colheitas melhoraram em 1319, mas só regressaram aos padrões usuais em 1322 – para trás ficaram cerca de 7.5 milhões de mortos, com as perdas a representarem 10-15% da população no Sul de Inglaterra e 10% em França. Os anos de privações resultaram também num aumento acentuado da criminalidade e do fanatismo religioso e na erosão do sistema de valores da sociedade e na confiança na Igreja e nos governantes, que se tinham revelado impotentes para acudir ao sofrimento do povo, e prepararam o terreno para a crueldade sem quartel da Guerra dos Cem Anos.

E o que terá causado estes anos de chuvas intensas e fenómenos climáticos extremos? Há duas hipóteses principais:

1) A quantidade colossal de cinzas projectadas na atmosfera pela erupção, c.1315, do Monte Tarawera, na Nova Zelândia (também conhecida como “erupção Kaharoa”);

Monte Tarawera: Pode uma erupção vulcânica na Nova Zelândia causar chuvas torrenciais na Bretanha durante dois anos seguidos?

2) A alteração no padrão de circulação atmosférica no Atlântico Norte, que é função de um equilíbrio complexo na diferença de pressão atmosférica ao nível do mar, a que é dado o nome de “Oscilação do Atlântico Norte” (NAO, na sigla inglesa) e que condiciona a trajectória das tempestades que se deslocam para leste. Quando a diferença de pressão entre o anticiclone dos Açores e a depressão da Islândia é grande (NAO positivo), a via fica aberta para as tempestades atingirem a Europa Setentrional, quando é baixa (NAO negativo), as tempestades incidem mais sobre a Bacia Mediterrânica. A Grande Fome poderá ter resultado de anos consecutivos de NAO elevado.

1347: Peste Negra

Um relatório elaborado pela faculdade médica da Universidade de Paris, a pedido de Filipe VI de França, atribuiu a pandemia de Peste Negra a uma “grande pestilência no ar”, causada pela conjunção de três planetas em 1345. Em vez de ficarem absortos na contemplação do céu, os eminentes professores parisienses teriam feito melhor em olhar para o chão e para os seus habitantes mais rasteiros, pois tudo indica que o bacilo Yersinia pestis tenha chegado à Europa à boleia das pulgas dos ratos que desembarcaram dos navios vindos da colónia genovesa de Kaffa (também conhecida por Feodosia), na Crimeia, que estava sob cerco de forças mongóis. Os sucessores de Genghis Khan – neste caso a Horda Dourada, de Jani Beng – tinham herdado do fundador do Império Mongol práticas de combate pouco escrupulosas e terão catapultado para dentro das muralhas de Kaffa corpos de vítimas da peste (a guerra biológica não começou com a manipulação genética). Tenha sido através destes projécteis ou, de forma mais discreta e comezinha, através dos ratos que circulavam livremente entre sitiantes e sitiados, o certo é que a peste tomou conta de Kaffa, levando a que muitos mercadores genoveses abandonassem  a cidade no Verão de 1347. Os navios genoveses foram espalhando a doença pelos sítios onde aportaram – Constantinopla, Messina (na Sicília), Génova e Veneza – e no final de 1351 já alastrara a toda a Europa.

Alastramento da peste negra na Europa

Estudos genéticos indicam que, tal como acontecera com a “peste justiniana” de 541-42, esta variante do bacilo Yersinia pestis teve origem na região de Tian Shan, de onde terá irradiado para oeste, com as caravanas da Rota da Seda e os exércitos mongóis, e para leste. Embora o pico da peste tenha ocorrido em 1347-51, voltaram a ocorrer surtos localizados ao longo de século e meio (um dos quais foi o que assolou Londres em 1665-66 e que foi referido acima). É usual referir que a peste matou 30-60% da população europeia, mas não deve esquecer-se que os seus efeitos na China não foram menos devastadores, fazendo a população cair de 120 para 60 milhões de habitantes. É difícil fazer estimativas a quase sete séculos de distância, mas presume-se que terão morrido 75-200 milhões de pessoas numa população mundial rondando os 475 milhões.

O povo de Tournai enterra vítimas da peste, iluminura por Pierart dou Tielt, c.1353

Há investigadores que sugerem que a Peste Negra, ao diminuir drasticamente a população da Europa, Próximo Oriente e China e ao causar um abandono dos campos em larga escala, poderá estar na origem – ou ter intensificado – o fenómeno climático conhecido como “Pequena Idade do Gelo”, que se estendeu até ao início do século XIX (ver capítulo “Pestilência e clima” em A pandemia poderá salvar-nos do apocalipse climático?).

1492: Chegada dos europeus ao Novo Mundo

Em 1492 tiveram lugar três eventos-charneira, todos associados aos Reis Católicos, Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela: a capitulação do reino de Granada, último reduto islâmico na Europa Ocidental; a expulsão dos judeus de Espanha; a chegada dos primeiros europeus ao Novo Mundo. Os dois primeiros tiveram consequências imediatas, ao forçar dezenas de milhares de muçulmanos e judeus a deixar as suas terras, casas e negócios e a recomeçar a sua vida noutras paragens, os primeiros no Norte de África, os segundos em Portugal (temporariamente) e um pouco por toda a bacia mediterrânica e marcaram o princípio do fim de uma Espanha multiétnica e multiconfessional e a ascensão de Espanha ao grupo das nações europeias de primeiro plano (ver Regresso a Sefarade: A atribulada história dos judeus ibéricos).

Chegada dos europeus ao Novo Mundo

O terceiro evento não produziu efeitos concretos significativos em 1492, mas teve um enorme significado simbólico e gerou maiores repercussões de longo prazo do que os outros dois. A bem do rigor, convém esclarecer que o capitão genovês, ao serviço dos Reis Católicos, que desembarcou, a 12 de Outubro, na ilha que baptizou como San Salvador (Guanahani, para os seus habitantes), no arquipélago das Bahamas, não só não fazia ideia de onde estava (julgava ter chegado ao extremo oriental da Ásia, não a um continente desconhecido dos europeus), como não era o primeiro europeu a chegar ao Novo Mundo, pois tinha sido precedido, no século X, bem mais a norte, na Terra Nova, pelos vikings. Porém, enquanto este contacto não teve continuidade nem consequências, o desembarque de 1492 mudaria a história do mundo.

Mapa de Juan de la Cosa, o primeiro mapa a figurar o Novo Mundo, elaborado em 1500 em Puerto de Santa María, perto de Cádiz, por um marinheiro e cartógrafo que acompanhara Colombo nas suas duas primeiras viagens à América

As transferências culturais e biológicas entre o Novo e o Velho Mundo que se seguiram e que são hoje designadas por “intercâmbio colombiano” (termo cunhado em 1972 pelo historiador americano Alfred W. Crosby) envolveram, por exemplo, a introdução na Europa do milho, da batata e do tomate e a introdução na América de gado equino e bovino. Porém, os organismos de origem europeia que tiveram consequências mais imediatas e ponderosas para os habitantes do Novo Mundo eram de dimensões bem mais modestas do que os cavalos e as vacas: foram bactérias e vírus responsáveis por doenças como a  varíola, o sarampo, a papeira, a gripe, o tifo, ou a tosse convulsa . Nos europeus, a maior parte destas doenças produziam uma mortalidade moderada ou apenas sintomas ligeiros, mas nos povos americanos, que não possuíam qualquer imunidade contra elas, tinham efeitos devastadores – a varíola, em particular, terá causado no Novo Mundo, mais mortos do que a peste bubónica na Europa. Estima-se que nos 100-150 anos após 1492, as doenças importadas da Europa tenham causado a morte de 80-95% dos indígenas americanos (ver o capítulo “Encher um continente vazio” em Ainda há americanos na América?), facilitando a conquista pelos espanhóis dos impérios Azteca e Inca e a submissão dos povos americanos em geral (ver México vs. Espanha: Quanto séculos são precisos para apagar esta mágoa?). Os planos das potências europeias para converter as suas possessões americanas em colónias florescentes, assentes na exploração da mão-de-obra local nas plantações e minas, defrontaram-se com o despovoamento da América devido às doenças, aos massacres e ao tratamento desumano infligido aos nativos, bem como à relutância destes em sujeitar-se aos regimes de trabalho impostos pelos europeus, o que levou estes a perpetrar outra ignomínia: a importação em massa de escravos africanos para as colónias americanas.

