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Não tem problemas em que lhe chamem “um dos rapazes de Angela Merkel”. David McAllister é há muito uma das estrelas em ascensão da conservadora CDU. O nome engana (o pai de McAllister é escocês), mas o democrata-cristão cresceu e viveu na Alemanha toda a vida e entrou na política nacional logo aos 23 anos, diretamente para as fileiras da juventude partidária conservadora. Passou pelo parlamento e pelo governo regional da Baixa Saxónia, mantendo-se sempre ao lado de Merkel — que em 2005 chegou a convidá-lo para o cargo de secretário-geral do partido; ele recusou. Mas aproveita qualquer oportunidade para elogiar a sua mentora: “Angela Merkel ganhou o respeito de muitos atores na Alemanha, na Europa e em todo o mundo graças à forma como operava. A sua força é saber mediar e moderar de forma calma”, diz durante a entrevista que concedeu ao Observador no seu gabinete em Estrasburgo, no Parlamento Europeu.
Há quem diga que David McAllister ambiciona outro tipo de voos que não os da política alemã, como um cargo de comissário europeu. Atualmente, preside à Comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento Europeu, o que o torna bem colocado para comentar o momento que a União Europeia (UE) vive atualmente. No discurso do Estado da União, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deu o tom: focou-se nos desafios de política externa, tentou projetar a UE como uma potência global e propôs uma política de defesa comum. “A geopolítica está de volta”, resume o eurodeputado alemão sobre o momento que a Europa atravessa.
E vai até mais longe do que a compatriota: “Necessitamos de uma estrutura na UE que possa enviar tropas para o terreno durante um determinado período de tempo, sem ter de estar a implorar ao nosso grande aliado”, afirma, referindo-se à situação que ocorreu no aeroporto de Cabul durante a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão. Na boca do eurodeputado, o “grande aliado” são sempre os EUA — “sou completamente contra esta conversa da esquerda de que devemos ser equidistantes face a Moscovo, Pequim e Washington” —, mas isso não o impede de fazer algumas críticas mais tímidas a Washington, quer sobre a retirada abrupta do Afeganistão quer sobre a celebração do acordo AUKUS sem informar a Europa.
As palavras mais duras, contudo, são reservadas para Moscovo: o Kremlin é “autoritário” e é necessária “força” para lidar com ele — uma força que, admite, o alto-representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, não teve aquando da sua visita a Moscovo em fevereiro deste ano. Mas apesar da acidez contra a Rússia, McAllister acaba por admitir que é necessário “pragmatismo” na política internacional. É por isso que defende que a Alemanha mantenha de pé o acordo para o gasoduto Nord Stream 2, apesar das críticas de alguns, incluindo do secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken. Uma postura semelhante à que defende face à China: a de que a UE deve criticar as violações de direitos humanos chinesas, mas não pode ignorar a dimensão económica da grande potência asiática.
As críticas, porém, não são apenas dirigidas para fora de portas: “Os Estados-membros têm de estar prontos, não podemos continuar assim”, afirma relativamente às decisões sobre a política externa europeia. “Aquilo que vejo é que ao domingo muitos políticos dizem ‘Precisamos de uma política mais eficaz e forte na segurança e nas relações externas’, mas depois chegam ao Conselho Europeu na segunda-feira e voltam a andar às turras”. Um problema que crê que poderia ser solucionado se as decisões no Conselho Europeu nesta área pudessem ser tomadas por maioria qualificada em vez da atual unanimidade exigida — uma posição já defendida pelo governo alemão e também partilhada por Von der Leyen.
Mas, no fundo, apesar de estar longe da política partidária alemã, David McAllister continua a ser um produto da política do seu país. Reconhece que a derrota da CDU/CSU nas últimas eleições alemãs foi “uma desilusão” que exige reflexão, mas não se cansa de sublinhar que os democratas-cristãos podem ser uma alternativa, caso as negociações entre os sociais-democratas, verdes e liberais colapsem. Destaca o “consenso” que existe sobre a Europa entre os principais partidos alemães, mas aponta a maior simpatia do SPD à ideia de mutualização da dívida europeia do que dos conservadores. E não esconde a tristeza por ver Angela Merkel partir: “É o fim de uma era.”
