Uma Igreja com uma “clara distância defensiva” relativamente à questão dos abusos sexuais a menores, cuja dimensão continua a ser “aparentemente negada pela maioria” dos bispos. Estas foram das principais conclusões da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que revelou, esta segunda-feira, as conclusões de um trabalho de mais de um ano.
Embora podendo existir alguns dilemas éticos — já que a iniciativa para o estudo da temática partiu da Conferência Episcopal Portugal (CEP) —, a organização garantiu, no relatório publicado, que prevaleceram valores como a “isenção” e a “independência” relativamente à análise dos abusos sexuais. Liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a Comissão não deixou passar incólume a atuação da Igreja nestas últimas décadas, tecendo-lhe várias críticas, que vão desde a ocultação à falta de proatividade das dioceses.
A inicial “posição de espera, exterioridade e distância”
Após a criação da Comissão, os membros da mesma procuravam não só recolher testemunhos das vítimas, como também entender como “exercem e pensam” os bispos das dioceses, já que a Igreja Católica não fala apenas “uma voz”: “Essa pluralidade interna merecia ser aprofundada”.
Assim sendo, a Comissão Independente tentou entrevistar os 21 bispos e administradores diocesanos, sendo que dois deles (de Beja e de Setúbal) nunca responderam aos apelos da comissão para prestarem declarações. E, mesmo com os que aceitaram, a tarefa não foi fácil. “Ao contrário das pessoas vítimas, que vieram até nós, neste caso o esforço para aceder a esta franja da Igreja Católica partiu da Comissão.”
Com uma exceção — o Serviço de Escuta dos Jesuítas em Portugal — a Comissão destaca que não “recebeu de qualquer outro membro ou Igreja Católica um contacto espontâneo mostrando vontade ou interesse em colaborar”. “Uma vez encomendado o estudo, nesses meses iniciais” havia como uma “mera posição de espera, exterioridade e distância”.
Em fevereiro de 2022, a Comissão enviou um email para todos os bispos: apenas quatro “responderam nas primeiras 36 horas, mostrando-se inteiramente disponíveis e sugerindo datas para a reunião”. Já outros quatro mostraram-se “apreensivos com o tópico relativo ao acesso aos arquivos históricos”, remetendo uma decisão para depois de uma reunião da CEP. Outros cinco responderam em duas semanas. No final, e após outra tentativa por parte da organização, 19 bispos decidiram responder afirmativamente ao pedido de entrevista.
No final de cada entrevista, a Comissão apelava aos bispos para que estes divulgassem os canais da comissão. Mas, entre os entrevistados, houve quem não apreciasse a ideia. “Os bispos tomarem parte ativa no apelo ao testemunho?”, chegou a questionar um. Notaram-se, portanto, “assimetrias consideráveis, pautadas por diferentes níveis de adesão no interior do grupo dos bispos diocesanos — uns claramente procuraram divulgar o apelo através de todas as plataformas de que dispunham, outros limitaram-se a um modesto anúncio na página da diocese”.
Foram ainda “muito raros” os apelos diretos e pessoais através da comunicação social “dirigidos a potenciais pessoas vítimas para que colaborassem com a Comissão, por parte de bispos ou sacerdotes”.
“A relativização do problema dos abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa”
Além da inicial renitência, a Comissão também se deparou, nas entrevistas aos 19 bispos, com uma atitude de uma certa relativização do problema. Persiste mesmo uma “perspetiva mais cética” em algumas das entrevistas, em que se sai “do que está verdadeiramente em jogo para apontar para temas laterais”.
De acordo com o relatório, um dos bispos argumentou que o mediatismo do assunto que se deu em Portugal ocorre não porque a realidade o exige, mas porque se “vai atrás dos outros”: “Se acontece a todos, acontece a nós… São as notícias”. Outro apontou para outros problemas, de forma a tentar desculpabilizar a Igreja: “E o abuso sexual na família? Porque não se fala nisso?”.