Soldados espanhóis decepam as mãos de índios Arawak que foram incapazes de cumprir as quotas de mineração de ouro: gravura de Theodor de Roy inspirada pela Brevísima relación de la destrucción de las Indias (1552), por frei Bartolomé de las Casas

O “intercâmbio colombiano” iniciado em 1492 deu um formidável impulso à prosperidade e poderio da Europa, mas foi calamitoso para os habitantes originais da América. Esta contradição tem vindo a tornar-se mais evidente em anos mais recentes, sobretudo nos países americanos, que resultaram da fusão dos grupos étnicos e das culturas dos nativos e dos invasores/emigrantes europeus. Muitos destes países celebram o 12 de Outubro, dia do primeiro desembarque dos espanhóis na Bahamas, como Dia de Colombo, o que causa compreensíveis pruridos entre os descendentes dos povos indígenas, que vêm o dia como o início de um dos maiores genocídios da história. Em muitos países da América Latina, o 12 de Outubro recebeu a designação de Día de la Raza, o que é ofensivo para quem não pertence à “raça” que nele é exaltada e que é, claro, a hispânica; os protestos levaram a que alguns países alterassem o nome do feriado para Dia do Respeito pela Diversidade Cultural (Argentina), Dia dos Povos Indígenas e do Diálogo Intercultural (Peru), Dia da Resistência Indígena (Venezuela), ou Dia do Encontro de Culturas (Costa Rica).

Talvez não seja possível apurar objectivamente se 1492 foi um annus horribilis ou um annus mirabilis, mas, a fim de poupar discussões intermináveis e o reacender de velhos rancores, talvez fosse sensato deixar de celebrar o 12 de Outubro – a História não deveria ser pretexto para proclamações de orgulho nem para recriminações e pedidos de reparações, mas deveria antes providenciar lições para que não repitamos os erros do passado.

A visão benévola da descoberta das Américas: A Virgem Maria abençoa os descobridores ao serviço da Coroa de Espanha, em “A Virgem dos Navegantes”, por Alejo Fernández, c.1531-36

1601: Ano sem Verão

As riquezas extraídas do Novo Mundo pouco fizeram por melhorar a vida das massas europeias e as fomes continuaram a assolar o Velho Mundo com uma frequência assustadora. Se bem que algumas se confinassem a um só país ou região, há registo de fomes generalizadas em 1569-74, 1585-87 e 1590-98. Estas seriam ofuscadas pela fome de 1601-03, que resultou de um desastroso ano agrícola de 1601, consequência de um acentuado enfraquecimento da radiação solar e de tempo invulgarmente frio e chuvoso, com as temperaturas a atingir mínimos de seis séculos. Os relatos de tempo inclemente vão da Alemanha, onde o amadurecimento tardio das uvas comprometeu a produção de vinho, até ao Japão, onde o Lago Suwa congelou numa data invulgarmente precoce, mas o país que mais sofreu com a fome foi a Rússia, onde terão perecido dois milhões de pessoas – isto é, 1/3 da população do país – o que veio agravar a instabilidade da sociedade russa, que entrara em crise com a morte, em 1598, do czar Fyodor I (o segundo filho de Ivan o Terrível), que abriu lugar a uma confusa disputa pela sua sucessão. A Comunidade Polaco-Lituana aproveitou o vazio de poder e o colapso do Estado russo para invadir o território, dando origem a uma série de conflitos (a que depois se juntaria a Suécia) que só teve termo em 1613. O período da história russa entre 1598 e 1613, que ficou conhecido como Tempo das Dificuldades (Smutnoe Vremya) ter-se-á saldado, de acordo com o já citado Michael White, em 5 milhões de mortos.

“O apelo de Minin”, por Konstantin Makovsky, 1896: O mercador Kuzma Minin incita o povo de Nizhny Novgorod a pegar em armas contra os invasores polaco-lituanos e suecos

Na origem deste ano sem Verão está possivelmente a erupção, em 1600, do vulcão Huaynaputina, no Peru, que é considerada como a maior a ter tido lugar na América do Sul em tempos históricos. A cidade de Arequipa, a 80 Km de distância, ficou coberta de cinzas e “durante 30 dias não se viu nem sol, nem lua, nem estrelas”; da Europa à China, uma névoa avermelhada esbateu o brilho do sol e o gelo do Antárctico atesta a deposição de cinzas e ácido sulfúrico – estima-se que a erupção terá libertado 50-100 milhões de toneladas de dióxido de enxofre.

Ilustração documentando a queda de cinzas em Arequipa em 1600

1618: Guerra dos Trinta Anos

Aqueles que não vêem mérito na União Europeia são lestos a apontar a pulsão de cada um dos seus membros para obter vantagens à custa dos outros, e dão como exemplo as longas disputas em torno das quotas de pesca do tamboril e do biqueirão e as “guerras de fiscalidade” em que países como a Holanda aliciam as grandes empresas que operam noutros países europeus a estabelecer domicílio fiscal no seu território, onde beneficiam de regimes fiscais mais favoráveis, e países como Portugal oferecem aos reformados do resto da Europa que se registem no país como “residentes não habituais” isenção de IRS durante 10 anos. Tudo isto é verdade e é muito pouco solidário, mas os conflitos em torno de regimes fiscais e quotas de pesca são incrivelmente cordatos e benignos quando comparados com a sucessão de conflitos armados que assolou a Europa desde a Idade Média até 1945.

Para lá da incessante rotina de guerras de curta duração, a Europa já assistira, entre 1337 e 1453, à Guerra dos Cem Anos, opondo Inglaterra e França, mas a Guerra dos Trinta Anos (1618-48), embora menos longa, envolveu mais beligerantes, disputou-se num teatro mais amplo, foi combatida com mais intensidade e empregando tecnologia bélica mais destrutiva e afectou mais as populações civis, do que resultou ter causado 7-8 milhões de mortos, enquanto a Guerra dos Cem Anos “se ficou” pelos 3.5 milhões.

“Os enforcados”, estampa n.º 11 da série “As misérias da guerra” (1632-33), por Jacques Callot

Na origem da Guerra dos Trinta Anos estão as tensões político-religiosas que tinham vindo a acumular-se na Europa – e, em particular, no Sacro Império Germânico – desde a assinatura, em 1555, da Paz de Augsburg, que pusera termo a um período de conflitos ao instituir o princípio “cuius regio, eius religio” (“a cada reino a sua religião”), que conferia a cada um dos príncipes do dito império a escolher a fé do território que governavam. Esta disposição nada tinha de ecuménico ou democrático: a escolha estava limitada ao catolicismo e ao luteranismo e aos súbditos que não perfilhassem a escolha do seu príncipe restava-lhes emigrar para uma paragem conforme ao seu credo.

A centelha que incendiou este barril de pólvora foi um episódio ocorrido em Praga a 23 de Maio de 1618 e que ficou conhecido como “Segunda Defenestração de Praga”. Ao subir ao trono da Boémia, em 1611, Matthias confirmou aos boémios, que eram maioritariamente protestantes, o direito a exercer a sua religião (que lhes fora concedido em 1609 pelo imperador Rudolfo II), embora ele mesmo fosse católico e viesse a subir ao trono do Sacro Império Germânico em 1612. Em 1617, vendo o fim da vida aproximar-se e não tendo herdeiros, Matthias deliberou entregar o trono da Boémia ao seu primo Ferdinand da Estíria, um católico fervoroso e obstinado, que, embora tivesse, formalmente, reafirmado a liberdade religiosa dos boémios quando da aceitação da nomeação, começou a cercear a liberdade religiosa dos seus novos súbditos pouco depois de se ter instalado no poder. Em Maio de 1618, Ferdinand enviou quatro representantes a Praga para assumir o controlo da governação do reino, mas os boémios não estiveram pelos ajustes e atiraram-nos pela janela do 3.º piso do palácio.