Uma influência tão marcante que se traduz nos pequenos gestos, como o de colocar as mãos em triângulo para a fotografia, à semelhança do que fez a chanceler durante tantos anos. “Estou a brincar!”, diz ao Observador em plena sessão fotográfica. Mas a inspiração está lá — e a foto também.
“O exército europeu é um objetivo a longo-prazo”
Na sessão plenária do início do mês, tivemos uma discussão sobre a relação da UE com os EUA. Como presidente da comissão de Negócios Estrangeiros, começava por lhe perguntar como pode a UE ter um papel relevante nas relações transatlânticas quando os EUA tomam decisões unilaterais como a saída do Afeganistão ou se focam no ataque à China — enquanto a Europa assina acordos como o do ano passado com Pequim?
Deixe-me começar por dizer que vivemos atualmente tempos muito desafiantes em termos geopolíticos. A geopolítica está de volta, toda a gente tem noção disto. Nós, enquanto União Europeia, temos de nos organizar, de conduzir melhor a nossa weltpolitik — uma palavra que Jean-Claude Juncker também usou no seu último mandato à frente da Comissão Europeia. No que toca ao comércio, a UE é um player global; na política externa não. Não conseguimos olhar nos olhos os EUA, a China ou outra grande potência. Acho que temos potencial e ele está identificado, mas os 27 Estados-membros têm de se organizar. Temos de ser mais eficazes e mais capazes de agir no plano global em termos de relações externas e de assuntos de segurança e defesa.
O que está a atrasar o acordo de investimento entre a UE e a China? E o que tem a Europa a ganhar?
Os EUA continuam a ser o nosso aliado mais próximo fora da Europa. Tirando o Canadá, não há nenhum outro país fora da Europa que seja tão parecido connosco em termos políticos, económicos e históricos. As relações transatlânticas são a base do nosso sucesso económico, os EUA são o nosso parceiro comercial mais importante e o garante da nossa segurança. Portanto, aqui não há surpresas, até porque está a falar com um conservador alemão: sou completamente contra esta conversa da esquerda de que devemos ser equidistantes face a Moscovo, Pequim e Washington. Estamos ao lado dos EUA e eles ao nosso lado. Agora, é claro que as relações transatlânticas atravessaram um período difícil durante a presidência de Donald Trump. As nossas relações atingiram mesmo um ponto baixo, que nunca esperei. Isto é algo que entristece os democratas-cristãos alemães. Mas desde que o Presidente Biden tomou posse que assistimos a uma grande melhoria.
Mesmo quando vemos decisões como a assinatura do acordo AUKUS, que deixou a Europa de fora?
Mas temos de olhar para a situação geral. O que fez o Presidente Biden desde que chegou ao poder? Deu financiamento considerável para a COVAX, fez os EUA regressarem ao Acordo de Paris, à Organização Mundial do Comércio e à Organização Mundial de Saúde, recomeçou o diálogo com a UE sobre a China, coordenou com a Europa as sanções a responsáveis chineses, em resposta às violações de direitos humanos em Xinjiang, reforçou o compromisso dos EUA com a NATO e — isto não é uma coincidência — a sua primeira visita ao estrangeiro foi à Europa. Este é o lado positivo. Mas claro que, mesmo tendo as nossas relações melhorado, há uma série de campos onde não concordamos. Fui muito cético da decisão norte-americana de retirar do Afeganistão tão depressa e com uma data fixa, porque os norte-americanos não deixaram outra opção aos seus aliados da NATO que não fosse segui-los. E acho que quando acordamos com os nossos aliados norte-americanos entrar numa missão conjunta, também se devia acertar connosco os detalhes para terminá-la. E isto não aconteceu.
A UE foi apanhada de surpresa?
