“Due to the sound of your voice
And all the accidental things that can happen
I might just stay away
Before I find what my heart is after”
É assim que começa “I Might Just Stay Away“, a canção que Luísa escreveu para o irmão Salvador — muito antes da triunfal “Amar pelos Dois” — e que integra o seu único álbum. Mas a verdade é que nem a voz de Salvador, nem o acaso, os têm afastado. Antes pelo contrário.
Quando Sal(vador) chegou à família Villar Braamcamp Sobral, há 27 anos, Luísa tinha apenas dois anos e até febre fez no dia em que o irmão nasceu, como já contou, entre risos, Salvador. Filhos de um apaixonado por música, desde cedo os dias dos dois irmãos foram embalados por diferentes acordes. Lá por casa ouvia-se de Rolling Stones a Mozart, de Ella Fitzgerald a Bob Dylan e desse ao outro Bob, o Marley, passando obrigatoriamente pelos Beatles. No carro, a discografia era outra e a língua também: GNR, Rui Veloso, Madredeus. “Acho que era uma estratégia dos meus pais para eu e o meu irmão não nos matarmos no banco de trás”, escreveu Luísa, num texto publicado na revista Visão. Também Salvador já contou que a irmã lhe batia e só no dia em que lhe retribuiu uma estalada é que ela acalmou.
Competição em casa e canções na escola
Inspirados pela criatividade da mãe e influenciados pela paixão do pai, precocemente começaram a manifestar queda para a música e para a representação, partilhando até hoje os mesmos gostos musicais. Luísa revelou, no programa “5 Para a Meia Noite”, que o irmão, em pequeno, costumava cantar “Cai Neve em Nova York”, de José Cid, todo nu, lá por casa. E era também em ambiente caseiro, com os familiares na plateia, que os dois competiam numa espécie de Chuva de Estrelas. Era sempre um problema porque tanto um como o outro ficavam chateados quando perdiam, recordou Salvador, no programa Alta Definição, assumindo-se competitivo.
Mas, na verdade, não era apenas em casa que ambos iam exibindo a musicalidade que lhes corria nas veias. “Todos os dias à hora de almoço, o Salvador invadia a sala de aula do lado para cantar o ‘Postal dos Correios’, do Rui Veloso”, recorda Maria José Samuel, que foi professora do jovem cantor no 1.º e 2.º ano, no Colégio O Nosso Jardim. Já nessa altura Salvador Sobral “tinha imenso humor e ria-se às gargalhadas com as parvoeiras dos colegas e das minhas e alinhava em tudo o que fosse asneira”. Mas era mais do que uma criança brincalhona, afirma a professora. Salvador “era muito querido para todos, era muito boa onda. Não aguentava ver ninguém triste e arranjava sempre maneira de resolver, à socapa, os problemas dos colegas”. No terceiro ano, em mais uma das festas do colégio, todos se aperceberam do “vozeirão” que o “miúdo risonho” tinha.
Também a irmã Luísa, embora mais “discreta e calma” que o irmão, “adorava representar e improvisava se fosse preciso”, lembra Ana Maria Carvalho, que lhe deu aulas no 1.º e 2.º ano no mesmo colégio. “A Luísa parecia uma princesa antiga, muito loirinha e branquinha.” Já Teresa Bobone deu aulas aos dois, em fases diferentes. “O Salvador era um bocado como é hoje: simples, divertido, e já cantava bem. A Luísa era mais discreta, era outra personalidade. Passava mais despercebida, mas também já tinha personalidade criativa e artística.”
Da sala de casa para as festas da escola e dessas para a televisão. Estaria Luísa Sobral a começar a aprender guitarra, aos 12, quando o irmão, com 10, participou no programa Bravo Bravíssimo. Como seria de esperar, deu voz ao seu ídolo de infância Rui Veloso, em o “Negro do Rádio de Pilhas”.
Não muito tempo depois, Luísa, que já cantava no coro da igreja e fazia teatro, gravaria cinco ou seis originais com o irmão a fazer harmonias. Em dezembro, em entrevista à Notícias Magazine, Luísa disse que “desde pequena sempre quis ser cantora” e que há pouco tempo tinha encontrado “uns bloquinhos antigos que diziam o que eu queria ser quando fosse grande e eu escrevia sempre cantora”.
https://www.youtube.com/watch?v=cds4W-OLouE
Uma ligação que se fortaleceu com a distância e com a idade
Sempre mais determinada e focada do que o irmão, em termos profissionais, foi seguindo caminho. Em 2003, com 16 anos, participou no programa Ídolos, onde alcançou o terceiro lugar, e é aí que os portugueses a ficam a conhecer. Depois do concurso de talentos, e sempre com o apoio de uns pais bastante liberais, Luísa rumou aos Estados Unidos, onde completou o 12.º ano e se licenciou em música em Boston, numa das melhores escolas de música do mundo, a Berklee College of Music. Em 2009 viria a atuar, pela primeira vez, ao vivo, em Brooklyn, em substituição da cantora residente de um restaurante. Gostaram tanto que a residente passou a ser ela.
