Quem não fica de coração apertado, com lágrima nostálgica, quando recorda “Ficarei” d’Os Anjos ou até “Toda a razão de viver” dos intemporais Miguel e André não terá um lugar à sua espera no céu. Que isto fique claro. A canção romântica é uma das grandes bandeiras da música nacional — caramba, da música, ponto. E eis que uma nova dupla, David & Miguel — David Bruno aka dB, meia parte do Conjunto Corona, e Miguel Caixeiro aka Mike El Nite —, vem revitalizar uma herança tão pesada, com um pingo de novos tempos. Palavras Cruzadas é o nome do disco que a concretiza, espécie de guia turístico romantizado, e que será editado esta sexta-feira, dia 23 de abril, com respetiva apresentação dia 13 de maio, no Tivoli BBVA, em Lisboa
A porta de entrada no disco faz-se por Areinho, Arouca, nos “Passadiços do Paiva”, uma balada roqueira e romântica onde se recordam amassos atrás de cascatas e a roupa encharcada. Provavelmente, seria de esperar que a dupla tivesse feito uma tour site-specific pelo monumento do turismo nacional e daí tivesse ressaltado a inspiração para tal tema, mas a história não é bem essa: “Nasceu por causa de uns passadiços mais pobrezinhos que existem em Canidelo, Gaia. Estava a dar um passeio perto de Canidelo e tem lá uns passadiçozinhos e começou a chover saraiva, isto na altura do confinamento, foi o primeiro passeio que dei e lembrei-me ‘fogo, isto parece os Passadiços do Paiva’, saraiva, imaginei, e nasceu assim, sem nunca lá ter ido, é um produto da imaginação”, garante David Bruno.
Depois do granizo, veio o refrão:
“Passadiços do Paiva
Do céu caem trombadas de saraiva
São pedregulhos, bolas brancas, naftalina
Como é bela a natureza e me fascina”
O passo seguinte foi encontrar um sample que suportasse essa ideia de balada roqueira — onde contam com a preciosa ajuda de Marco Duarte na guitarra (guitarrista barcelense colaborador de projetos como David Bruno, Bruno de Seda, e ainda membro de Suave Geração) — que logo os fez imaginar “aquela cena do gajo a cantar no Grand Canyon e os falcões a passar e o casaco à cowboy, é um tributo à natureza portuguesa”, esclarece Caixeiro. No fundo, “Passadiços do Paiva” é uma canção para um vale, para ecos infinitos e mergulhos imaginados.
Agora talvez faça sentido recuar. Esta dupla não veio casualmente de uma nascente refundida qualquer, não caiu de um limoeiro, plantou-se algures em 2014, quando se conheceram no Plano B, Porto, num concerto de Da Chick. David convidou Miguel para participar no primeiro disco do Conjunto Corona: Lo-Fi Hipster Sheat, onde cantou “Volta com o meu chapéu”. Em 2016, quando o grupo portuense lançou o seu terceiro disco (Cimo de Vila Velvet Cantina), Mike El Nite voltaria a estar presente, em “Meio Crocodilo”, onde também participava Fred&Barra. Mais recentemente, em 2019, no disco a solo de David Bruno, Miramar Confidencial, Caixeiro faria parte do hit “Interveniente Acidental”. E aí ficou a promessa de um dia passarem mais tempos juntos, jura que afinal se revelaria bem mais próxima de concretizar do que ambos poderiam pensar.
“Basicamente, mudei-me para o Porto. E assim que cheguei quis falar com toda a gente que conhecia, mas já tinha esta ideia, já tínhamos falado depois de fazer o ‘Interveniente Acidental’ que um dia faríamos algo mais extenso os dois, só que a distância geográfica não permitia aquela proximidade que é preciso para começar um projeto. Então chegando ao Porto, foi: ‘Olha, estou aqui, vamos trabalhar?’. E começámos a discutir ideias. O que começou por ser uma coisa depois foi-se moldando até chegar a esta coisa do dueto romântica e da música romântica anos 80, anos 90”, explica Nite.
“A dupla mais desejada de Portugal a seguir ao queijo e marmelada”, como os próprios se definem — e a nós cabe-nos lamentar e enviar desde já um abraço ao requeijão e ao doce de abóbora — assumem que o conceito deu umas voltas até chegar aqui. “A primeira ideia que apresentei ao David era diferente. Era um camionista que ao andar pelo país e pela estrada se ia apaixonando por várias mulheres. Depois a coisa evoluiu para histórias de amor, amores, desamores, em vários sítios do país, e acabaram por ser sítios que remetiam para férias, para verão, essa coisa dos amores de férias, e depois a ideia das palavras cruzadas que é um passatempo que se faz no verão, e a cena de estarmos a cruzar as nossas ideias… Acabou por se conjugar muito melhor e ser muito mais fluído e aberto para trabalhar do que uma coisa tão fechada”, enquadra Caixeiro.