Exatamente. E o Afeganistão mostra o dilema em que estamos na UE: criticamos os norte-americanos por tomarem decisões sem nos consultarem, mas não somos capazes de agir sozinhos. É por isso que precisamos de um novo debate honesto sobre como fortalecer as capacidades de defesa europeias, porque a UE é só um contribuinte global e queremos tornar-nos num player global. As nossas ferramentas diplomáticas serão sempre a resolução de conflitos, a diplomacia, o apoio ao desenvolvimento, o comércio. Mas necessitamos de um certo grau de capacidades militares. Mais uma vez, como democrata-cristão alemão, [o que vou dizer] não causa surpresa: nunca devem ser capacidades aplicadas contra a NATO ou em competição ou duplicação com a NATO. Deve é ser um reforço do pilar europeu dentro do enquadramento da NATO. E vimos isso no Afeganistão: mesmo que quiséssemos garantir a segurança do aeroporto de Cabul sem os americanos, não teríamos sido capazes de o fazer. E isto é algo que não podemos aceitar. Nós, os 27 Estados-membros da UE, gastamos mais em defesa do que a China e a Rússia, somos os segundos a nível mundial. Mas não somos capazes. É por isso que sou a favor de uma cooperação europeia na área da defesa, de partilhar recursos. Precisamos de continuar a ser transatlânticos, mas temos de nos tornar mais europeus.
A presidente Ursula von der Leyen falou da necessidade de ter uma nova estratégia de defesa no seu discurso do Estado da União e há uma proposta a ser preparada. De que tipo de proposta gostaria? A de um exército europeu, no sentido tradicional do termo?
O exército europeu é um objetivo a longo-prazo, que pode ser o passo número 157 de 263 ou 359. Antes disso ainda temos um longo caminho a fazer. Temos de criar uma unidade de defesa europeia, mas esta cooperação não deve minar a cooperação transatlântica e a NATO. Nós já demos mais passos para uma união europeia de defesa desde 2016 do que em todos os 50 anos antes. Porque, depois do referendo sobre o Brexit, o Reino Unido desistiu da sua política de bloquear todos estes passos — continuavam a não estar convencidos, mas passaram a dizer “OK, nós estamos de saída, portanto…” Agora temos a PESCO, que é a Estrutura de Cooperação Permanente, mas também o Fundo Europeu de Defesa, a Revisão Anual Coordenada de Defesa… A união de defesa europeia é como um puzzle, já pusemos a moldura à volta e agora, passo a passo, vamos completando o puzzle. Acho que não devemos juntar mais projetos ao PESCO porque já temos muitos, mas avancemos nalguns concretos como o transporte aéreo europeu e a ideia de um hospital móvel. É um exemplo claro de uma questão onde devemos partilhar recursos e, se um Estado-membro necessita deles, então que os emprestemos. Imaginem que Portugal quer enviar unidades para Moçambique? Tudo bem, vamos partilhar, nós alemães temos todo o gosto em apoiar os nossos parceiros portugueses. E não interessa como lhe quiserem chamar, se força de intervenção europeia ou exército europeu — depois do que aconteceu em Cabul, necessitamos de uma estrutura na UE que, caso algo assim se repita, possa enviar tropas para o terreno durante um determinado período, sem ter de estar a implorar ao nosso grande aliado. É por isso que vejo com bons olhos as propostas feitas pela presidente Von der Leyen e pelo nosso representante Josep Borrell e estou ansioso pela cimeira que vamos ter no próximo ano durante a presidência francesa.
Sei que há divisões entre os 27 Estados-membros, tenho perfeita noção. E temos de nos lembrar de que, apesar de 21 deles fazerem parte da NATO, seis não fazem. Alguns deles têm relações próximas, como a Suécia ou a Finlândia, mas outros são firmemente neutrais, como Malta ou a Irlanda. Temos países que sublinham mais a cooperação transatlântica do que outros, mas acho que há espaço para um entendimento. Já falei com muitos responsáveis americanos que me dizem “Esperamos que vocês, europeus, façam mais pela vossa própria defesa. Esperamos que gastem mais. Se o fazem a um nível nacional ou europeu, isso não nos diz respeito. Mas queremos uma Europa mais visível na NATO, por uma questão de partilha de responsabilidades.” E se é do nosso interesse, mais vale fazê-lo em conjunto, como europeus.