E foi precisamente quando Luísa atravessou o Atlântico que a relação com o irmão Salvador se tornou menos conflituosa. “Só quando ela foi viver para os Estados Unidos é que começámos a dar-nos bem. Tive saudades dela”, confessou o cantor, no Alta Definição. À semelhança da irmã, também ele viria a concluir o 12.º ano nos Estados Unidos, numa família de acolhimento, e só depois disso participou nos Ídolos, inscrito pela namorada de então. Tinha 19 anos e destacou-se dos restantes concorrentes pelo jeito descontraído e pelo repertório que levou, apesar de não ter passado do 7.º lugar. A experiência do concurso marcou-o pela negativa, muito pela exposição mediática a que esteve sujeito, embora tenha aprendido a lidar com o público e com os nervos.
Por esse “trauma” do passado, e pelo combate que assumiu contra a “música descartável”, hesitou quando a irmã o convidou para ir ao Festival da Canção interpretar uma música escrita por ela. Só aceitou (e mal desconfiava do desfecho) porque percebeu que o molde do Festival este ano era diferente e que participariam nele músicos como Samuel Úria ou o Pedro Silva Martins, por exemplo.
Já depois da passagem pelo concurso de talentos, e de ter trabalhado no Starbucks em Belém, o “beto que saiu da caixa” como o próprio se descreve, estava a tirar o curso de Psicologia quando decidiu ir de Erasmus para Palma de Maiorca. Corria o ano de 2011, o mesmo em que a irmã lançou o primeiro álbum.
Passado pouco tempo de lá estar começou a cantar em bares e restaurantes acompanhado de um guitarrista de blues e percebeu que o queria mesmo era cantar. Com o seu jeito assumidamente “inconveniente” e “inoportuno”, já revelou que chegou a consumir drogas enquanto lá viveu e a certa altura pensou mesmo que “só cantava bem fumado”.
Foi aí que ficou a conhecer a música de Chet Baker e ficou obcecado pelo cantor de jazz e trompetista, tendo lido duas vezes a sua biografia, e imitando o seu estilo.
Ligou para Portugal a informar que ia desistir dos estudos. A mãe, que sempre lhe “amparou os golpes”, não o travou, mas de imediato o avisou que iria deixar de o “sustentar”. Trabalhava das 8h00 à 24h30, todos os dias, e chegava a receber 2.000 euros por mês. Andava entusiasmado e achava mesmo que era naquela ilha espanhola que queria fazer vida.
A irmã, contudo, não parou de o chatear, à distância. “Como irmã mais velha e mandona que sou, discuti com ele e tentei convencê-lo a fazer um curso de música”, conta no artigo publicado na Visão. E Salvador já admitiu, em algumas das entrevistas que deu, que os conselhos da irmã mais velha foram determinantes. A importância daquilo que a irmã lhe diz e o peso que assume nas suas escolhas “é quase orgânico”, referiu na entrevista que deu a Daniel Oliveira. Isso e o inverno maiorquino fizeram-no partir para Barcelona, onde teve treino auditivo e de harmonia na escola Taller de Músics. As aulas de voz serviram mais para enriquecer o repertório do que, propriamente, para aprender a respirar.
Vivia com sete pessoas, começou a ir a jam sessions todos os dias, tocava pelas ruas e virou “pescatoriano” por motivos de saúde, o que o obrigou a transportar a criatividade para a cozinha, de modo a contornar a ausência da carne dos pratos. Mais uma parecença com a irmã, vegetariana, que adora cozinhar, sobretudo sobremesas.
Andava feliz pelas calles de Barcelona, mas a saúde pregou-lhe uma partida e em 2013 teve de regressar a Portugal, trazendo consigo a mesma vontade de fazer música. Frequentou aulas no Hot Club Portugal em 2013/2014, numa altura em que a irmã, já conhecida do grande público, estava a lançar o segundo álbum “There’s a Flower in My Bedroom” e em que a sua carreira ia ganhando corpo. Mas aquilo que o jovem Sobral gostava mesmo era das jam sessions, disse ao Observador a presidente do Hot Club, Inês Cunha.