Paralelamente, nessas entrevistas, seguiram discursos que responsabilizam o declínio moral das sociedades contemporâneas por estes comportamentos: “Abrimos comportas em tudo o que seja liberdades sexuais… Os problemas que se passam na sociedade passam para a Igreja”. Há ainda uma “posição global persecutória sobre o próprio clero”: “O dano moral que falsas acusações podem ter nos sacerdotes […] Tenho o clero acabrunhado que não tem culpas… Sente-se uma chantagem sobre membros da Igreja: alguém que se quer vingar por não ter recebido um emprego faz uma denúncia imprópria. Imagina-se na pele dos sacerdotes e sobre os quais recaem suspeitas?!”
Adicionalmente, maioria dos bispos sublinhou que “nunca lideram” com casos de abusos sexuais. Apenas oito bispos “referenciaram, no total, treze casos do seu próprio conhecimento e, curiosamente, apenas a partir do momento em que se tornaram bispos (nunca como párocos ou simples sacerdotes) e bispos da atual diocese”.
A Comissão Independente diz, assim, que as elites da Igreja Católica estabeleceram uma “clara distância defensiva” relativamente ao tema dos abusos sexuais de menores. Perante os entrevistadores — num cenário em que era “manifestamente difícil” defenderem-se —, vários bispos resguardaram-se em desculpas como “o problema não existia”, “existe, mas não comigo” e “nunca fui informado”.
Apesar de a Comissão ter registado “graus de desconhecimento diferente no interior do grupo de bispos”, a realidade é que a questão ainda é “aparentemente negada pela maioria”. Algo que os autores do relatório reconhecer ser “estranho”, tendo em consideração a “longevidade da sua trajetória religiosa, a extensão dos domínios da infância em que diretamente intervêm, bem como a diversidade desses modos de contacto direto com crianças, jovens e famílias”.
A “paralisia real de reconhecer e responder adequadamente ao problema”
A relativização dos abusos sexuais não é o único problema apontado à Igreja pela Comissão Independente. Outro prende-se com a “paralisia real de reconhecer e responder adequadamente ao problema”. Ou seja: quando chegam as denúncias, a resposta tem sido ineficaz ou mesmo inexistente. Isto, porque a prioridade, diz o relatório, tem sido “proteger a reputação da instituição, pouco importando a condição de sofrimento da criança vítima”.
Segundo o documento divulgado esta segunda-feira, foram levadas a cabo “práticas de menorização da importância ou da ocultação desses abusos sexuais”. Por conseguinte, após serem descobertos, muitos dos abusadores apenas mudavam de paróquia — não sofrendo qualquer consequência para além desta.
A Comissão refere que, em alguns contextos, os abusos tiveram um “carácter sistémico”, aproveitando-se de uma “estrutura de funcionamento de certas instituições da própria Igreja”. Para mais, persiste uma “atitude clericalista, o desconhecimento ou a desvalorização dos direitos da criança, o fechamento aos olhares de fora” — e tudo isso ditou a “perpetuação dos abusos e reforçou o silenciamento das vítimas”.
Ainda que a existência de abusos sexuais não se possa generalizar a toda a Igreja, a Comissão reforça, sim, que a “ocultação” dos mesmos é “sistémica”, quer pelos abusadores, quer pelos “membros superiormente colocados na hierarquia que deles tiveram conhecimento e não os valorizaram, não sinalizaram ou reprimiram de uma forma adequada à verdadeira proteção da vítima”
forma adequada à verdadeira proteção da vítima"
“Foi dada prioridade à defesa da reputação institucional da própria Igreja em detrimento da empatia com a voz, o sofrimento e a credibilidade da vítima”, conclui a Comissão Independente.
Os abusadores ainda no ativo: “Obviamente demitia-os”
O relatório frisa que muitos dos abusadores, apesar de terem sido referenciados, “ainda permanecem em atividade eclesiástica”.
Durante a conferência de imprensa da parte da manhã, o coordenador da Comissão, Pedro Strecht, reforçou a importância de serem afastados. Sobre o futuro dos abusadores da Igreja, o responsável aproveitou para parafrasear a frase que o antigo candidato à presidência da República durante o Estado Novo, Humberto Delgado, disse sobre a permanência de António de Oliveira Salazar à frente do Conselho de Ministro: “Obviamente demito-o”.