Mas que se entenda que David e Miguel são duas personagens distintas, isto é, ocupam lugares diferentes na dupla. Quando confrontados com as comparações evidentes aos Anjos e a Miguel e André, isto é, quando lhes perguntámos quem era o Sérgio e quem era o Nélson, David Bruno apressa-se a dizer que é preciso saber distinguir as águas: “Aqui é lógica é outra. É o bom e o mau, o amante bom e o amante mau, o magoado e o que não quer saber, que só quer dar umas voltas. Eu sou o mau e o Mike é o bom. Portanto, acho que Os Anjos são os dois bons.”
Lógica que Miguel Caixeiro reitera: “Normalmente não há essa dinâmica do bom e do mau, mas aqui quisemos dar essa dinâmica do um é o pintarolas e o outro é o gajo que vai chorar para casa, está sempre a falar de amor de uma forma saudosista, partiste-me o coração e o outro não quer saber, só quer ir buscá-la de carro e siga. Antigamente era mais difícil teres assim uma coisa mais polarizada, agora até convém, mais cores no espectro, antes era aquela coisa do isto é romântico, é mesmo romântico, são os dois uns queridos.”
Quanto ao processo de criação de disco, o trabalho decorreu como costuma acontecer nos discos de David Bruno: primeiro o conceito, depois a pesquisa por samples e depois ainda as letras. “Os samples utilizados são muito do universo romântico, latino, sobretudo mexicano, aqueles cantores que foram as grandes inspirações do Tony Carreira, há por aqui músicas muito parecidas e tudo. E depois de termos criado esse universo de sampling é que começámos a criar estas histórias. Como estávamos juntos, as letras foram muito interativas e foram escritas quase ao mesmo tempo, se pensarmos no “Inatel”, aquela cena das respostas, por exemplo. E se agora falássemos sobre hotéis? Ir à net, procurar, não podemos sair de casa, mas podemos ir comprovar alguns factos para não dizer muitas asneiras. E começámos a compor as letras assim, em estúdio”, afirma David.
“Inatel” foi o primeiro single de Palavras Cruzadas e é, sem dúvida, um dos seus momentos mais esplendorosos. Começa assim:
“Vou-te levar ao Inatel
No meu Ford Fiesta, bo tem mel
Regularizo as cotas só por ti
Meia pensão, suco de abacaxi”
Uma canção que traz para a mesa a incursão tão típica a sul, a terras algarvias, no verão português. E o teledisco é do mais fiel possível: jornal junto à piscina (quando não é o último livro de Dan Brown), mais cocktail, ténis depois do almoço. E a certa altura da canção fazem uma enumeração de hotéis algarvios (que de uma forma ou de outra são concorrentes do Inatel Albufeira onde gravaram o teledisco) à qual vão acrescentando “c’est pas bon”. Será que hipotecaram as possibilidades de férias nessas estâncias?
“Acho que é o oposto, eles vão querer, fizeste para o Inatel anda fazer para mim”, garante David Bruno. E Caixeiro acrescenta: “Há aquela frase que diz: toda a publicidade é boa. Acho que é por aí. De qualquer forma, toda a gente percebe que é uma brincadeira. O próprio Inatel estava reticente em dar o seu apoio devido a isso. Mas o processo até se fez bem. Descobrimos quem era a diretora de marketing do Inatel e aproximámo-nos com a ideia, a proposta esteve em debate dentro da estrutura do Inatel durante algum tempo e acabaram por aceitar e por nos disponibilizar o hotel para filmar. Obviamente que a responsabilidade de falar dos outros hotéis é toda nossa e não do Inatel. É a nossa opinião.”
O disco vai avançando e chegamos à quinta canção e em vez de um hotel, temos um motel. Mais precisamente uma homenagem ao famoso H2ON, em Frielas/Loures, um tema para ouvir embrenhado em lençóis e de preferência acompanhado. Sucede-lhe “Marquito”, um instrumental que é o momento de brilharete para o guitarrista Marco Duarte fazer o que melhor sabe e que, garantem, promete ser um sucesso ao vivo.
Quanto mais chegamos perto do final do disco, mais se evidencia a dimensão latina de que David Bruno falava. “Amor Pago” e “Rosa” são exemplos óbvios. E isso não está exposto apenas no instrumental, mas também na interpretação de Miguel Caixeiro, que por vezes até se confunde, embora que erradamente, como o próprio nos diz, com uma aproximação ao fado: “Quis ir mais para o dramático e para o latino do que para o fado, mas quando juntas língua portuguesa e drama, isso é igual a fado, portanto percebo essa referência. Mas a nossa ideia está mais próxima daqueles cantores sofridíssimos, quase que choram em palco, essas são mesmo as canções da chamada ‘dor de corno’, do gajo que quer estar com alguém, mas que não pode devido às circunstâncias. Havia muitos cantores à antiga que espelhavam isso na interpretação e eu quis experimentar isso, carregar o érre, quase a chorar na voz.”
Uma coisa é inegável, nunca Mike El Nite cantou tanto. E isso explica-se: é que isto não é Mike El Nite: “Sim, é verdade, mas aqui quis dar a parte mais rap ao David e eu vou interpretar um personagem, que é um cantor romântico, portanto não queria fazer rap, queria cantar baladas e isto é o Miguel da dupla David & Miguel e não o Mike El Nite.”
E será este o primeiro de muitos discos desta dupla? “Se deus quiser”, diz David Bruno. Que deus queira.