Foi numa noite no clube que Henrique Janeiro o conheceu e de imediato trocaram números de telefone, porque Salvador não conhecia muita gente na cidade e “queria tocar por aí”. “Foi algo magnetizante. Somos amigos desde que nos vimos naquela noite. Neste momento é dos meus melhores amigos”, afirmou Janeiro numa conversa por telefone com o Observador, enquanto seguia de bicicleta pela cidade, descrevendo o amigo como “uma pessoa altamente espontânea, super genuína e feliz”. “Ele consegue abordar a vida de uma forma bué feliz e ligeira, como se não tivesse um problema de saúde.”
O telefonema de Salvador não tardou e com ele a sugestão de fazerem um dueto. A ideia era Janeiro tocar guitarra jazz e Sobral dar a voz ao projeto, mas Salvador começou a puxar pelo amigo, elogiando-lhe a voz, e a certa altura já cantavam os dois. Foi numa dessas performances juntos, em 2014, no festival ZIMP, que a conhecida diretora da ACT—Escola de Actores, Patrícia Vasconcelos, ouviu Salvador. “No momento que o oiço cantar veio-me direto ao coração. Ele é ‘one in a million'”, recorda, afirmando que “ele é igual ao que se vê na televisão”, destacando-lhe “a forma genuína, inteligente e incrível de ser”. Sobre Luísa, que também conhece, não poupa elogios: “Ela é uma grande compositora, uma letrista. Sou completamente fã”.
Luísa já andava a produzir discos. Salvador andava a “cantar por aí”
Mas o Hot Club trouxe a Salvador mais do que a amizade e o dueto com Janeiro. Foi numa dessas jam sessions que se cruzou com o pianista Júlio Resende que mostrou interesse na sua voz e lhe perguntou se tinha temas dele. O pianista e compositor viria, mais tarde, a ajudar na co-produção do disco “Excuse Me”, lançado em 2016, mas antes disso muitas noites de jam sessions os juntaram e concertos no ambiente intimista da Fábrica Braço de Prata.
Ao ponto de a Fábrica se ter tornado também a sua “casa”, onde ia quase diariamente. Aliás, até à participação vitoriosa no Festival da Canção, o músico ia lá duas a três vezes por semana. O fundador desse centro cultural e amigo de Salvador, Nuno Nabais, lembra uma semana em que ele interpretou os quatro registos que o acompanham: “O do Excuse Me com Júlio Resende, o de Alma Nuestra com o Zamora, o de Alexander Search com poemas de Fernando Pessoa em inglês e em que o Salvador se mascara de Pessoa [que vai subir a palco no Super Bock Super Rock], e Chet Baker”.
Violeta, a filha mais velha de Nuno Nabais, tem apenas cinco anos e sabe todas as músicas dele. Nuno contou ao Observador que quando falou com o músico, depois da vitória na Eurovisão, a primeira pergunta que ele lhe fez foi se a Violeta tinha gostado de o ver e ouvir. É que as idas de Salvador à Fábrica deixaram de ser apenas com um propósito musical e profissional. Muitas vezes vai apenas para estar à conversa e a relação entre Salvador e Nuno estreitou-se, ao ponto de ser terem tornado amigos.
Há cerca de dois anos o músico, que nunca gostou particularmente da escola e de estudar, começou a assistir às aulas de Filosofia de Nuno Nabais na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e passou a frequentar também as aulas de estudos pessoanos, o curso de cinema independente americano e de artes performativas. O cinema é aliás outra das paixões do músico, que costuma ir ao Monumental sozinho uma vez por semana. “Paris, Texas”, dirigido por Wim Wenders, foi o filme que mais o marcou até hoje. Já a irmã elege “Cinema Paraíso”, de Giuseppe Tornatore.
“Respeito-o muito porque quer transportar para o seu corpo e para a sua vida as aprendizagens que faz. Ele tem uma capacidade de compreensão e reciclagem teórica acima da média. E pede-me livros com regularidade”, assegura o professor universitário, contando que “na véspera de ir para Kiev veio perguntar-me que livros deveria levar. Levou o III volume da História da Sexualidade, de Foucault, levou o ‘Depois de Babel’ e um romance de Rui Nunes ‘Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado'”.
Sobre Salvador, Nuno Nabais só tem coisas boas para dizer. “Ele é um tipo muito feliz, mas a alegria dele é uma alegria muito trágica. É uma alegria nietzschiana, de quem está à beira do abismo e canta à beira do abismo e isso nota-se em palco, esse sofrimento. Aquelas mãos, aquele pescoço que cai em colapso, a perna que levanta. É o modo como ele vai dançando com as suas dores, embora ele não admita que a poética dos seus movimentos derive do sofrimento”, interpreta Nuno Nabais que há cerca de um ano lhe segura o telemóvel sempre que ele vai cantar. “A qualquer momento podem ligar do hospital a dizer que têm lá um coração para ele. E as instruções que temos é que se o telefone tocar e disser hospital temos de fazer sinal para o palco e interromper o concerto.”