“O Kremlin aponta-nos o dedo quando tem outros quatro apontados a ele”
Quais pensa que são as maiores ameaças à segurança da Europa? Dizia há pouco que é contra a ideia de colocar no mesmo plano os EUA com Moscovo e Pequim. A Rússia e a China são as maiores ameaças?
Primeiro, deixe-me dizer-lhe que sou sempre a favor de que os 27 Estados-membros avancem ao mesmo ritmo e com a mesma determinação. Mas as coisas são como são e em muitas áreas temos coligações entre os que querem. Até já na área da defesa e da segurança, a Dinamarca e Malta não fazem parte da PESCO. Não sabemos ainda se os 27 se quererão juntar a esta iniciativa, mas, se não quiserem todos, devemos formar uma coligação entre os que querem. Não podemos estar à espera até que o último dos Estados-membros adira.
Avançar então com um modelo a duas velocidades, se for preciso?
Não gosto dessa expressão, prefiro dizer uma Europa com diferentes formas de cooperação. Veja, temos 22 países em Schengen, 21 no Euro, 25 na PESCO… Se um país disser que, por questões constitucionais de neutralidade, não se pode juntar a esta iniciativa, tudo bem. Agora, perguntava-me sobre as ameaças. Bom, para já estamos à espera da “Bússola Estratégica” que o nosso alto-representante anunciou, e que irá fazer uma análise de quais as ameaças que enfrentamos. Mas é óbvio que elas são, em primeiro lugar, a Rússia. Fico profundamente entristecido pela forma como as nossas relações com a Rússia evoluíram ao longo dos últimos 12, 13 anos. Há tantas áreas onde um Kremlin cada vez mais autoritário não respeita os nossos valores… A anexação da Crimeia foi a pior violação da lei internacional desde 1945!
E a Europa reagiu a isso com sanções, mas não conseguiu reverter a situação.
Acho que as sanções têm um impacto. Não estamos felizes com elas, mas são a única ferramenta diplomática de que dispomos. E creio que o importante é que, apesar das diferentes visões dos vários Estados-membros, demonstrámos uma unidade notável — porque estas sanções são renovadas a cada seis meses. E é claro que o mais relevante é a Ucrânia, com a anexação ilegal da Crimeia e as atividades russas em Donbass, mas há muito mais. Assistimos à desestabilização russa na Moldávia, na zona da Trasnistria. Vemos o seu apoio ao último ditador da Europa, Lukashenko. Temos ataques cibernéticos, fake news, desinformação. Toda a política russa demonstra que eles não estão interessados em ter boas relações com a Europa e é por isso que a dissuasão e a resiliência são fulcrais. Dito isto, para além da ameaça do leste, temos uma outra que vem do sul: temos de estar atentos às atividades terroristas que acontecem no Sahara e na África subsariana. Por princípio, acho bem que os europeus estejam em países como o Mali ou o Níger, a apoiar estes países na sua luta contra o terrorismo. A terceira maior ameaça é na área cibernética. Vimos todos isto [na segunda-feira passada, com o apagão do Facebook, Instagram e WhatsApp]: não foi um ataque cibernético, mas vimos quão dependentes estamos quando a nossa infraestrutura digital não está a funcionar a 100%.
Mas como pode a Europa manter o equilíbrio entre defesa e interesses económicos? Veja-se o caso da Alemanha: o governo de Angela Merkel não suspendeu o projeto Nord Stream 2 [gasoduto vindo da Rússia], mesmo considerando a Rússia essa grande ameaça. A Europa não corre o risco de depois perder a face?
O Nord Stream 2 é bicudo para os alemães aqui no Parlamento Europeu… Tenho perfeita noção das preocupações, em particular dos nossos amigos do leste da Europa. E não sou um entusiasta do Nord Stream 2. Este é um projeto que foi iniciado durante a chancelaria de Gerhard Schröder, um socialista…
Há muitos anos. E não foi cancelado entretanto.
