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Saber enciclopédico, poeta genial, grande fundador da língua italiana, impulsionador da cultura para todos, empenhado em levar a metafísica ao homem comum, defensor da divisão entre o poder político e o poder espiritual, profundamente católico, observador exímio, político ativo, patrono da liberdade, filósofo, amante da astronomia e da geografia, da teologia, da história e da mitologia, espírito fervoroso, conhecedor da Antiguidade Clássica, humanista. É difícil descrever Dante Alighieri em poucas palavras. O homem que nos desenhou o inferno, o purgatório e o paraíso na Divina Comédia era um ser humano agigantado pelo conhecimento, os interesses académicos e a intensa reflexão sobre a condição terrena. 700 anos após a sua morte, ainda grita os caminhos da redenção e os dogmas da punição num julgamento que será de cada homem em cada esquina do universo. O pecado e a culpa, o bem e o mal, o certo e o errado, velhas questões para as quais ainda procuramos respostas.
Portugal prepara-se para celebrar a data, a morte d’il sommo poeta, com um conjunto de atividades com início dia 24 com a exposição “Visões de Dante. O inferno segundo Botticelli”, a inaugurar na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Junta-se um colóquio internacional e vários lançamentos de livros.
Mas é lá, na Gulbenkian, que um rio de sangue a ferver engole pecadores e danados, seres que sempre que tentam vir à tona são alvejados pelas setas dos centauros que nas margens os obrigam ao afogamento. A imagem criada por Sandro Botticelli para ilustrar o canto XII da grande “Divina Comédia” dá corpo a uma galeria dos horrores que se estende na obra de Dante a geografias mais profundas, onde os vários tipos humanos, comportamentos e desvios são descritos com acutilância. Esta é uma imagem do “Inferno”, o primeiro ponto de paragem da grande viagem ao mundo além-túmulo.
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▲ A primeira página da impressão original de "A Divida Comédia", de 1472, 150 anos depois de ter sido finalizada
Muitas mais ditam a natureza humana que Dante fez atravessar a cultura ocidental ao longo dos séculos. De resto, é essa condição do homem, que espelha atos e consequências, que atrai a curiosidade dos leitores e dos críticos, leigos e académicos, poetas e artistas. Dante é em si mesmo o protagonista do texto que narra e que o fez chegar até hoje como o maior dos poetas italianos.
O mundo pagão na cultura clássica
Com data de nascimento incerta, algures entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, em Florença, Dante é filho de uma família burguesa da cidade-estado mais disputada politicamente. Uma formação assente na religião, nas ciências e na palavra marca cedo o seu perfil. A paixão exacerbada por Beatriz Portinari aos nove anos de idade define a sua literatura que desponta com Vita Nuova, um conjunto de poemas curtos dedicados à amada que no fim da sua vida o salvará, facilitando-lhe a entrada no paraíso e a visão de Deus em Divina Comédia.
É um jovem politizado, desde logo por um pai empenhado no governo de Florença, que se exalta nos conflitos militares e nas guerrilhas ideológicas. Defende a ideia de uma divisão entre o poder político e o poder espiritual e ataca sucessivamente um papado avesso a delimitações de influências. É Bonifácio VIII que o retém em Roma quando chefia a delegação do seu partido e o impede de voltar à cidade natal, em 1302. Considerado corrupto no desempenho de um cargo político, é condenado ao exílio perpétuo e a uma multa avultada, perdendo todos os recursos económicos.
A fogueira como destino caso regresse a Florença dita uma verdadeira tragédia na sua vida. Os seus últimos 20 anos serão o reflexo de “uma profunda crise pessoal”, como afirma Jorge Vaz de Carvalho”, tradutor da Divina Comédia que a Imprensa Nacional lançará no início de outubro. “Ele vai andar de corte em corte com o papel, a tinta e a pena debaixo do braço, longe da mulher e dos filhos”. A esmola dos grandes senhores passa a ser o seu meio de subsistência a par da proteção dos poderosos, o que lhe permite fazer alguns trabalhos diplomáticos. Sem segurança nenhuma, a solidão será tudo o que lhe resta em cidades como Verona, Lucca ou Ravena, onde morre a 14 de setembro de 1321, no mesmo ano em que termina o “Paraíso”, o terceiro livro da sua Comédia, que já circulava pela península itálica e se tornava um verdadeiro sucesso com direito a leituras públicas em Florença. A fama de grande poeta ainda lhe anima os últimos dias, num reconhecimento sentido entre populares e intelectuais, apesar da recusa da Igreja em aceitá-la.