A Segunda Defenestração de Praga, numa gravura de Matthäus Merian (1593-1650). O “Segunda” justifica-se por o gesto dos boémios revoltados ter tido um precedente em 1419, quando hussitas checos irados atiraram sete conselheiros municipais pelas janelas da câmara de Praga

Os enviados sobreviveram à queda – devido à intervenção da Virgem Maria, segundo fontes católicas, devido à aterragem num monte de estrume, segundo fontes protestantes – mas a afronta não foi engolida por Ferdinand (que se tornaria, pela morte de Matthias, em 1619, no novo líder do Sacro Império Germânico). Por outro lado, a defenestração serviu de exemplo a outros territórios protestantes insatisfeitos com os seus governantes católicos para também se rebelarem, pelo que o conflito foi alastrando, até se tornar num imenso vórtice em que intervieram, em diferentes fases, pelo lado católico, a Espanha (em apoio aos primos Habsburg que detinham a coroa do Sacro Império Germânico) e, pelo lado protestante, a Holanda (que lutava para se libertar do jugo espanhol, num conflito paralelo conhecido como Guerra dos Oitenta Anos), a Dinamarca, a Suécia e a França (que era católica mas temia que o triunfo do Sacro Império Germânico o pudesse tornar demasiado poderoso). Durante breves períodos, também Inglaterra, Rússia e Polónia intervieram no conflito. A guerra alastrou ao Norte de Itália e também se travou nas colónias ultramarinas e nos mares disputadas por holandeses, espanhóis e portugueses (que, até 1640, faziam parte da Monarquia Dual ibérica), mas o seu palco principal foram os territórios do Sacro Império Germânico.

Soldados saqueando quinta, durante a Guerra dos Trinta Anos, por Sebastiaen Vrancx, 1620

Parte da guerra foi travada por exércitos mercenários, que, basicamente, viviam do que conseguiam extorquir aos habitantes dos territórios onde estavam aquartelados ou por onde passavam e da pilhagem das cidades conquistadas. Como a guerra se prolongou muito para lá do previsto, os cofres das potências beligerantes foram esvaziando-se e o pagamento dos exércitos regulares começou a atrasar-se, o que levou a que a soldadesca passasse, como os mercenários, a “viver do que a terra dava”, isto é, da espoliação dos civis. E esta espoliação tanto se fazia confiscando dinheiro, alimentos, animais e outros bens aos camponeses, como desmantelando as suas habitações para obter lenha.

Esta obnóxia economia bélica foi sintetizada numa frase por um dos contendores, o rei sueco Gustavo Adolfo: “A guerra pagará a guerra”. Gustavo Adolfo tinha, todavia, compaixão pelos infelizes que viviam nos territórios rapinados pelas tropas e procurou assegurar que os seus soldados eram pagos atempadamente – até que pereceu na Batalha de Lützen, em 1632.

Morte de Gustavo Adolfo da Suécia na Batalha de Lützen, por Carl Wahlbom, 1855

Aos constantes confiscos, saques, incêndios, violações e chacinas perpetrados pelos vários exércitos em combate e à fome, somou-se outro infortúnio: a confluência no Sacro Império Germânico de soldados vindos de todos os cantos da Europa, e as movimentações de refugiados, debilitados pela fome e sem condições para manter uma higiene apropriada, levaram a uma proliferação descontrolada de doenças. Estima-se que a violência directa tenha representado apenas 3% das mortes de civis durante a guerra, cabendo as maiores fatias à peste bubónica, entretanto regressada à ribalta (64%), à fome (12%), à disenteria (5%) e ao tifo (4%).

Perdas populacionais no Sacro Império Germânico entre o início e o final da Guerra dos Trinta Anos

1618 surge nesta lista por ser o ano da eclosão do conflito, mas esteve longe de ser o pior dos 30 anos da guerra. Foi na década de 1630 que as condições mais se degradaram, não só devido à desarticulação da sociedade e das infra-estruturas produtivas por anos de combates, saques e desmandos, como por os exércitos terem começado a adoptar uma política de terra queimada, esperando assim privar os exércitos adversários de meios para subsistirem. Por outro lado, à medida que a destruição foi alastrando, muitos camponeses que tinham visto as suas quintas e colheitas saqueadas ou reduzidas a cinzas acabavam por ver no banditismo a única forma de subsistir. Com a guerra e o banditismo a tornar inviável a circulação de bens e pessoas, o comércio estiolou e, mesmo que numa região sobrassem cereais, ninguém se arriscava a tentar vendê-los nas regiões onde escasseassem. Os poucos porcos que conseguiram escapar-se ao confisco e ao abate regressaram ao estado selvagem, multiplicaram-se e depredavam os campos agrícolas, enquanto nas cidades, em contrapartida, desapareceram os cães e os gatos; nalguns locais, nem os cemitérios ficaram a salvo das hordas de esfomeados.

A Guerra dos Trinta Anos é usualmente vista como a última grande guerra religiosa na Europa, mas a verdade é que se o seu início teve motivações religiosas, depressa se transformou num conflito dinástico e geopolítico, como atesta o facto de a católica França ter apoiado os protestantes. Mas a maior parte do sofrimento e morte gerados pela guerra acabaram por nada ter a ver com a luta por posições estratégicas ou com as ambições das potências europeias: os 600.000 soldados que pereceram no conflito empalidecem face aos cerca de 7 milhões de “vítimas colaterais” civis.

Soldados pilhando refugiados em viagem, durante a Guerra dos Trinta Anos, por Sebastiaen Vrancx, 1647

1783: Erupção do Laki

Em Junho de 1783, a fissura vulcânica de Laki, na Islândia, iniciou uma erupção que se arrastaria por oito meses e libertaria 14 Km3 de lava e nuvens tóxicas de ácido fluorídrico e dióxido de enxofre (120 milhões de toneladas deste último). A agricultura e a pecuária islandesas foram arrasadas e a fome subsequente matou ¼ da população da ilha em apenas um ano; os ventos sopraram as nuvens de gases tóxicos para a Europa, onde causaram chuvas ácidas e uma acréscimo de mortalidade ligado a doenças respiratórias estimado em 5%. Ao Verão invulgarmente quente de 1783 sucedeu um dos Invernos mais frios e tempestuosos do século; o tempo imprevisível e os fenómenos climáticos extremos (induzidos, possivelmente, pela erupção do Laki) prosseguiram até 1788, levando a colheitas fracas e ao alastramento da fome, sobretudo em França, o que alguns historiadores apontam como tendo contribuído para o clima de descontentamento popular que desembocou na Revolução Francesa.

A erupção do Laki perturbou o clima em todo o Hemisfério Norte, com efeitos a estenderem-se até ao Japão, onde uma situação de fome na região de Tōhoku (a Grande Fome de Tenmei), que começara em 1781, terá sido agravada pelo mau tempo persistente e consequentes fracassos das colheitas, e até ao Egipto, onde as cheias do Nilo ficaram abaixo dos níveis habituais e 1/6 da população morreu de fome em 1784.

A fissura de Laki, Islândia

Entretanto, a Índia era afectada por secas persistentes desde 1780, que acabaram por conduzir a dois surtos de fome, no sul (em 1782-83) e no norte (em 1783-84) do subcontinente, que causaram um total de cerca de 11 milhões de mortos. A erupção do Laki foi alheia a este fenómeno climático, que, supõe-se, terá sido consequência do El Niño (uma oscilação nas temperaturas da água do mar e no padrão da pressão atmosférica na zona oriental do Oceano Pacífico que tem implicações no clima global).

1816: Mais um ano sem Verão

Enquanto outros eventos de alteração climática ficam no campo das hipóteses, a causa do tempo invulgarmente frio em 1816 está identificada: foi a erupção, em Abril de 1815, do Monte Tambora, na ilha de Sumbawa, na Indonésia, uma das mais violentas registada em tempos históricos. A explosão fez desaparecer o topo do vulcão, projectando pelos ares 100 km3 de materiais, e o estrondo foi ouvido a 2600 Km de distância.