Verdade. Mas acho que no início as consequências geopolíticas deste projeto foram subestimadas. Acho que se alguns soubessem o que isto ia representar não tinham avançado. Por outro lado, do ponto de vista legal, este projeto não tem problemas; no fundo, é uma questão política. E temos de nos recordar que os principais promotores do Nord Stream 2 foram os sociais-democratas. Vai ser interessante ver que papel vai ter o gasoduto nas negociações para formar uma coligação agora em Berlim, porque os sociais-democratas são a favor, enquanto os Verdes e os Liberais já se pronunciaram claramente contra este projeto.
Acho que o compromisso que a chanceler Merkel alcançou com a administração norte-americana há umas semanas mostra-nos o caminho: o Nord Stream 2 em funcionamento, mas com a Alemanha a garantir que o fornecimento de gás não será usado como uma ferramenta que influencie a Ucrânia. Até nos dias mais frios da Guerra Fria a Alemanha continuou a importar gás da Rússia… E há também um argumento económico: a Alemanha vai abandonar a energia nuclear em 2022 e está a desistir do carvão por razões climáticas, mas é um país altamente industrializado que vai continuar a depender do fornecimento de energia enquanto não tiver as renováveis capazes de sustentar 100% das suas necessidades energéticas.
Ou seja, não tem alternativa?
Na Alemanha, costumamos dizer que o gás é uma tecnologia rica. Apesar de toda a confrontação com a Rússia, ainda acredito que temos de tentar manter o diálogo com ela. É por isso que apoio totalmente a postura que a UE tem adotado com a Rússia nos últimos anos: confrontá-la quando necessário, mas também colaborar.
E a UE tem feito isso? Quando Josep Borrell foi a Moscovo não teve exatamente uma prestação combativa…
Mais uma vez, essa situação mostrou-nos que o comportamento russo é a prova de que eles não estão interessados em ter relações decentes connosco. O Kremlin queixa-se das más relações com a UE e aponta-nos o dedo quando tem outros quatro apontados a ele. A sua atitude é chocante. Mas mesmo assim, quando for possível, devemos manter o diálogo com a Rússia. Temos de colaborar em determinadas áreas, como as alterações climáticas. E, quer queiramos quer não, eles continuam a ser nossos vizinhos e temos de lidar com eles. Só que devemos deixar claro que temos visões fundamentalmente diferentes em relação a princípios e valores. Como sempre, na política externa temos de ser pragmáticos por um lado e firmes nos nossos princípios por outro. Ainda há pouco tempo estive no Ártico com a Comissão de Negócios Estrangeiros e fomos à Islândia e à Gronelândia. Há muitos fóruns internacionais onde os russos são completamente destrutivos, mas no Concelho do Ártico um dos nossos interlocutores disse-nos: “Este é um formato onde os russos — batam na madeira — até agora têm tido um papel construtivo”. Mas temos de ser claros: não se pode mostrar fraqueza quando se lida com o Kremlin. Tem de se ser forte e mostrar-lhes que não nos afetam.
E acha que foi isso que Josep Borrell fez naquela visita?
Bem, aquilo foi… [faz uma pausa]. Oiça, também já estive na política de cargos e sei que às vezes acontecem coisas que não deviam acontecer. Isto já foi discutido e bastante criticado. Acho que devemos ultrapassar este incidente. A nova estratégia para a Rússia que Borrell apresentou entretanto vai na direção certa.