Salvador tem a perfeita noção do “prazo”, mas não gosta muito de falar do seu problema de saúde, porque não quer que os outros olhem para ele como “coitadinho”. Apesar disso, já disse publicamente que tem dias em que chora de manhã à noite e que maldiz as suas limitações. As dores constantes causadas pela doença, a necessidade de usar uma cinta para contornar o facto de fazer hérnias com facilidade, e a espera por um transplante de coração, acabam por lhe colocar um garrote na liberdade.
Mas esse é o único problema que tem, garante, fazendo questão de sublinhar que é a pessoa mais feliz que conhece. Uma felicidade que aumenta quando partilhada. Salvador Sobral, ou Sal como lhe chamam em casa, não gosta de estar sozinho e sente mesmo “necessidade de atenção e aprovação”, embora dispense demasiado mediatismo, tendo até saído das redes sociais — o que será difícil nos dias que correm, depois de vencer a Eurovisão.
Em relação a Luísa, Nuno Nabais afirma que “são muito parecidos”, até no sentido de humor. “A grande diferença é que a Luísa desde muito cedo esteve sempre preocupada com a construção da carreira musical, não dava passos em falso, só se juntava a músicos com reconhecimento, sempre pensou mais na projeção. Ao contrário do Salvador. Ele é mais animado do que ela porque não tem projetos. Ele sabe que vive num abismo e isso dá-lhe aquela leveza.”
Leveza na maneira de olhar para a vida porque a música ele “leva muito a sério”. Quem o diz é Pierre Aderne, cantor e compositor brasileiro que costuma organizar tertúlias musicais na Rua das Pretas, que o conheceu em 2013, por intermédio da irmã Luísa que entrou no seu documentário “Música Portuguesa Brasileira”. “O Salvador é um artista único. É dos poucos artistas que vi em Portugal e no Brasil que fala o que lhe vem na cabeça e que canta o que o coração pede. Ele é a clave de sol materializada numa pessoa.”
Foi Pierre Aderne quem deu a conhecer Salvador Sobral a Caetano Veloso, que depois gravou um vídeo de apoio ao cantor português, em que diz que Salvador é “bom demais”.
À conversa com Laurinda Alves, para o Observador, em 2014, Salvador dizia que só queria “poder viver da música e ser feliz” e nem sonhava encher o Carnegie Hall. Três anos depois, no início deste ano, à Notícias Magazine, voltou a repetir que queria “lançar discos e ser feliz”, ao que acrescentou: “e ter saúde”, andar pela América do Sul e viver em Paris. É que Salvador é uma pessoa de “obsessões” e agora anda vidrado em Paris e na língua francesa.
Salvador Sobral é também uma pessoa de paixões. Aliás, já na escola básica era um “pinga-amor” de quem todas as meninas gostavam. Ele próprio assume que “sente uma necessidade de estar sempre a apaixonar-se” e que é nesse campo onde provavelmente se sente mais perdido. Talvez, como já disse, porque tem como referência a mãe que é, para ele, “a melhor pessoa” que conhece. Há poucas semanas, em entrevista, dizia que a mãe e o sobrinho eram as pessoas que mais amava neste momento. Mas não se pense que a irmã precisa de amar pelos dois. Logo numa outra entrevista, Salvador fez questão de colocar a irmã, o pai e o cunhado ao mesmo nível da mãe e do sobrinho. E as manifestações de amor entre os dois têm sido muitas, com rasgados elogios de parte a parte e Salvador a repetir que a irmã é a sua “maior referência”.
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Os dois fizeram em tempos um compromisso de nem ele cantar nos discos dela, nem ela nos dele. E cada um tem construído o seu próprio percurso, um bocadinho ao jeito de Maria Bethânia e Caetano Veloso, como a mãe dos cantores Sobral referiu à Sábado. Luísa já leva quatro discos editados, Salvador lança o segundo no próximo ano. Em entrevista à Sábado, no passado mês de março, o caçula fez uma previsão: “Quando tivermos as carreiras consolidadas assumimos isso, tipo o Caetano e a Maria Bethânia”. Resta saber se este sucesso da dupla Sobral não vai deitar esse compromisso por terra mais cedo do que ambos imaginariam.
Mas mesmo que isso não aconteça, a experiência da Eurovisão já vai ficar na história do país, como feito inédito, e na memória da família Sobral, que os viu pequenos a competirem um contra o outro na sala de casa e agora os viu abraçados no mesmo palco e a cantar em conjunto. Luísa já se imagina daqui a uns anos a perguntar ao filho, agora bebé: “Sabias que eu e o tio já ganhámos o Festival da Canção?”.