No final de contas, a ideia que sempre defendeu ao longo da vida e que melhor expôs em Convívio, outra das suas obras menores, vingava com estrondo: a cultura deve ser para todos, “incluindo as mulheres”, diz à época, e só a língua vernácula chega ao povo, explica em “De Vulgari Eloquentia”. Daí ter propositadamente escrito a sua obra-prima em dialeto toscano, fundando as bases da língua italiana que hoje conhecemos. Isso explica por que é que a Divina Comédia tenha sido usada ao longo dos séculos, sobretudo no XIX, como um “monumento à união italiana”. De resto, esclarece Jorge Vaz de Carvalho, o texto da Comédia é a única obra medieval que ainda hoje é linguisticamente viva. “Ele transformou o simples falar numa língua, transformou uma fala regional numa língua nacional. O poeta passa a ideia de que a identidade de um povo se sustenta essencialmente na afirmação cultural, que começa por ser uma afirmação linguística. Essa é a grande lição de Dante”, avança o também professor de Português na Universidade Católica. Já Teresa Bartolomei, professora de Teologia na mesma universidade, frisa a capacidade que o autor tem em ultrapassar a divisão entre “o estilo trágico e o estilo cómico”, quando o primeiro correspondia ao latim e o segundo ao dialeto regional. “Uma mistura de registos assente também na utilização, ao mesmo nível, do humilde e do sublime, permitindo que uma pessoa do povo possa ser santa e um rei um danado execrável”, revela ainda a professora. “Só assim se consegue dar corpo à complexidade inerente ao homem”, continua. Lado a lado, na obra de Dante, surgem figuras mitológicas e contemporâneos do autor, homens do povo, políticos, eclesiásticos, personagens bíblicas, seres oriundos de universos culturais muito diferentes.
“Ele não aceita compartimentos fechados. É como se hoje em dia pusesse o Ronaldo a falar com Aquiles. Ou um rapper a cantar o texto. Dante é, de facto, um grande criador de geografias mentais e espirituais.”
Este homem, “que tinha a ambição de dizer que a cultura tinha de dar uma resposta global, um intelectual que não se afastava da realidade e da vida pública e acreditava tanto na partilha do saber, como na cultura como protagonista do crescimento da sociedade”, como explica Teresa Bartolomei, ganhou o calo do mundo entre homens e mulheres, pobres e ricos, aristocratas e plebeus, cidadãos e camponeses, na guerra e na atividade política, nos livros e nos discursos (recorde-se os do radical Savonarola, como chama a atenção o curador da exposição da Gulbenkian, João Carvalho Dias), em privado e em público, entre artistas e poetas. Uma experiência de vida em que pegou para “falar como poucos da natureza humana”, diz João Figueiredo, professor de literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
![Illustration to the Divine Comedy by Dante Alighieri, 1480-1490. Artist: Botticelli, Sandro (1445-1510)](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:4096:2736/c:4096:2736:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/09/14222040/GettyImages-464441853-scaled.jpg)
▲ Uma das ilustrações para "A Divina Comédia" assinadas por Sandro Botticelli, obra que também vai estar em destaque no ciclo da Gulbenkian
Heritage Images/Getty Images
“Condensar esse saber na sua obra poética” foi o desafio que agarrou a partir do seu “envolvimento político e ético” na sociedade florentina. E, de facto, a poesia que escreve não deixa de fora as grandes questões éticas e espirituais analisadas à luz da política e enquanto pensador. Veja-se o mal e o bem, ou a vida e a morte. No fundo, o “retomar da tradição clássica da tragédia grega, que fala a todos sobre as questões vitais da sociedade”, continua Teresa Bartolomei. Para trás ficava a sua ideia de que, ao comungar do poder político e espiritual a um só tempo, o Papa “prostitui” a Igreja e torna-se ele próprio corrupto. “Era preciso que a autoridade papal usurpadora voltasse a ter uma iminência espiritual que merecesse a confiança religiosa. Enquanto a autoridade política devia residir na figura do imperador de forma a terminar com as disputas entre nobres e cidades rivais”, explica Jorge Vaz de Carvalho. De Monarchia, o tratado político de Dante, destaca precisamente essa ideia. Não admira que seja considerado um livro herético e que seja queimado na fogueira, tendo estado na lista dos livros proibidos durante muitos séculos.
“Considerado o homem da Idade Média que opera a abertura para a Renascença”, diz a professora de Teologia, Dante é aquele que vai buscar à cultura clássica o mundo pagão “como fonte de humanismo imprescindível e que tem que ser reconhecido como tal”. Essa “escolha revolucionária” do poeta materializa-se aos olhos do mundo na figura do seu guia no “Inferno” e no “Purgatório”, Virgílio, o grande autor da Eneida e o poeta que Dante mais admirava. “Ele escolhe um pagão que na cultura clássica tem um poder cognitivo completamente autónomo do registo eclesiástico” e inova ao deixar para trás os tradicionais guias ao mundo dos mortos feitos anjos, espíritos, cristãos e entidades superiores.
Manifesto da redenção, tratado do juízo final
A viagem ao além-túmulo enceta-se na noite de quinta-feira santa da Páscoa de 1300 e termina na quarta-feira seguinte e é levada a cabo por um homem desesperado e desiludido que procura a salvação por via do amor. Percorre os três estádios possíveis depois da morte, Inferno, Purgatório e Paraíso, como já vimos, e depois de avistar danados e pecadores de toda a espécie e o próprio Lucifer, olhar as almas dignas em purificação e a caminho da redenção, entra no reino do inefável já pela mão da criatura amada que lhe facilita a visão de Deus e a união com Ele, consubstanciando-se o “amor como virtude da salvação”, diz Vaz de Carvalho.
Manifesto da redenção, tratado do juízo final, “cânone escatológico para a figura humana”, como escreveu Vasco Graça Moura, a obra maior de Dante não perde a atualidade apesar de poder ser escrita por um homem “profunda e excessivamente católico”, como afirma Teresa Bartolomei: “Dante tem um tribunal interior que é a sua fé”.
Mas se essa “resistência a pensarmos numa moral cristã, que cria balizas muito rígidas ao nosso comportamento”, existe, ela é “mais do que uma moral religiosa, e sim uma inspiração cristã que é no fundo a transmissão de valores universais. Dante é a coisa mais contemporânea que existe”, considera Jorge Vaz de Carvalho. Permanece sempre a ideia “de uma política orientada para o bem comum”, e prevalecem os conceitos de generosidade, decência, dignidade, honestidade. “Transcende-se qualquer catecismo e apresenta-se os valores que devem nortear a vida do cidadão comum”, continua o professor. De resto, para Jorge Vaz de Carvalho, os três volumes da Divina Comédia podem resumir-se numa simples preposição:
Existe uma vida efémera e existe uma eternidade. O que Dante faz é relembrar a toda a gente muito empenhada nos múltiplos vícios, que não vale a pena tanta sede de poder, tanta cupidez, porque tudo para no momento da morte e tudo vai para a eternidade”.
“A escritura da ‘Comédia’ tem um valor apostólico na medida em que tem um valor de mensagem. Uma grande mensagem não apenas cristã e religiosa, mas também cívico-política. Ela é um novo apocalipse no sentido da revelação. Vai recuperar a velha tradição da poesia que é a ideia de que o poeta é também mestre espiritual e a poesia tem uma função pedagógica e moral”, refere ainda o professor da Universidade Católica. “Dante joga com a realidade e com a imaginação, apresenta factos concretos da história de Florença e faz-se valer de uma dimensão imaginária de um pintor como Bosch, utilizando ainda as dimensões de memória e de profecia. Assim, toca todos os tempos e lugares com uma poesia universal e intemporal”, esclarece Jorge Vaz de Carvalho.
![Dante Alighieri (c1265-1321) known as Dante, Italian poet. Portrait c1495 by Sandro Botticelli (c1445-1510) Italian Early Renaissance painter.](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:3161:4096/c:3161:4096:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2021/09/14222021/GettyImages-113492576-scaled.jpg)
▲ Dante Alighieri assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe pelo século XIV adentro como a definitiva forma da consciência humana
Getty Images
Esse acertar de contas no momento da morte revela “uma escolha moral profunda”, diz Teresa Bartolomei, tendo o homem nessa escolha a sua liberdade maior. Toda a obra de Dante premeia um “agir humano que tem subjacente um misto de liberdade e responsabilidade”, adianta Jorge Vaz de Carvalho. “Há a consciência de que cada indivíduo tem uma dignidade que deve ser respeitada mesmo na queda, mesmo do maior culpado”, remata a professora de Teologia.
Do Renascimento a Portugal
Refutado pelo artista do Renascimento que já se reconhece absolutamente autónomo em relação à religião, Dante atravessa os séculos até à sua grande recuperação pelos românticos no século XIX. A sua compreensão da ideia nacionalista será determinante para esse regresso à tona, “ele que também lutou por uma Itália unida, que só viria a ser realidade com Garibaldi”, avisa Jorge Vaz de Carvalho. Já no século XX, torna-se poeta de referência para muitos autores, sobretudo no mundo anglo-saxónico. “T.S. Eliot e Ezra Pound são dois dos grandes que recuperam Dante como figura imprescindível para a identidade cultural e consciência poética do Ocidente”, diz Teresa Bartolomei, que cita o alemão Erich Auerbach, o autor de Mimesis, para definir Dante:
O poeta que quer conhecer a realidade do Homem e que descobre essa realidade na sua dimensão ultraterrena”.
Em Portugal, a ressonância dantesca nas letras não se conhece antes do século XIX. Há versões parciais da Divina Comédia, mas a primeira tradução integral do texto data de 1887/88, à qual se juntam no século XX mais três traduções completas, sendo a de Vasco Graça Moura, em 1995, a de maior peso. O século XXI tem já assegurada mais uma versão, a de Jorge Vaz de Carvalho.
Todas reúnem o que de mais rico e complexo existe no nosso universo interpretativo em relação à nossa própria condição e à nossa relação com os outros. Todas nos aproximam da transcendência, aquela auto-superação humana que nos faz falta nos momentos decisivos e nos concede a serenidade final como o maior dos bens. Acima delas, Dante Alighieri assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe pelo século XIV adentro como a definitiva forma da consciência humana. Até hoje.