“Há um consenso entre os principais partidos alemães relativamente à Europa”
Falou ainda há pouco nas negociações para formar uma coligação na Alemanha. Como eurodeputado da CDU, qual é a sua avaliação dos resultados eleitorais? Foi o pior de sempre para a CDU…
Como democratas-cristãos, não podemos estar felizes com aquele resultado, é o pior de sempre no pós-guerra. Foi uma desilusão. Não podemos ignorar o que aconteceu e temos de fazer uma análise profunda dentro do partido, sem dúvida. Dito isto, o que significam os resultados? Bem, de momento ainda não consigo dizer-lhe que tipo de governo vai ser o próximo. A única coisa clara é que, pela primeira vez desde o pós-guerra, teremos de ter um governo alemão com três partidos. Será uma coligação semáforo [SPD, Verdes e Liberais] ou Jamaica [CDU, Verdes e Liberais]. Creio que a primeira é a mais provável, mas se as negociações entre eles falharem, a CDU/CSU estará pronta para assumir a responsabilidade e liderar um governo. Senão, estaremos na oposição, porque a democracia também necessita de uma oposição forte. Neste momento, não estamos sequer ainda na fase da negociação, estas são só conversas preparatórias. E se olharmos para o que aconteceu em 2017, as negociações demoraram. Não tanto como as de países como a Holanda e a Bélgica, mas… Quem sabe? Não lhe sei dizer se a Alemanha vai ter um governo antes do Natal ou não.
Se tivermos um governo liderado por Olaf Scholz, quão diferente acha que será em matérias europeias dos de Angela Merkel? Durante a campanha, ele pareceu indicar que as diferenças não seriam assim tantas.
As questões europeias e a política externa não tiveram grande destaque durante a campanha, em parte por culpa dos seus colegas da televisão alemã, que não fizeram perguntas sobre isso nos debates [risos]. Foram debates focados sobretudo nas questões internas, o que achei infeliz — fazia sentido que o maior Estado-membro da UE dedicasse parte do seu tempo a discutir o futuro da União e da NATO, mas não aconteceu. Dito isto, outra razão pela qual não houve assim tanto debate é porque, apesar das diferenças políticas que todos temos na Alemanha, há muito entendimento nas questões externas. Os quatro principais partidos (CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes) querem a Alemanha firmemente ancorada na Europa e sabem que a Alemanha tem de ter um papel de liderança ativo na UE, a par da França. Também há um consenso em relação a uma ideia inicialmente controversa: a de como devem funcionar os próximos fundos europeus. Há um entendimento na Alemanha de que necessitamos de um mercado único funcional e de um equilíbrio na Europa e os nossos parceiros do Sul foram mais atingidos durante a pandemia do que os do norte. Portanto, a Alemanha acabou por concordar que tem de apoiar Itália, Espanha, França, Portugal.
Uma posição bastante diferente da que foi adotada na crise de 2011. Porquê esta mudança?
Porque a pandemia é uma situação extraordinária. Veio do nada, ninguém tem culpa disto.
E no caso da crise das dívidas soberanas, alguém tinha culpa?
[Suspira] Bem, quer dizer… No caso da crise da dívida, é claro que havia explicações sobre por que razão alguns países estavam a sofrer e outros não. Mas o que quero dizer é que esta é uma situação de exceção. E esta será a principal diferença entre os socialistas e os liberais [na Alemanha]: se esta deve ser ou não uma forma permanente de financiar os Estados-membros. Acho que podemos antecipar que haverá entre eles aquilo a que os ingleses chamam de fun and games… Mas há um consenso entre os principais partidos relativamente à Europa, apenas visões diferentes em detalhes como a questão da mutualização da dívida — a esquerda apoia a ideia, a CDU/CSU não. Felizmente, esta eleição garantiu que os partidos radicais não estarão no governo, porque tanto a dita Alternativa Para a Alemanha (digo “dita” porque eles são tudo menos uma alternativa) como a extrema-esquerda do Die Linke têm visões muito diferentes sobre a Europa. Eu, na minha campanha, costumava dizer que “A Europa deve ser maior nas questões grandes e menor nas questões mais pequenas”. Acho que é algo com que muitos democratas-cristãos e liberais na Alemanha concordam, enquanto que os socialistas e os verdes nem tanto.
“Angela Merkel é muito terra-a-terra”
Trabalhou de perto com a chanceler Merkel. Qual acha que é o legado que ela deixa na política europeia?