Além das 10.000 mortes em Sumbawa que resultaram directamente da explosão e das cerca de 88.000 mortes que tiveram lugar nos meses seguintes nas ilhas vizinhas em resultado da fome decorrente da destruição das colheitas pelas cinzas, os efeitos da erupção estenderam-se a todo o Hemisfério Norte e duraram muitos meses: as cinzas velaram a luz solar, originando poentes amarelados e avermelhados e obrigando a que, nalguns dias, dentro de casa, fosse preciso acender candeias a meio do dia. A queda de 0.5 ºC na temperatura global e o excesso de chuva e neve fizeram com que muitas colheitas se perdessem ou fossem prejudicadas, levando à ocorrência de situações de fome um pouco por todo o mundo: na Índia, a alteração no regime de monções causou colheitas abaixo da média em três anos consecutivos, na China as colheitas falharam e ocorreram cheias catastróficas no vale do Yangtze e estima-se que a fome na Europa tenha causado 65.000 mortos.

a persistência de cinzas na atmosfera resultantes da erupção no Monte Tambora poderá ter influenciado os crepúsculos sombrios pintados pelos artistas contemporâneos, como é o caso deste “Dois homens junto ao mar” (1817), por Caspar David Friedrich

1850: Rebelião Taiping

Algumas calamidades têm origem em fenómenos naturais de esmagadora magnitude, como mega-erupções vulcânicas ou alterações no padrão de circulação atmosférica. Um dos conflitos mais destruidores da história da China teve origem num evento aparentemente insignificante e inconsequente: em 1836, um rapaz de 22 anos, de origens modestas, chamado Hong Xiuquan, assistiu, na cidade de Guangzhou (Cantão), a uma pregação de um missionário protestante americano, que lhe entregou alguns panfletos de propaganda religiosa.

Apesar de provir de uma família de camponeses, Hong aspirava a ingressar no funcionalismo público e viajou por mais de uma vez até Guangzhou para se submeter, sem êxito, aos exigentes exames de acesso – foi na segunda tentativa que se cruzou com o dito missionário. Nem a pregação nem os panfletos parecem ter tido efeito sobre Hong, mas quando, no ano seguinte, se apresentou a exame pela terceira vez e voltou a ser rejeitado, sofreu um esgotamento nervoso e teve algumas visões enigmáticas de um mundo celestial. Durante algum tempo, Hong pôs de parte as suas aspirações a funcionário imperial, mas em 1843, voltou a fazer os exames e falhou mais uma vez; só então se deu ao trabalho de ler os panfletos que recebera em 1826 e, subitamente, as visões que tivera em 1827 fizeram todo o sentido: compreendeu que era o irmão mais novo de Jesus Cristo e que estava investido de uma missão divina.

O imperador Xianfeng, o oitavo da dinastia Qing, reinou entre 1850 e 1861

Hong aderiu a uma versão muito sui generis do cristianismo, destruiu estátuas e textos confucionistas e budistas, empenhou-se em longos périplos de pregação e redigiu uma versão muito pessoal da Bíblia, que designou como a “Versão Taiping Autorizada da Bíblia” e fez saber que o “cristianismo Taiping” era, afinal, a religião original da China, antes de ter sido suplantada pelo confucionismo e pelo budismo. A adesão das massas a crenças nada tem a ver com a plausibilidade e a coerência destas e em 1850, a Sociedade dos Adoradores de Deus – assim se designava formalmente a seita liderada por Hong – já tinha 20.000 seguidores e as autoridades Qing entenderam que tinha chegado a altura de reprimi-los. O resultado não foi o esperado: a milícia da Sociedade dos Adoradores de Deus derrotou as tropas Qing, o movimento ganhou ímpeto e, em Janeiro de 1851, Hong autoproclamou-se como “Rei Celeste do Reino Celeste Taiping”.

Os taiping tinham vários argumentos susceptíveis de seduzir as massas chinesas: pretendiam derribar a dinastia Qing, que, por ser de origem manchu, era vista como usurpadora e opressora por muitos chineses; e defendiam uma sociedade igualitária e comunitária e a reforma agrária, o que era apetecível para quem pouco ou nada possuía. Isto permitiu-lhes angariar novos adeptos e constituir o Sempre-Vitorioso Exército, que enfrentou os exércitos Qing numa sucessão de batalhas, com resultados variáveis em termos militares, mas saldando-se sempre em numerosos mortos para ambos os lados e na destruição de colheitas, aldeias e cidades.

Os taiping sitiados na cidade de Fucheng rompem o cerco montado pelo exército manchu, Maio de 1854

Para o relativo sucesso dos taiping contribuiu o facto de os Qing terem, ao mesmo tempo de se haver com outros movimentos revoltosos, nomeadamente a Rebelião Nian, iniciada em 1853, e a Rebelião Panthay, iniciada em 1855 e protagonizado pelos povos muçulmanos (Hui) de Yunnan, no sudoeste da China.

A Grã-Bretanha e a França, que há muito olhavam com cobiça para o declinante Império do Meio e tinham vindo a exigir aos chineses concessões territoriais e acordos comerciais favoráveis, tinham-se envolvido, em 1856, num conflito com os Qing, que ficou conhecido como Segunda Guerra do Ópio; as potências europeias começaram por olhar os taiping como potenciais aliados no derrube dos sobranceiros manchus e até como fantoches úteis que permitiria aos europeus governar de facto a China, até porque tinham a ideia (equivocada) de que os taiping eram cristãos respeitáveis. Porém, quando se aperceberam da heterodoxia das suas crenças e dos delírios messiânicos do Rei Celeste, arrepiaram caminho: em 1860, fizeram paz com os Qing e passaram a apoiar a luta destes contra os taiping.

As tropas manchus reconquistam a cidade de Anqing aos taiping, em 1861

Com armas e equipamento mais modernos, fornecidos pelas potências ocidentais, com o auxílio de unidades de mercenários estrangeiros e de unidades chinesas treinadas e comandadas por oficiais ocidentais e o apoio de forças navais britânicas e francesas, os Qing infligiram uma série de derrotas ao Sempre-Vitorioso Exército e em 1864 conseguiram cercar a capital taiping, Nanquim. Não tardou que a comida escasseasse, mas o Rei Celeste logo providenciou uma solução: os sitiados seriam alimentados com maná e como Deus não o fez tombar do céu, o Rei Celeste explicou como poderia ser obtido da cocção de ervas – depois de ingerir uma das mistelas por si preconizadas, o Rei Celeste caiu doente, falecendo a 1 de Junho de 1864. Foi sucedido pelo seu filho de 14 anos, Hong Tianguifu, que resistiu obstinadamente ao cerco durante mais dois meses – a 30 de Julho, os Qing tomaram a cidade de assalto e massacraram sem piedade os 100.000 taiping remanescentes, o que foi facilitado por muitos taiping terem preferido suicidar-se em massa a ser capturados.

As operações de limpeza dos taiping – que ainda tinham mais de 250.000 combatentes noutras regiões da China, prosseguiram até ao início de 1866. Quando terminaram, a China tinha estado a ferro e fogo durante quase 16 anos, período em que terão morrido 20-30 milhões de pessoas, umas em combates e massacres, outras vítimas da fome e de doenças.

1914: I Guerra Mundial

A Europa, que, se exceptuarmos a Guerra Franco-Prussiana de 1870, não conhecera conflitos internos de grande escala desde 1820, tinha vindo a acumular tensões que se libertaram subitamente no Verão de 1914, empurradas por uma desvairada corrida aos armamentos e por um clima de nacionalismo exacerbado, atiçado pela imprensa tablóide dos diversos países.

Manifestação a favor da guerra, Bologna, 1914

A guerra durou quatro anos e três meses, o que não é muito longo pelos padrões das guerras de antanho, mas envolveu massas de soldados nunca vistas, foi combatida com intensidade inaudita (graças às inovações tecnológicas introduzidas na viragem dos séculos XIX/XX) e foi a primeira a ser verdadeiramente mundial, envolvendo beligerantes de todos os continentes e disputando-se nos mais diversos teatros, do Mar do Norte a Moçambique, dos desertos do Médio Oriente aos Alpes, no solo, no mar e, pela primeira vez, no ar.

Para se ter uma ideia da ferocidade (e da obstinação irracional) com que a I Guerra Mundial foi disputada, a aldeola belga de Passchendaele (também grafada Passendale) serve de exemplo: era um povoado rural insignificante, não era um importante nó de comunicações, não albergava nenhuma indústria vital, não tinha significado simbólico para nenhum dos beligerantes. Todavia, entre 31 de Julho e 10 de Novembro de 1917, 50 divisões aliadas (britânicas, canadianas e francesas) e 77 a 83 divisões alemãs disputaram a sua posse com tal empenho que sofreram centenas de milhares de baixas – as estimativas são muito variáveis, mas 250.000 para cada lado é um valor plausível e corresponde aproximadamente a um morto por polegada (2.54 cm) de terreno. Não foi o término do banho de sangue em Passchendaele, pois os alemães, que tinham sido forçados a retirar, reocupariam a aldeia na Batalha de La Lys, em Abril de 1918, novamente com pesadas baixas para ambos os lados.

Vista aérea da aldeia de Passchendaele, antes (em cima) e depois da batalha de 1917 (em baixo)

Em O horror da guerra: 1914-1918 (The pity of war: 1914-1918), Niall Ferguson apurou que “enquanto às potências da Entente [França, Grã-Bretanha, Rússia, etc.] matar um soldado a combater pelas Potências Centrais [Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia, etc.] custou 36.485 dólares, a estas custou apenas 11.344,77 dólares matar um soldado a combater pela Entente”. Ferguson fez também os cálculos inversos, isto é, o prejuízo sofrido por cada país com a morte de um soldado seu: 1444 dólares por alemão, 1354 dólares por britânico ou americano e 700 dólares por russo, pelo que chegou à trágica conclusão de que “não havia soldado que valesse tanto quanto custava matá-lo” (ver A Grande Guerra foi, afinal, um Grande Piquenique?).

A contabilização das vítimas destes quatro anos e três meses aponta para cerca de 10 milhões de soldados mortos, 20 milhões de soldados feridos e cerca de 8 milhões de mortos civis.

Cadáveres de soldados alemães, Batalha do Somme, 1916

1918: Gripe pneumónica

O ano de 1918 pode ser visto como ambivalente do ponto de vista da dicotomia mirabilis/horribilis: por um lado foi o ano em que terminou a carnificina da I Guerra Mundial, mas por outro foi o ano em que se declarou a pandemia de gripe pneumónica.

Ponderando o armistício de 1918 com a vantagem da visão retrospectiva, sabemos que a paz alcançada foi insatisfatória: algumas tensões geopolíticas ficaram por resolver e foram criadas novas razões de agravo e algumas condições impostas pelos vencedores criaram terreno propício à germinação de rancores pela parte dos derrotados – e foi assim que, 20 anos após o término da “guerra para acabar com todas as guerras”, a Europa se viu outra vez a ferro e fogo. Por outro lado, é preciso considerar que a gripe pneumónica faria mais vítimas em cerca de dois anos – Fevereiro de 1918 a Abril de 1920 – do que a guerra em cerca de quatro anos: as estimativas oscilam entre 17 e 100 milhões de mortos, com a maioria das estimativas a cair entre os 20 e os 40 milhões.

A gripe pneumónica tirou partido de o mundo do início do século XX estar servido por uma rede de transportes bem mais eficaz e rápida do que as dos séculos precedentes e de a guerra mundial em curso obrigar à constante movimentação de centenas de milhares de soldados a longas distâncias e ao seu aquartelamento em condições de máxima proximidade e mínimas condições de higiene – condições ideais para a propagação de uma nova doença infecto-contagiosa.

Em Setembro de 1918, a Cruz Vermelha recomendava o uso de máscaras para combater o alastramento da gripe pneumónica; em 2020, a OMS e algumas autoridades nacionais de saúde levaram alguns meses até emitir recomendação similar

Vale a pena lembrar que 1918 foi também o ano em que ganhou intensidade e abrangência geográfica a Guerra Civil Russa, que se iniciara com a Revolução Bolchevique de Outubro de 1917 e que opôs o Exército Vermelho a uma confederação desconexa de facções com diversos credos políticos e motivações, que também se guerreavam entre si. Para aumentar a confusão, o conflito envolveu também regiões russas com aspirações independentistas, senhores da guerra sem outro objectivo para lá da glória e do enriquecimento pessoal e uma constelação de uma trintena de potências estrangeiras (que tendiam a apoiar quem quer que lutasse contra os bolcheviques). Este emaranhado de conflitos arrastou-se até 1923 e destruiu a estrutura produtiva e as infra-estruturas do país, contribuindo decisivamente para agravar os efeitos da seca de 1921, que levou a uma fome generalizada em 1921-22, que terá causado cinco milhões de mortos. Somando a estes os 4 milhões de mortos da guerra propriamente dita, obtém-se um balanço de 9 milhões de mortos.

Vítimas da fome, Samara, URSS, 1921

1933: O NSDAP chega ao poder

Em 1933 não ocorreu nenhuma catástrofe tonitruante: não se registou uma erupção vulcânica maciça ou um sismo de grande intensidade e os conflitos entre nações limitaram-se a escaramuças entre Colômbia e Peru, que disputavam uma remota parcela de impenetrável floresta amazónica, e entre Bolívia e Paraguai, que disputavam uma região semi-árida e despovoada conhecida como Gran Chaco. A economia e a sociedade estavam a braços com a Grande Depressão, mas nos EUA, o presidente Franklin Roosevelt, que tomara posse a 4 de Março de 1933, implementara um vasto e vigoroso conjunto de medidas de revitalização da economia e de apoio aos mais desfavorecidos, que conseguiu pôr a economia americana novamente no caminho ascensional.

O evento que leva a classificar 1933 como annus horribilis parece, visto de longe, apenas um episódio corriqueiro de jogo político num regime parlamentar em funcionamento regular: um político conservador desejava, a qualquer custo, ser chefe de Governo, mas o Presidente da República, também ele conservador, rejeitou a sua pretensão, alegando, com razão, que o dito político não dispunha do apoio do numero necessário de deputados no parlamento. O político conservador propôs então ao Presidente que desse posse a um governo de coligação formado por um partido conservador e por um partido populista de extrema-direita. Nesta proposta de governo, a grande maioria das pastas e o cargo de vice-chanceler cabiam aos conservadores, ficando os populistas com apenas duas pastas, mas com o cargo de chanceler. A ideia desagradou ao presidente, que não tinha confiança no líder populista de extrema-direita – uma criatura estridente, quezilenta, inflamada por convicções messiânicas e que se tornara conhecido pelos seus discursos de ódio contra minorias étnicas, alicerçados em teorias conspirativas – e até jurara que, enquanto fosse presidente, o histriónico político nunca seria chanceler. Porém, o político conservador argumentou que o seu parceiro de governo era, sob a sua postura agressiva e bombástica, um pobre tolo, e que seria capaz de manipulá-lo e de domesticar o seu radicalismo, pelo que o presidente acabou por aceder, relutantemente, a que o governo de coligação tomasse posse, o que ocorreu a 30 de Janeiro.

O gabinete do chanceler Adolf Hitler, no dia da tomada de posse, a 30 de Janeiro de 1930. Sentados, da esquerda para a direita: Hermann Göring (ministro sem pasta e Ministro do Interior da Prússia), Hitler (chanceler) e Franz von Papen (vice-chanceler); de pé, Schwerin von Krosigk (Ministro das Finanças), Wilhelm Frick (Ministro do Interior), Werner von Blomberg (Ministro da Guerra) e Alfred Hugenberg (Ministro da Economia e Agricultura)

Um detalhe, que se revelaria muito relevante, na constituição do governo de coligação entre o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, na sigla alemã) e os conservadores do Partido Popular Nacional Alemão (DNVP, na sigla alemã) é que o NSDAP fizera questão de ficar com as duas pastas relativas à Administração Interna. O cargo de Ministro do Interior da Prússia, confiado a Göring, entregava a este o controlo das principais forças policiais do país e, embora, teoricamente, o Ministro do Interior da Prússia estivesse subordinado ao Reichskomissar para a Prússia, cargo que Franz von Papen acumulava com o de vice-chanceler, na prática Göring agiu sem prestar contas a este. Não satisfeito com o controlo das forças policiais regulares, Göring criou a categoria de “polícia auxiliar” (Hilfspolizei), que foi integralmente preenchida com 50.000 “camisas castanhas” (pertencentes às SA, a milícia nazi).

Alemanha, 1933: Um polícia (à esquerda) acompanhado por um elemento das SA

Quando, a 27 de Fevereiro, um incêndio consumiu o edifício do Reichstag, Hitler atribuiu o sinistro a uma conspiração comunista, fez aprovar um decreto que suspendeu as liberdades civis e iniciou a perseguição à oposição – e o controlo nazi das forças policiais foi crucial para a implementação destas acções.

A tomada do poder pelos nazis foi consolidada com a dissolução do parlamento e a convocação de novas eleições, a 5 de Março, que (com a ajuda da violência e intimidação exercidas pelas milícias nazis durante a campanha eleitoral) se traduziram no crescimento do NSDAP e na estagnação ou queda de todos os outros partidos. O domínio do NSDAP ficou ainda mais confortável com a expulsão do Reichstag de todos os 81 deputados eleitos pelo seu opositor mais tenaz, o Partido Comunista Alemão (KPD), e com a prisão de 24 dos 130 deputados eleitos pelo Partido Social-Democrata (SPD). A 24 de Março, com o apoio do NSDAP, do DNVP, dos católicos do Zentrum e dos restantes pequenos partidos conservadores, num total de 444 votos favoráveis, e tendo como votos contrários apenas os 94 deputados remanescentes do SPD, o governo de Hitler viu aprovada a Lei de Concessão de Plenos Poderes.

A 23 de Março, no Reichstag (temporariamente a funcionar na Krol Opera), Hitler faz um discurso em prol da Lei de Concessão de Plenos Poderes, que seria aprovada no dia seguinte

A nova lei permitiu a Hitler governar sem necessidade de ouvir o Reichstag e sem estar limitado pela constituição, deixando-o, menos de dois meses depois de ter tomado posse como chanceler, com as mãos livres para assumir o controlo absoluto da máquina do Estado e eliminar qualquer forma de oposição – na verdade, dois dias antes da aprovação da Lei de Concessão de Plenos Poderes, já entrara em funcionamento, em Dachau, o primeiro campo de concentração nazi, concebido originalmente para albergar prisioneiros políticos, mas que acabaria por receber todo o tipo de pessoas julgadas indesejáveis pelos nazis.

Franz von Papen, o político astuto que julgara ser capaz de manobrar Hitler e amansar as suas inclinações radicais, viu, a 10 de Abril, os nazis extinguirem o seu cargo de Reichskomissar para a Prússia, que passou para as mãos de Göring, com o novo título de Ministerpräsident. O papel de Papen como vice-chanceler foi ficando cada vez mais esvaziado, o que tentou contrariar, em Maio de 1934, pressionando o agonizante (e também cada vez mais irrelevante) presidente Paul von Hindenburg a redigir e assinar um testamento político que repunha o poder de Papen e dos conservadores – e que não produziu efeito algum. Quando da Noite das Facas Longas (um “ajuste de contas” dentro do NSDAP, visando, em particular, a liderança das SA), entre 30 de Junho e 2 de Julho de 1934, o gabinete de Papen foi devassado e pilhado pelas SS, três colaboradores seus foram executados sumariamente e o próprio vice-chanceler foi colocado sob prisão domiciliária. Quando foi libertado, alguns dias depois, e se dirigiu à chancelaria, descobriu que já não tinha lugar nas reuniões do gabinete e apresentou a demissão. Hitler aceitou-a e o cargo de vice-chanceler foi extinto.

O presidente Hindenburg faleceu a 2 de Agosto de 1934 e, sem perder tempo, Hitler promoveu um referendo, a 19 de Agosto, perguntado aos alemães se desejavam que os cargos de presidente e de chanceler fossem fundidos num só – 90% dos votantes responderam que sim. Com a ajuda de “idiotas úteis” como Papen, Hitler era agora o senhor absoluto da Alemanha.

Franz von Papen

Franz von Papen em frente a uma assembleia de voto, em Berlim, no referendo de 19 de Agosto de 1934

Com o mundo ainda a braços com a Grande Depressão e com os países europeus preocupados com a ascensão dos nazis na Alemanha, poucos terão dado pelo que, em 1933, se passava na Ucrânia. Stalin, o senhor absoluto da URSS, estava determinado a reformar de alto a baixo a estrutura da economia soviética e, no início dos anos 30 desinvestiu da produção agrícola em favor da indústria pesada e promoveu a colectivização forçada da agricultura, que, naturalmente, suscitou o antagonismo dos proprietários rurais. A deportação de 5 milhões de kulaks, isto é “camponeses ricos”, aniquilou, de forma brutal, parte da resistência, mas nalgumas regiões, como a Ucrânia e o Cazaquistão, os pequenos proprietários continuaram a opor-se à colectivização, pelo que Stalin decidiu submetê-los pela fome: embora o ano agrícola tivesse sido pouco pujante, em resultado da falta de chuva, os camponeses ucranianos foram confrontados com a imposição de quotas de produção irrealistas, que seria impossível cumprir mesmo no mais generoso dos anos, e com a requisição pelo Estado de grandes quantidades de cereais. O resultado foi que, embora 1932-33 tenha sido um período de fome em toda a URSS, esta manifestou-se com muito maior intensidade na Ucrânia, onde terá causado entre 3.5 e 7.5 milhões de vítimas.

Vítimas da fome numa rua de Kharkov, na Ucrânia, 1933

As fomes generalizadas foram recorrentes na história russa (e na do resto do mundo), mas a fome de 1932-33 na Ucrânia foi diferente: foi uma fome “artificial”, criada deliberadamente pelo regime soviético para eliminar a resistência à colectivização da agricultura e para suprimir as aspirações independentistas que a Ucrânia tinha alimentado desde a Revolução Bolchevique.

Mesmo sem conflitos bélicos ou catástrofes naturais grande envergadura, o ano de 1933 foi, indubitavelmente, um dos mais sinistros da história.

1939: II Guerra Mundial

Há historiadores, com indisfarçado apreço pela extrema-direita, que defendem que, até 1 de Setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polónia, o regime nazi foi “um regime como outro qualquer”. Não é verdade: o regime nazi entre 1933 e 1939 não poderia, em caso algum, confundir-se com uma democracia e tinha diferenças assinaláveis em relação aos outros regimes autoritários de direita que emergiram na Europa no período entre guerras (Espanha, Portugal, Grécia, Jugoslávia, Polónia, Hungria, Estados Bálticos, Roménia, Bulgária, para lá, claro, de Itália, que fora pioneira).

Desde que ascendera ao poder, Hitler retirara a Alemanha da Sociedade das Nações, galvanizara os alemães com as suas arengas coléricas sobre a necessidade de vingar as afrontas sofridas após a derrota na I Guerra Mundial, conquistar “espaço vital” (Lebensraum) e arranjar uma solução para o “problema judaico”; inculcara nas massas (e em particular nos jovens) um espírito militarista, ultra-nacionalista, racista e fanático; pusera em prática um amplo programa de rearmamento, contornando ou atropelando as limitações estabelecidas pelo Tratado de Versailles; redireccionara a economia alemã de forma ficar ao serviço do esforço de guerra; reocupara zonas desmilitarizadas; e multiplicara as exigências territoriais, as pressões e as ameaças sobre os países vizinhos (e, como bully que era, garantia sempre que a exigência em questão era a derradeira que faria).

Hitler passa revista às tropas alemãs no Castelo de Praga, a 15 de Março de 1939, após o desmembramento e ocupação da Checoslováquia. Hitler tinha a esperança de que, como acontecera com a Checoslováquia, a Grã-Bretanha e a França não interviessem se a Alemanha invadisse a Polónia

Somando esta conjugação de actuações com o tenebroso programa explanado em Mein Kampf, seria fácil deduzir que, independentemente dos esforços de apaziguamento/contenção empreendidos pela Grã-Bretanha e pela França, a Alemanha desencadearia uma guerra de conquista, mais cedo ou mais tarde.

O que era menos fácil de prever, antes de Setembro de 1939, é que essa guerra seria conduzida pelos nazis com uma crueldade, desumanidade e ausência de escrúpulos inauditas, o que, aliado a um extraordinário progresso na tecnologia bélica, explica que, ao longo de seis anos, a II Guerra Mundial tenha causado cerca de 60 milhões de mortos (20 milhões de soldados e 40 milhões de civis).

Todas as guerras correm o risco de incluir, por força do stress, da erosão dos padrões éticos e de uma escalada de represálias entre beligerantes, vários episódios bárbaros, mas a guerra que os alemães iniciaram em 1939 distingue-se por a barbárie ter sido longamente premeditada, meticulosamente planeada e sistematicamente exercida. Veja-se o caso da invasão da Polónia: foi a primeira acção da guerra e os alemães (e os soviéticos) esmagaram os polacos com facilidade; e, todavia, ainda os combates não tinham cessado e já estava em curso a Operação Tannenberg, um programa de extermínio sistemático das elites polacas (militares, políticos, intelectuais, professores), que estavam identificadas numa lista de 60.000 nomes que a Gestapo começara a compilar em 1937. A Operação Tannenberg não foi uma represália ou uma reacção extemporânea, era consequência natural da mundividência racista, desapiedada e hegemónica dos nazis.

Operação Tannenberg: Fuzilamento de civis polacos por um Einsatzgruppe, em Kómik, Polónia, 20 de Outubro de 1939

1958: Grande Salto em Frente

Se alguma coisa distingue os regimes ditatoriais de extrema-esquerda dos de extrema-direita, não é certamente o respeito pela vida e dignidade humanas, que ambos desprezam e consideram uma ficção criada por intelectuais burgueses de coração mole: é que as ditaduras de extrema-direita tendem a cultivar um expansionismo agressivo e a trucidar os povos vizinhos, enquanto as ditaduras de extrema-esquerda tendem a causar mais mortos entre os seus.

Dos muitos desmandos e erros grosseiros cometidos por Mao Tse-Tung, nenhum foi tão catastrófico como o Grande Salto em Frente, que pretendia converter uma China agrária em que a maioria da população vivia como na Idade Média, numa nação industrial de primeira linha, apenas pela força de decretos.

“A comuna é como um gigantesco dragão e a sua produção é espantosa”: cartaz de propaganda ao Grande Salto em Frente, 1959

A colectivização forçada da agricultura, a tentativa de fazer nascer uma indústria siderúrgica em cada comunidade rural, a construção de sistemas de irrigação ineptamente planeados e ainda mais ineptamente construídos, a campanha de extermínio de pardais (que visava proteger as colheitas, mas acabou por potenciar as pragas de insectos, produzindo o resultado inverso) e uma série de medidas igualmente arbitrárias e/ou obtusas, resultaram numa forte quebra da produção de cereais, que passou de 200 milhões de toneladas em 1958 para 144 milhões em 1960. Como se, por si só, este decréscimo não fosse terrível para um país que há séculos vivia no limiar da subsistência, em 1959, Mao, recusando-se a aceitar o fracasso dos seus planos e num gesto de bravata para com o mundo, fez questão de exportar 5 milhões de toneladas de cereais.

Trabalhos agrícolas nocturnos, numa comuna em Xinyang, província de Henan, 1959: Mao esperava tornar a China numa potência económica, à força de decretos e da galvanização das massas

O resultado deste insensato programa que se estendeu até 1962 foram cerca de 15 a 55 milhões de mortes por subnutrição, o que faz dele o mais mortífero episódio de fome da história da humanidade. O que o diferencia de outros episódios de fome de grande magnitude é que esses tiveram origem, essencialmente, em causas naturais (tempo invulgarmente seco, chuvoso ou frio), eventualmente agravadas pela inoperância ou indiferença dos governantes, enquanto a Grande Fome Chinesa de 1959-61 foi obra da estupidez, malevolência e incompetência do governo chinês e do seu Grande Timoneiro.

2004: Terramoto de Sumatra-Andaman

Kofi Annan, secretário-geral da ONU, num discurso a 21 de Dezembro, declarou que “não há dúvida de que este foi um ano particularmente difícil e estou aliviado por este annus horribilis estar a chegar ao fim”. A afirmação é enigmática, pois 2004 não tinha registado nenhum conflito ou desastre natural de grandes proporções e tem sido interpretada como uma alusão não ao estado do Mundo (como se esperaria de um secretário-geral da ONU), mas a acusações de corrupção ao seu filho, Kojo, que estaria envolvido no desvio de fundos do programa da ONU Petróleo por Alimentos. Porém, é pouco prudente fazer balanços do ano antes de este ter chegado ao seu termo e, cinco dias depois, 2004 revelar-se-ia efectivamente horribilis, quando um sismo submarino com epicentro a norte de Sumatra, seguido de tsunami, causou 228.000 mortos e 1.7 milhões de desalojados nas costas do Índico, com os efeitos a fazerem sentir-se tão longe quanto Madagáscar e o Yemen.

O tsunami chega a Phuket, na Tailândia, 26 de Dezembro de 2004

Nem todos os eventos funestos são notados nas suas manifestações iniciais, pois só produzem consequências muitos anos depois – é disso exemplo a criação, a 4 de Fevereiro de 2004, por dois estudantes da Universidade de Harvard, de um website destinado a exibir os perfis dos estudantes do Harvard College que se registassem. A versão anterior do website, surgida em 2003 e visando o apuramento dos elementos mais sexy do corpo discente, tinha sido encerrada pela administração da universidade, por envolver quebras de segurança e violação de privacidade, mas o novo website, por só apresentar perfis de quem se inscrevia, não teve esses problemas e cresceu rapidamente em popularidade, de forma que, em Março, já se estendera às universidades de Columbia, Stanford e Yale. Em Setembro de 2006, saltou para fora do mundo universitário e tornou-se acessível a qualquer pessoa com mais de 13 anos e a empresas e em 2008 alcançou um milhão de utilizadores – em Julho de 2020 registava 2700 milhões de utilizadores activos.

A extraordinária popularidade deste formato de interacção “social” mediada pela Internet, levou ao aparecimento de “redes” análogas e, hoje, o Facebook (é dele que falamos) tem a concorrência do WhatsApp (2000 milhões de utilizadores), WeChat (1200 milhões), Instagram (1160 milhões), TikTok (690 milhões), Weibo (520 milhões), Snapchat (430 milhões), Pinterest (420 milhões) ou Twitter (250 milhões).

Ao promover o egocentrismo, o narcisismo, a vaidade, o consumismo, a superficialidade, a reacção impulsiva e indignada, a “mentalidade de rebanho”, o tribalismo e a proliferação de teorias conspirativas e de turbas de linchamento digital, e ao constituir-se como fonte privilegiada para obtenção de dados pessoais que são postos ao serviço da manipulação política e comercial, as redes (ditas) sociais são hoje uma das mais poderosas forças dissolventes da Humanidade – e tudo começou em 2004 com um inócuo website destinado a facilitar o “engate” entre estudantes universitários.

2020: Covid-19

O primeiro paciente infectado com um doença causada por um tipo de coronavírus novo para a ciência foi identificado a 1 de Dezembro de 2019, pelo que, quando, a 11 de Fevereiro de 2020, a OMS conferiu nome oficial à doença, associou-a a 2019 – todavia, a pandemia só se manifestou em 2020 e é a este ano que ficará associada. 2020 também teve incêndios florestais de gigantescas proporções na Austrália e na Costa Oeste dos EUA e uma escaramuça entre a Arménia e o Azerbaijão em torno do enclave de Nagorno-Karabakh; as guerras civis na Síria, Líbia e Yemen prosseguiram em lume brando e começou uma nova na Etiópia; a temporada de furacões no Atlântico registou um número recorde de 31 tempestades tropicais (13 dos quais atingiram o estatuto de “furacão”), o que levou ao esgotamento dos nomes começados por letras do alfabeto latino e obrigou a recorrer ao alfabeto grego para baptizar o resto da temporada. Porém, para quem não foi afectado directamente por estes eventos, é claro que a razão para considerar 2020 annus horribilis é a pandemia de covid-19.

Na coluna positiva do balanço de 2020, é provável que um pouco mais de metade dos americanos e a grande maioria dos habitantes do resto do mundo que acompanham a política internacional coloquem o resultado das eleições presidenciais americanas. Não tanto a vitória de Joe Biden, mas a derrota de Donald Trump, e não tanto por, no confronto ideológico entre Republicanos e Democratas, estarem inequivocamente com os segundos, mas por uma questão de carácter, já que Trump, revelando um entendimento estritamente pessoal e narcísico do seu cargo, nunca esteve à altura deste (na verdade, comportou-se mais como um decadente imperador romano) nem revelou outro interesse do que a perpetuação no poder, se necessário à custa do atropelo das instituições democráticas americanas, da revogação unilateral de compromissos internacionais e do envenenamento das relações dos EUA com o resto do mundo (incluindo os seus aliados). Porém, a derrota do mais autocrático, errático e incompetente presidente americano das últimas décadas não pode ser inscrita como um saldo integralmente positivo, já que a polarização da sociedade, o radicalismo, a intolerância e as teorias conspirativas e atoardas que promoveu incansável e despudoradamente ao longo de quatro anos não serão apagados magicamente a 20 de Janeiro de 2021.

Donald Trump, rodeado de elementos da White House Coronavirus Task Force, durante uma conferência de imprensa sobre a covid-19, 15 de Março de 2020: Por esta altura, Trump garantia que o SARS-CoV-2 era inofensivo e desapareceria, como que por magia, antes da Páscoa

Um exercício de história alternativa

Quanto à covid-19, a sombra que projecta pode tornar-se menos opressiva se se fizer o exercício de a colocar na perspectiva histórica: se fosse ela a ter surgido em 1918, no lugar da gripe pneumónica, o mundo de então não lhe teria dado grande atenção.

Por um lado porque, naquela época, a esperança média de vida à nascença era de 35 anos (média global), oscilando entre pouco mais de 50 anos nos países desenvolvidos e 25 anos na Índia, o que significa que a covid-19 encontraria poucas pessoas com mais de 70 anos, que são as suas vítimas preferenciais (recorde-se que a esperança média de vida global é hoje de 72 anos, com a maior parte dos países desenvolvidos a exceder os 80 anos).

Making Masks

Combate à pandemia da gripe pneumónica, 1918: Elementos da Cruz Vermelha fabricam máscaras

Por outro lado, em 1918, a subnutrição estava muito mais difundida do que a obesidade, que é um dos principais factores de risco da covid-19. Na verdade, a obesidade generalizada é um problema tão recente que é difícil encontrar dados sobre ela anteriores à década de 1960, mas não tem cessado de aumentar vertiginosamente desde então: nos EUA, a prevalência da obesidade nos adultos em 1962 era de 13%, em 2002 era de 33% e em 2018 de 42% (com a obesidade grave a representar 9%), o que leva a que, actualmente, morram por ano 300.000 americanos devido a problemas de saúde associados à obesidade. A nível global, a OMS estima que ocorram 2.8 milhões de mortes/ano devido à obesidade, enquanto a contagem de vítimas da covid-19 se aproxima de 1.8 milhões – a obesidade é, feitas as contas, uma pandemia mais mortífera do que a covid-19, mas, como a percepção de risco pelo cidadão comum é gravemente enviesada, não causa “alarme social” nem sequer é percebida como um problema.

Outro factor de peso que levaria a que a comoção causada pela covid-19 em 1918 fosse reduzida tem a ver com a atitude da sociedade perante a morte: em 1918, não só a morte de alguém com 75 ou 80 anos era encarada com fatalismo, como a Europa estava a sair de uma guerra que, durante mais de quatro anos, trucidara sem remorso a fina-flor dos seus jovens – matando 10 milhões e ferindo 20 milhões, como se referiu acima – sem que as massas esboçassem um gesto de oposição a esta carnificina vã.

Gargling Against The Flu

Combate à pandemia da gripe pneumónica, Camp Dix, New Jersey, Setembro de 1918: Soldados gargarejam com água salgada

Para mais, em 1918 a ciência médica encontrava-se num estádio incipiente e embora a existência de vírus já fosse postulada, passariam ainda alguns anos até que o desenvolvimento do microscópio electrónico os tornasse visíveis; os primeiros medicamentos anti-virais apenas surgiram na década de 1960 e seriam precisas muitas décadas mais até que se ganhasse a capacidade de sequenciar o genoma dos vírus e de criar testes para identificar a sua presença. Uma vez que não seria possível detectar o SARS-CoV-2 através de testes e que a maioria dos infectados não apresentaria sintomas ou manifestaria sintoma muito ligeiros, indistinguíveis dos que estão associados a constipações e gripes, as autoridades de saúde de 1918 não teriam noção da propagação do vírus na comunidade, nem seriam capazes de apurar quais das mortes nos escalões mais idosos se deveriam à covid-19 ou a outras doenças.

Atendendo a que as mortes por covid-19 seriam relativamente poucas numa sociedade cuja pirâmide etária que afunilava fortemente a partir dos 70 anos, é pouco provável que os governos e as autoridades de saúde de há 100 anos se dispusessem a combater a doença impondo medidas de confinamento ou de restrição à circulação e menos provável ainda seria que os cidadãos as acatassem ou as adoptassem por sua iniciativa, pelo que o funcionamento da sociedade e da economia prosseguiria sem grandes alterações. Assim, a covid-19 espalhar-se-ia rapidamente por todo mundo e a “imunidade de grupo” seria atingida ao fim de pouco tempo. A “factura” desta “Imunidade de grupo” seria uma mortalidade acrescida nos escalões etários mais idosos, pois a medicina de 1918 seria completamente impotente para tratar a covid-19 – também os ventiladores e outros sistemas de suporte de vida estavam ainda muito distantes no tempo e o desenvolvimento de uma vacina poderia exigir muitas décadas de investigação –, mas estas mortes seriam vistas como inevitáveis e aceites com resignação.

Bain de bouche d'opératrices dans un standard téléphonique

Combate à pandemia da gripe pneumónica, Londres, c.1920: Procedimentos de desinfecção numa central telefónica

Felizmente, a valoração da vida humana e, em particular, da vida dos elementos mais idosos da sociedade, alterou-se drasticamente nos últimos 100 anos e as sociedades e a opinião pública de hoje (sobretudo nos países mais desenvolvidos e mais democráticos) tornaram-se muito menos tolerantes à morte, advenha ela de doenças, guerras ou catástrofes naturais – daí que boa parte da sociedade de 2020 tenha aceite restringir a sua liberdade de circulação a fim de defender a saúde dos mais vulneráveis. Os últimos 100 anos também trouxeram progressos formidáveis nas ciências médicas, pelo que, apenas um ano após a primeira ocorrência registada da covid-19, foi possível criar, testar e fazer entrar em produção em massa uma mão cheia de vacinas diferentes, que, nalguns países, já começaram a ser administradas. É uma perspectiva que ajuda a tornar menos lúgubre o ano de 2020.