Oficialmente, a Igreja recusa embarcar numa “caça às bruxas”. O bispo e presidente da CEP, D. José Ornelas, assinalou que “cada é um caso”, vincando que é necessário investigar a “plausibilidade” de cada situação. O importante é que “quem realmente cometeu crimes seja punido”, assinalou durante uma conferência de imprensa na Universidade Católica.
“A impactante dimensão do silêncio”
Outro dos problemas com que se deparou a Comissão relaciona-se com a falta de informação sobre os abusos, que se devem, “em grande medida”, ao “número diminuto de denúncias”. Ao longo das décadas, prevaleceu uma cultura de silêncio, que não permitia ter noção da dimensão do fenómeno.
Este não foi, contudo, o único ponto que gerou dificuldades à organização da Comissão Independente. Também a própria organização da Igreja, com a “autonomia das dioceses e institutos religiosos, a sucessão das suas lideranças e o tratamento informal dos casos de abuso de que as mesmas tiveram”, conjugaram-se e impediram “uma perceção mais exata da dimensão do fenómeno dos abusos sexuais na Igreja Católica”.
“A documentação consultada permite compreender que, na segunda metade do século XX, a existência de procedimentos canónicos coabitou com uma grande flexibilidade na sua gestão, variando com a sensibilidade do bispo ou do superior do instituto religioso”, sustenta a Comissão no relatório.
Para além disso, a Comissão encontrou uma diferença na maneira como eram tratados os casos nas primeiras décadas em estudo (dos anos 40 aos 90) até o que acontece hoje em dia. Num primeiro momento, “predomina um entendimento do abuso como problema de moral em que a instituição eclesial é a primeira lesada”. Por outras palavras: os agressores eram tratados como “pecadores que devem ser colocados no bom caminho” e as vítimas tendiam “a ser ignoradas”.
Atualmente, a abordagem alterou-se, havendo uma “maior tendência para a investigação das queixas e participação à Polícia Judiciária e, em alguns casos, uma atenção ao bem-estar das vítimas”. Ainda assim, as pessoas abusadas continuam a sofrer “dificuldades” no que diz respeito à sua “credibilidade”, principalmente na “apresentação de provas materiais” e “credibilidade cidadã” — esta que é “frequentemente associada ao estatuto socioeconómico como fator de credibilização”.
A falta de “organização” nos arquivos
Para tentar apurar o que se passou durante as últimas décadas, a Comissão Independente teve de aceder aos arquivos eclesiásticos. No entanto, a autorização da Igreja chegou tarde — apenas em outubro. Como notou a socióloga Ana Nunes de Almeida durante a conferência de imprensa, se tivesse havido mais tempo para aceder aos dados, isso teria trazido um “enriquecimento enorme” nos dados e no seu subsequente tratamento.
O relatório faz também uma distinção sobre o estado dos arquivos. Enquanto uns estavam “exemplarmente organizados”, noutros “a desorganização imperava”. A falta de organização levou a que equipa responsável pela elaboração do relatório não obtivesse o “acesso cabal a toda a documentação”. “Um melhor tratamento dos acervos documentais teria elevado consideravelmente os dados apresentados na análise quantitativa e qualitativa agora apresentada.”
A documentação até estava em “boas condições físicas e satisfatoriamente tratada”. No entanto, a Comissão apontou para outro problema; o facto de a informatização e digitalização da documentação estar “quase totalmente por fazer”. Apenas duas dioceses têm os “inventários em formato digital”.
Há, na mesma medida, o problema inverso no que diz respeito à documentação produzida recentemente. É que muita encontra-se nos “computadores” dos responsáveis diocesanos “que atuam no âmbito dos institutos e congregações religiosas”. É, por isso, necessário um pedido especial para se conseguir aceder à mesma, uma vez que não existe uma “gestão integrada da informação”.