Acompanhei os 16 anos de Angela Merkel na chancelaria, em parte como ministro-presidente [da região da Baixa-Saxónia]. E uma coisa é clara: é uma era política que chega ao fim. Angela Merkel ganhou o respeito de muitos atores na Alemanha, na Europa e em todo o mundo graças à forma como operava. A sua força é saber mediar e moderar de forma calma, com o objetivo de chegar a um consenso, sobretudo no nível europeu. Ela sempre seguiu o princípio de que não há progresso sem compromisso — e talvez a experiência dela na crise da zona Euro tenha feito com que ela agora tenha querido seguir um rumo ligeiramente diferente na crise da pandemia. Saiu uma sondagem recente do European Council on Foreign Relations que mostra que a maioria vê Angela Merkel como uma força integradora e um ator político de confiança para toda a Europa… Ela deixou uma marca, política e socialmente. E, é claro, vai ficar para a História como a primeira mulher naquele cargo. Agora, será que ficará como a única a ocupá-lo tanto tempo como Helmut Kohl? Isso está nas mãos do que estão a negociar uma coligação. Ela atinge a marca de Kohl se ficar no cargo até 17 de dezembro.
O que não parece assim tão difícil…
A Constituição alemã é clara: enquanto não houver um novo chanceler, o atual fica no cargo à frente de um governo de gestão. Conheço Angela Merkel e sei que para ela isto não é um problema. É uma pessoa muito modesta, muito terra-a-terra e direta ao assunto. E é completamente contra grandes aparatos ou ideias de estrelato. Ela trouxe um toque feminino à política alemã, com efeitos muitos positivos. E mudou-a para melhor.
Que toque feminino é esse? A procura de consensos?
Isso e o respeito. Quase nunca vemos Angela Merkel a atacar pessoalmente os adversários. Ela sempre diferiu muito dos sete anos de Gerhard Schröder, que era muito… [bate com as mãos no peito, como um gorila]. Se olharmos para estes 16 anos, ela conseguiu que a Alemanha ultrapassasse quatro crises: a financeira, a das migrações, o Brexit e a pandemia. Foram anos marcados por uma relação difícil com a Rússia e pela ascensão da China como nova super potência. E ela manteve uma boa relação com Barack Obama e depois quatro anos difíceis com Donald Trump.
Mas olhemos para essas quatro crises. Com exceção da crise dos refugiados, onde ela tomou uma posição muito definitiva, foi uma política que não liderou de forma muito assertiva, de se afirmar a favor de uma ideia específica. Isso também pode significar que é uma líder hesitante.
Ela é uma cientista. Uma das expressões que ela mais gosta de utilizar é uma que em alemão significa que tudo tem de ser visto tendo em conta o resultado final. E o que significa isso? Significa liderar a partir da retaguarda, pesando todas as alternativas, não se precipitando. E sempre a ouvir os aliados, em particular Bruxelas, Paris, Washington. A chanceler Merkel também vai ficar para a História por ter começado a governar numa Alemanha que tinha 5 milhões de desempregados e que agora tem menos de 3 milhões, apesar da pandemia. Portanto foram 16 anos de recuperação económica. Agora, como democrata-cristão, é justo da minha parte admitir que algumas das fundações dessa recuperação foram estabelecidas nos tempos de Schröder. Não vale a pena recorrer a tretas políticas quando estou a falar com um órgão de comunicação social português… Nos meus tempos na política alemã, eu era frequentemente retratado como um dos “rapazes de Merkel”. A Der Spiegel uma vez escreveu que éramos “o grupo de rapazes” dela [encolhe os ombros].
E isso não é uma ofensa para si?
De todo. Tive muito orgulho em servir Angela Merkel. Uma grande chanceler e uma grande líder partidária. É só que esta é uma era que pode estar a chegar ao fim, com a subida ao poder dos sociais-democratas… Mas ainda não está nada fechado [risos]. É claro que estamos prontos, mas sabemos que a bola está claramente no campo do SPD agora. Dito isto, não falámos ainda sobre a China…
“Teria feito sentido incluir a França no AUKUS”
Aproveitemos a oportunidade então.
Eu diria que para lidar com a China o mais importante são os quatro Cs: cooperar quando possível, competir onde for possível, confrontar e conter quando necessário. A China é muitas coisas ao mesmo tempo: um concorrente económico, um potencial parceiro em desafios globais como as alterações climáticas, mas claro que também é um rival sistémico. Do qual temos visões opostas em relação a direitos humanos e de minorias, ao Estado de Direito, Taiwan, Hong Kong, Xinjiang, Mar do Sul… Portanto, precisamos de uma atitude multi-facetada. Não temos a mesma opinião que os americanos a 100%, mas…
O que separa a UE dos EUA, em relação à China?
A integração económica. Quer dizer, nós temos muito mais comércio com a China…
Portanto, precisamos mais dela do que os norte-americanos precisam, é isso?
Somos um mercado interessante para os chineses, mas a China também é um mercado interessante para nós. Digo sempre que, como europeus, temos de ser pragmáticos ao lidar com a China, mas manter princípios. Acho que, em vez de nos queixarmos das atividades chinesas, devemos criar as nossas próprias ideias de alternativas credíveis a coisas como a Nova Rota da Seda. Foi por isso que aplaudi esta ideia da Estratégia de Ligação entre a Europa e a China e apoio a iniciativa de Borrell de nos tornarmos mais ativos no Indo-Pacífico. Há ali muitos países semelhantes a nós: a Nova Zelândia, a Austrália, o Japão, a Coreia do Sul, a Índia, a Indonésia. Têm visões semelhantes à do Ocidente no que diz respeito à democracia, Estado de Direito e direitos humanos. Por isso, precisamos de mais atividade da Europa naquela região.
Sendo assim, não é ainda mais estranho que a Europa não tenha sido incluída no AUKUS?
Uma coisa é formar uma aliança, outra é a forma como essa aliança é comunicada. Acho que teria sido justo que os aliados da NATO e a UE tivessem sido informados. Se olharmos para o mapa, os EUA, o Reino Unido e a Austrália pertencem todos à [aliança] Five Eyes… Mas a França também é uma nação do Pacífico, tem mais de 5 milhões de cidadãos naquela região, nos territórios da Polinésia, da Nova Caledónia, etc. Não estou em posição de julgar como é que esta decisão foi tomada, mas acho que teria feito sentido incluir a França.
Parece que voltámos ao início da nossa conversa: a UE anda algo arredada da relação transatlântica…
Sim, e por isso digo que temos de nos tornar mais europeus para continuarmos a ser transatlânticos. Mas, no fundo, não é apenas [responsabilidade] do Parlamento Europeu e da Comissão. Os Estados-membros têm de estar prontos, não podemos continuar assim. Em alemão temos uma palavra, sonntagsfrage, semelhante à expressão inglesa de soapbox speeches: descreve aquilo que os políticos dizem a um domingo e depois fazem diferente a uma segunda-feira. Aquilo que vejo é que ao domingo muitos políticos dizem “Precisamos de uma política mais eficaz e forte na segurança e nas relações externas”. Mas depois chegam ao Conselho Europeu na segunda-feira e voltam a andar às turras. Para mim, o ponto mais baixo foi quando acordámos todos as sanções contra a ditadura de Lukashenko na Bielorrússia, mas demorámos semanas a fechar o acordo porque um Estado-membro [Chipre] queria juntar sanções à Turquia no pacote… Se continuarmos assim, não estamos a corresponder às expectativas. É por isso que a Alemanha defende que devíamos introduzir a decisão por maioria qualificada nas questões de relações externas. Devemos pelo menos aplicar isto nos campos em que os tratados o permitem: em sanções ou em formas de lidar com violações de direitos humanos.
Caso contrário, a UE está condenada a um bloqueio eterno nestes temas?
Demora tanto tempo! Somos 27 e um sozinho pode bloquear tudo… Deixem que se use esta ferramenta. Nestes tempos geopoliticamente incertos, no século XXI, em que precisamos de reagir rapidamente e conseguir estar ao mesmo nível de outros atores globais, não podemos continuar assim. Por isso, o que desejo ao nosso alto-representante [Borrell] é sagacidade. E nervos de aço.
O Observador viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu