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Alessandro, Manfredo e Maurice não são os únicos surfistas a utilizar o parque de estacionamento de Ribeira d’Ilhas como balneário, mas dificilmente se passa por eles sem parar e olhar. A música alta, vinda do sujo carro branco, e as suas gargalhadas chamam a atenção até dos mais distraídos. Tudo isto enquanto tentam vestir o fato de surf — um dos italianos já vai na segunda tentativa — e passam wax (cera) nas pranchas. O ritual de preparação para a entrada na água começou e parece que ainda vai demorar.
Pela boa disposição e cumplicidade que demonstram, ninguém diria que se conheceram há apenas alguns dias, num surf camp na Ericeira. “Eu encontro sempre um holandês maluco quando vou acampar”, diz Alessandro, de 24 anos, entre risos, sobre Maurice, de 21 anos. As olheiras dos três amigos mostram que a noite anterior foi intensa e longa. Mas foi mais do que o ambiente de festa que os juntou.
O jovem holandês veio de carro com um grupo de amigos até à costa portuguesa para passar férias. Sendo o único surfista entre os amigos, rapidamente se juntou a Alessandro e Manfredo, que apanharam um avião de Itália para Portugal especificamente para fazer surf. Não é, contudo, a primeira vez dos italianos em Portugal. Alessandro esteve vários meses em Coimbra, a trabalho num projeto ligado a química, e até já fez surf nas praias de Lisboa e Aveiro. Manfredo, por sua vez, já tinha vindo passar férias a terras portugueses, mas não hesitou em regressar quando foi convidado pelo amigo para vir apanhar umas ondas portuguesas.
“Este é um dos melhores sítios para se fazer surf”, diz Alessandro ao Observador. E não é o único a achar isso.
A Ericeira é uma das mecas do surf em Portugal, especialmente desde que se tornou Reserva Mundial de Surf, em 2011. Ribeira d’Ilhas, que há 40 anos recebeu o primeiro campeonato nacional da modalidade e onde hoje em dia decorre uma das etapas do circuito nacional de surf, é uma das praias de eleição dos surfistas portugueses e estrangeiros. O corrupio de atletas, das mais variadas idades, a entrar e a sair da praia de fato e prancha em punho é prova disso, bem como as matrículas que se encontram no parque de estacionamento da praia e as diferentes línguas que se ouvem, desde espanhol, francês, alemão e inglês.
Já é perto da hora de almoço e muitos banhistas (e surfistas) aproveitam para fazer uma pausa. A esplanada do restaurante da praia está cheia e contam-se pelos dedos aqueles que não estão de casaco ou camisola — não é fácil aguentar o vento forte e frio que se faz sentir.
Daqui, quase não se ouve o mar. A banda sonora de fundo é produzida por crianças — que correm de um lado para o outro enquanto os pais aguardam pelas refeições — e pelas rodas de alguns skates e trotinetes a passar pelos piso de madeira.
Quem não parece estar incomodado com o barulho dos mais novos é um grupo de jovens surfistas, que se encontra deitado no chão da infraestrutura de apoio à praia. De olhos fechados, aproveitam as horas de sol intenso para dormir ou apenas para meditar sobre os feitos realizados dentro de água ao longo da manhã.
O movimento não é menor nas escolas de surf da praia. Há sempre alguém a chegar para devolver os fatos e as pranchas que alugaram ou para fazer perguntas sobre as aulas.
Ulisses Reis é um dos proprietários da Ericeira Blue Ocean School, uma das escolas de Ribeira d’Ilhas. Na Federação Portuguesa de Surf estão registadas 218 escolas, mas na realidade deverão rondar as 600, refere o presidente da Federação Portuguesa de Surf — em Mafra contam-se 29.
“Venho para cá desde 1978, na altura éramos 10 surfistas. Vínhamos para aqui três meses e fazíamos campismo selvagem”, recorda o surfista.
O surf levou-o para a Austrália, onde esteve emigrado 15 anos. Quando regressou a Portugal, em 2001, começou a dar aulas de surf através do surfcamp que existia na praia. “Era a época dos Morangos com Açúcar e só tínhamos 80 alunos, todos portugueses. Hoje em dia, 99% são estrangeiros.”
O negócio tem vindo a crescer de ano para ano, mas Ulisses Reis não prevê um futuro risonho. Além das três escolas que ali estão, há outras três com licença para levarem os alunos para Ribeira d’Ilhas. Sem falar nas pessoas que apenas alugam pranchas e fatos para surfar umas ondas e nos diferentes alojamentos locais que incluem no seu pack aulas de surf. “Não temos espaço no mar para tanta gente”, defende.
O surfista português Henrique Pyrrait queixa-se do mesmo. “Há pessoas a mais dentro de água, é uma grande confusão. Para além de não ser bom para o surf, até é perigoso”, confessa o surfista de 19 anos, acrescentando que as discussões entre surfistas na água são “diárias”.
Neco, como também é conhecido, começou a surfar com apenas cinco anos, “quase sempre” em Ribeira d’Ilhas, com o pai, José Maria Pyrrait, que é instrutor de surf e sócio de Ulisses Reis. E se, na altura, a praia se enchia de surfistas que viviam ali por perto, agora há “muito mais turistas que vêm fazer surf, mas não percebem o que estão a fazer”. “É uma diferença gigante”, acrescenta.
Tiago Vala, um dos donos do Ribeira d’Ilhas Restaurante e Bar, assume que o surf ajudou ao crescimento do negócio, mas não vive só disso. “O surf tem expressão no crescimento, mas só por si não torna o negócio sustentável”, argumenta o proprietário.
Esta praia, acrescenta, tem a particularidade de ser frequentada por pessoas jovens, muitas delas estrangeiras, o que permite que o restaurante funcione tanto no verão como no inverno. O mesmo não acontece noutras praias, como por exemplo a praia da Calada, para onde vão essencialmente famílias portuguesas durante as férias de verão. O negócio que Tiago lá tem está aberto todos os dias durante o verão, mas durante o inverno só durante os fins de semana.
O autarca de Mafra sublinha que o surf trouxe uma “mudança radical” na vila, em particular no que toca à sazonalidade. Isto é, a Ericeira deixou de ser uma vila piscatória, com atividade balnear e que vivia dos meses de verão. “Os dois meses e meio de atividade passaram a 10, 11 meses. À exceção de janeiro e fevereiro, as condições do mar para a prática de surf são boas”, explica Hélder Sousa Silva ao Observador.
O surf enquanto “estilo de vida” e que reduz o desemprego a quase zero
O impacto do surf na Ericeira faz-se sentir a vários níveis. Além dos inúmeros estrangeiros que circulam pela vila e arredores, existem diversas lojas ligadas à modalidade. Só no centro da vila, há uma Lightning Bolt na Praça da República — também conhecida por Praça do Jogo da Bola — e uma Billabong na rua Dr. Eduardo Burnay, a caminho da praça. Nessa mesma rua, há cerca de uma dezena de retratos de pessoas que se dedicam ao surf.
Encontrar um lugar vazio numa esplanada de um café ou restaurante, nesta altura do verão, é praticamente impossível. Estacionar o carro é outra aventura. Em todas as lojas da Praça da República é preciso ficar numa fila para se pagar um produto. Isto tudo não se deve exclusivamente ao surf, mas a modalidade potenciou e muito a pequena vila piscatória.
De acordo com o autarca de Mafra, a oferta de restaurante e bares “duplicou” e há alojamentos locais — surf camps, surf hostels e surf houses — espalhados um pouco por todo o lado, já para não falar nas empresas ligadas à modalidade que se instalaram no concelho. No concelho de Mafra, a taxa de desemprego é “residual, a tender para o zero”.
A Despomar, a maior empresa de surf em Portugal e que emprega 280 funcionários portugueses, tem sede na Ericeira. Pedro Soeiro Dias, diretor de marketing da empresa fundada em 1987 para representar a Billabong, sublinha o facto de o crescimento do surf não se traduzir num aumento de vendas para todas as marcas ligadas à modalidade.
“Como há mais pessoas interessadas em fazer surf, rapidamente se pensa que se vende mais, mas não é verdade. Em 2009 vendíamos muito mais algumas marcas do que hoje”, explica Pedro Soeiro Dias.
O distribuidor da Volcom em Portugal também destaca esta quebra nas vendas: “A quebra de vendas foi a partir de 2009/2010. 20% dos meus clientes fecharam e houve lojas que tiveram quebras de vendas na ordem dos 70%”. E avança com uma justificação: “O surf era mais do que um desporto, era um estilo de vida”.
Hélder Ferreira explica que, nos anos 80 e 90, o surf era um estilo de vida que “apelava aos jovens”, muito ligado à ideia transmitida pelos filmes americanos da época, em que o surfista era uma pessoa descontraída, que “passava os dias na praia”, bem parecida e com “um bronze durante o ano inteiro”.
Nessa altura, “era o surf que ditava a moda dos jovens”, levando-os a adquirir roupas de marcas ligadas ao desporto. Foram, aliás, várias as lojas de surf que abriram um pouco por todo o país à conta dessa procura — antes, estas roupas eram vendidas em lojas de desporto.
Um crescimento contínuo até 2007 e que se fez notar, particularmente, em 2009/2010 com a chegada da crise. “A crise provocou uma alteração nos hábitos de consumo“, considera Hélder Ferreira. A “geração dos Millenials”, que gastava dinheiro em roupas de marcas (nomeadamente as ligadas ao surf), passou a optar por marcas mais acessíveis. “As pessoas estabeleceram prioridades e passou a custar-lhes dar 25 euros por uma t-shirt, quando podem comprar uma por cinco.”
Com esta quebra de vendas, houve marcas que desapareceram e outras que foram compradas por empresas fora da indústria do surf. Foi o caso, por exemplo, da Vans e da Reef, que foram compradas pela VF Corporation, e da Hurley, que foi adquirida pela Nike.
Com o passar do tempo, este estilo de vida associado ao surf foi-se perdendo. O distribuidor da Volcom destaca o facto de, hoje em dia, nem sequer os surfistas manterem este lifestyle. “Há uns anos seria impensável ver um surfista a usar Nike. Só usava Vans ou DC. Nos dias que correm, não se vê outra coisa. O surf era um estilo de vida que fazia as pessoas sonhar, mas atualmente não é preciso sonhar para se ser surfista. Está acessível a todos.”
Hélder Ferreira recorda um slogan da Billabong dos anos 80, que dizia “only a surfer knows the feeling” (“só um surfista conhece a sensação”). “Atualmente, não é só um surfista que conhece esta sensação do que é surfar. Todos podem conhecer essa sensação. Foi algo que deixou de ser exclusivo e, como passou a ser banal, deixou de ser desejável.”
Pedro Soeiro Dias é da mesma opinião: “Uma coisa que era de nicho, e por isso inspiradora, deixou de o ser quando passou a ser global”. Mas se as vendas de vestuário estão em queda, o que continua a ter elevados valores de venda, contudo, são as pranchas e os fatos. “Nunca se venderam tantas pranchas como hoje”, diz Hélder Ferreira. “A verdade é que não é preciso mais nada para se fazer surf“, acrescenta Pedro Soeiro Dias.
Nick Urrichio, um dos primeiros shapers (pessoas que fazem pranchas à mão) em Portugal, confirma esta realidade. “Quando comecei fazíamos cinco a dez pranchas por mês e agora são entre quatro a cinco por dia”, refere o americano ao Observador.
Este surfista, natural da Califórnia, chegou a Portugal em 1978, depois de uma viagem de mochila às costas pela Europa. “Quando cheguei fui logo para Carcavelos e fiquei espantado com as ondas que havia”, conta o shaper ao Observador.
Nessa altura, teve de ir até França para comprar uma prancha e um fato, já que esses materiais não se vendiam em Portugal. “Eram os estrangeiros que vendiam as pranchas aos portugueses antes de regressar a casa“, acrescenta.
Ficou três meses a surfar as ondas portuguesas antes de regressar aos Estados Unidos. Outros três meses depois, estava de volta. No início da década de 80, conheceu António Pereira Caldas, que tinha ido a Inglaterra aprender a fazer pranchas, e os dois amigos abriram a Lipstick.
Em 1982, Nick mudou-se para a Ericeira e criou a Semente, com Miguel Katzenstein. Apesar de ter “as melhores ondas de Portugal”, o shaper admite que, na época, foi uma má decisão a nível de negócio: estavam longe da cidade, dos clientes e nem sequer tinham carro. “Era mais uma questão de lifestyle do que propriamente de negócio”, explica.
Anos mais tarde, contudo, acabou por ter sido a melhor das decisões. Nick produz as pranchas numa pequena casa em Ribamar e, a pouco metros, tem uma loja onde vende as pranchas que faz e outro tipo de materiais ligados à modalidade.
Mas “não é nenhum negócio de ouro”, garante. Há uma série de despesas com materiais, manutenção, limpezas, funcionários que têm de ser tidas em conta. Sem esquecer o trabalho físico inerente ao fabrico das pranchas. Nos dias que correm, ainda assim, a tecnologia facilita o trabalho. Nick faz o desenho das pranchas num programa de computador e cabe a uma máquina fazer o pré-corte das pranchas. O restante trabalho fica nas mãos do shaper, que é ajudado por backshapers — funcionário que dá forma às pranchas.
Todas as pranchas que saem da fábrica da Semente têm a assinatura de Nick Uricchio e são as pranchas de eleição de surfistas como Vasco Ribeiro, Nic Von Rupp e Camilla Kemp.
“Perdeu-se a essência”
Quem também optou por enveredar pelo negócio do surf e aproveitar onda do sucesso da modalidade na Ericeira foi o surfista Tiago “Saca” Pires. A lenda do surf nacional e o português que mais anos esteve no circuito mundial retirou-se dos palcos internacionais no ano passado, mas foi em 2011 que abriu a sua própria escola — Tiago Pires Surf School — e a sua loja — Boardriders Ericeira –, que inclui ainda um bar, atualmente com espetáculos todas as semanas, e um skatepark.
Até agora, o negócio tem-lhe corrido bem. “Estamos a viver um momento áureo em termos de economia”, defende o surfista ao Observador.
A loja tem registado um aumento de cerca de 10% todos os anos e as aulas estão cheias no verão — apesar de no inverno também haver boas ondas, acabam por ir às aulas os portugueses que já são acompanhados há algum tempo. “No verão há ondas mais baixas e isso promove muito as escolas. No inverno há ondas maiores e a qualidade dessas ondas ‘vende’ aos surfistas de nível médio e avançado”, explica Tiago Pires.
Mas há quem destaque alguns pontos negativos nesta abertura da Ericeira ao mundo graças ao surf. É o caso de Madalena Santos, que cresceu a passar férias na pequena vila e agora fala em “exagero”. “Perdeu-se a essência da Ericeira. Era uma vila muito tranquila, onde todos se conheciam, em que os cafés tinham pouca gente e facilmente se encontrava lugar para estacionar o carro”, conta a estagiária da Farmácia Caré, no centro da Ericeira, que há cerca de há um ano se mudou para a vila piscatória.
Já Paulo Mira, proprietário do Café Salvador, na Praça da República, considera que “os anos dourados” do surf fizeram sentir-se até há dois anos. Atualmente, o tipo de turista que vem até à Ericeira opta por alojamentos baratos e pouco consome nos cafés e restaurantes locais.
“São turistas que vão muito aos supermercados e que andam muito pela rua a meio da noite”, afirma Paulo Mira, acrescentando que tem havido “assaltos” e pequenos casos de “vandalismo” pela vila.
Também Miguel Jorge, funcionário há 30 anos no restaurante Pátio dos Marialvas, afirma que o turista que vem à Ericeira para praticar surf acaba por gastar mais em coisas ligadas à modalidade ou então vem com “tudo incluído”.
Ainda assim, destaca os benefícios do surf para a vila, em particular no inverno: “Hoje em dia há mais lojas, mais restaurantes e mais bares. Antigamente, dos dez restaurantes que havia na vila, cinco fechavam durante no inverno. Nessa altura, quase não se via ninguém na rua, agora está tudo aberto.”
Surf bate recordes de turismo em Peniche e Cascais
Francisco Spínola, representante da World Surf League (WSL) em Portugal e atual responsável pela organização das etapas internacionais de surf no país, argumenta precisamente o contrário: “Não existe o estereótipo do surfista. É, desde uma pessoa que dorme no carro, até ao executivo que trabalha em Londres e que, ao fim de semana, apanha um voo para Portugal para apanhar ondas”.
A verdade é que não são só os hostels e parques de campismo que estão completos na época de verão. Também os hotéis recebem muitos hóspedes surfistas, em particular durante as provas de surf. Além da Ericeira, também Peniche e Cascais notam grandes diferenças graças ao surf.
“Para Peniche e para a região oeste, há um antes e um depois de 2009“, disse o autarca António José Correia ao Observador. Tudo à conta da etapa do circuito mundial de surf que se realizou na cidade, pela primeira vez, há nove anos.
De ressalvar, contudo, que esta não foi a primeira etapa do circuito mundial a realizar-se em Portugal: a primeira foi em 1996 na Figueira da Foz. Já nessa altura, nomes como Kelly Slater — que foi eliminado na primeira ronda pelo português Bruno Charneca — e Sunny Garcia rumaram a Portugal para participar na etapa.
A prova, que tem lugar todo os anos em outubro na Praia dos Supertubos, foi uma grande ajuda para Peniche durante a crise financeira. “Entre 2010 e 2013, foi uma grande alavanca para esbater a redução de investimento”, conta o presidente da Câmara de Peniche.
Todos os anos, a ocupação hoteleira durante a prova é de 100%, mas não é só nesta altura que as praias de Peniche se enchem de surfistas e de turistas. Isso acontece durante quase todo o ano, graças à “configuração peninsular” portuguesa, cujas ondas e vento permitem a prática de surf ao longo de doze meses, o que se traduziu num “forte esbatimento” da sazonalidade, explica o autarca de Peniche. Não é à toa, aliás, que um dos quatro Centros de Alto Rendimento de Surf localiza-se nesta cidade — os restantes estão em Viana do Castelo, Aveiro e Nazaré.
A forte procura por parte dos turistas ao longo de todo o ano potenciou também os alojamentos locais, tanto que a câmara até criou uma equipa só para monitorizar estes estabelecimentos. António José Correia sublinha ainda o papel importante dos hostels no que toca à reabilitação urbana da cidade, a inauguração, no mês de junho, do Bukubaki Eco Surf Resort, um resort surfista e ecológico de duas italianas e o novo parque de campismo que deverá abrir em Ferrel este mês.
Também em Cascais o sucesso do surf faz-se sentir um pouco por todo o concelho: “De ano para ano temos vindo a bater recordes de turismo em Cascais e isso tem repercussões a nível de consumo”, afirma o presidente da Câmara, Carlos Carreiras, ao Observador, acrescentando que este foi “o primeiro local onde se praticou surf em Portugal”.
Mas estas provas, mais do que um custo e um retorno financeiro para o município, projetam o concelho a nível internacional, especialmente porque trazem atletas de todo o mundo às praias de Carcavelos e do Guincho. Já para não falar nos “campeões da casa” como Frederico Morais, Vasco Ribeiro e Teresa Bonvalot, cujos feitos lá fora levam Cascais aos sete cantos do planeta.
O facto de se tratar de um desporto praticado no concelho, ao longo de todo o ano, graças “às boas condições do litoral”, levou a que empresas ligadas ao desporto ali se instalassem. É o caso, por exemplo, da Xhapeland e da Polen Surfboard. A autarquia fala mesmo num “tecido empresarial jovem e empreendedor que faz com que o segmento viva o ano inteiro”.
Ainda assim, o Turismo de Portugal diz que não existem dados estatísticos relativamente ao peso do surf na atividade turística. Em 2012, a Associação Nacional de Surfistas — que comemora 20 anos de existência — avançava que o impacto do surf em Portugal era de 400 milhões de euros, mas este valor atualmente será bem superior e deverá aumentar ainda mais, depois de Frederico ‘Kikas’ Morais ter conquistado o segundo lugar numa etapa do circuito mundial de surf.
Nazaré e o nicho das ondas grandes
A Nazaré não perdeu a sua característica arquitetónica de vila à beira-mar nem a sua população mais típica — as varinas e os pescadores –, mas não há dúvidas de que o sucesso das ondas grandes deu-lhe um toque mais internacional e veio quebrar a sazonalidade.
Ainda que o verão continue a ser o “core business” da Nazaré, há movimento na vila durante quase todos os meses do ano. Ouvir-se falar inglês ou francês nos cafés e nos restaurantes, mesmo durante o inverno, não é inédito. E não são apenas turistas vindos, por exemplo, do Havai, Nova Zelândia e Austrália.
“A Nazaré passou a ter uma comunidade estrangeira residente, particularmente franceses e belgas, que aqui vivem pelo menos seis meses”, explica o presidente da câmara Walter Chicharro.
A maior vaga de turistas chegou à vila no inverno de 2014/2015, muito graças ao feito do surfista Garrett McNamara que, em 2011, bateu o recorde do mundo da maior onda alguma vez surfada: 30 metros — recorde entretanto batido em 2015, pelo francês Benjamin Sanchis, que surfou uma onda de 33 metros, novamente na Nazaré.
Algo que foi ainda mais potenciado com a chegada do Nazaré Challenge à Praia do Norte, em 2016. “Ter a Nazaré projetada no mundo permite que tudo o resto associado à vila seja conhecido e potenciado durante o resto do ano.”, refere o autarca.
O fenómeno em torno das ondas grandes refletiu-se, em particular, a nível da restauração, hotelaria, comércio e serviços. A restauração e a hotelaria passaram dos três meses de funcionamento associado à época balnear para nove a dez meses.
De acordo com Walter Chicharro, a taxa de ocupação da hotelaria “aumentou largamente nos últimos três anos” e os restaurantes “mais bem sucedidos” tiveram um aumento de 20 a 50% na faturação entre 2014 e 2017.
E já há planos para potenciar estes negócios. Este ano, terá início a construção de um novo hotel na vila, que terá 150 quartos e 30 apartamentos. Sem esquecer os vários apartamentos da Nazaré, que hoje em dia são alugados aos turistas estrangeiros.
Além do investimento financeiro — só na prova são 100 mil euros –, a autarquia disponibiliza um vasto “apoio logístico” aos surfistas: desde nadadores salvadores a ambulâncias, bombeiros, funcionários e viaturas da câmara na praia para prestarem apoio aos atletas.
Ainda nos dias de hoje, Garrett McNamara continua a ser o embaixador das ondas grandes portuguesas. Chegou mesmo a ser protagonista de um projeto online do Turismo de Portugal de promoção do surf em Portugal.
Já se passaram seis anos desde que surfou a onda que o tornou uma celebridade em Portugal e atualmente, o americano já faz parte da casa. Numa entrevista ao Observador em abril, a propósito da sua autobiografia, garante que vive bem com o “amor” que as pessoas lhe transmitem quando anda pelas ruas da vila portuguesa.
Diz que já se sente “um bocado português” e até estava a ponderar pedir a nacionalidade. Provavelmente é só mesmo isso que lhe falta. Com tantas ondas grandes surfadas em Portugal, até o sangue que lhe corre nas veias já deve ter uma pitada de sal nazareno.
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De rejeitados a heróis nacionais: a história do surf em Portugal
Se atualmente os surfistas são vistos quase como heróis nacionais, o mesmo não acontecia há cerca de 30 anos. Ir até à Costa da Caparica de autocarro com uma prancha de surf, por exemplo, podia ser um desafio. João Antunes lembra-se bem dessa época, em que ia com um grupo de amigos dos Olivais até ao Areeiro e depois daí, na rodoviária até às praias.
“Era um problema viajar com as pranchas. Havia condutores que não as aceitavam nos autocarros”, conta o surfista, atualmente com 47 anos, ao Observador. Sem falar nas bocas que ouviam durante a viagem, muito à conta do cabelo aclarado pelo sol.
Desde então passaram 30 anos. João Antunes, juntamente com outros nomes como José Gregório e Patrícia Lopes, fez parte da primeira geração de surfistas que, em finais dos anos 80 e início dos anos 90, deu o pontapé de saída para o desporto.
Foram eles que tiveram de enfrentar o estigma da sociedade portuguesa, explica Francisco Rodrigues, presidente da Associação Nacional de Surfistas. Na época, olhava-se com alguma estranheza para as pessoas que passavam tanto tempo na praia. “Chamavam-nos ratos de praia. Éramos vistos como pessoas que não faziam nada, só por irmos para a praia nos tempos livres para praticar“, diz o surfista.
Nada disso, contudo, impediu João Antunes de seguir o seu percurso. Ainda hoje se lembra da primeira vez que viu alguém a surfar. Tinha 10 anos. “Fiquei apaixonado. Já gostava imenso do mar e andava constantemente com colchões a fazer carreirinhos nas ondas. Quando vi o Nuno Jonet em pé numa prancha fiquei fascinado com a sensação que aquilo devia proporcionar”, conta o surfista, atualmente com 47 anos, ao Observador.
A primeira prancha que teve era de esferovite. Só aos 11 anos é que adquiriu a primeira prancha ‘a sério’, num pequeno stand da Semente na FIL. Na época, pouco se falava de surf e não havia sequer aulas. “O filme Big Wednesday era a nossa formação, onde aprendíamos as posições e as manobras”, afirma o surfista.
Ao longo da sua carreira, João Antunes foi tricampeão nacional, várias vezes vice-campeão europeu — numa altura em que ainda havia campeonato europeu — e até esteve no circuito mundial de surf. Só em 2010 é que se retirou do circuito nacional a tempo.
A segunda geração de surfistas portugueses chega a partir da década de 90, em que já existia a Federação Portuguesa de Surf (fundada em 1989) e a SIC começa a transmitir o mítico programa Portugal Radical (1992), muito focado na modalidade. Nesta altura, a “barreira da sociedade portuguesa” já está ultrapassada, mas é necessário “criar a estrutura do desporto em Portugal” de uma forma “sólida”, explica o presidente da Associação Nacional de Surfistas.
Isto é feito com os surfistas desta época, que decidem pelas diferentes áreas do desporto, permitindo o desenvolvimento da modalidade nas suas mais variadas vertentes. Tiago Pires (também conhecido como Saca), por exemplo, fez carreira no desporto, tendo sido o surfista português que mais anos esteve no circuito mundial. Francisco Spínola está ligado à realização dos eventos de surf em Portugal, enquanto Francisco Rodrigues enveredou pelo lado mais institucional, tornando-se presidente da Associação Nacional de Surfistas.
A terceira geração chega num “ponto de viragem”: o ano de 2009. As atenções viram-se para o surf graças a dois fatores. O primeiro foi a realização de uma prova do circuito mundial do surf em Peniche. Graças ao seu enorme “sucesso”, a prova que era móvel — isto é, todos os anos realizava-se num local diferente — passou a ser “residente” em Portugal até aos dias de hoje.
Francisco Spínola foi o principal responsável pela organização do evento. Na altura, era diretor de marketing da Rip Curl e foi ele quem propôs à Rip Curl Internacional trazer a prova para terras lusas.
“A organização e as ondas foram tão boas que os surfistas gostaram e acabámos por ficar com uma licença permanente”, explica Francisco Spínola.
O primeiro evento da World Surf League — na altura Association of Surfing Professionals (ASP) — foi uma etapa do WQS em 1989. Atualmente, a WSL organiza em Portugal não só a etapa em Peniche, mas também provas do circuito mundial de juniores, provas do circuito de qualificação e ainda uma etapa do circuito de ondas grandes. Além da MEO Rip Curl Pro, só há mais uma prova do circuito mundial na Europa: em Landes, no sul de França (Quiksilver Pro France).
A crise económica foi o segundo fator: “Numa altura há uma crise muito profunda, há um reinventar do modelo económico em Portugal”. É nesta altura que as atenções se voltam para o mar e para os seus recursos — “o surf tem uma grande participação neste processo”. Francisco Rodrigues considera que, quando Portugal entrou para a União Europeia, “virou as costas ao mar” e esqueceu-se que, no passado, “foi no mar que teve um grande sucesso”.
O sucesso da prova em Peniche e o “novo modelo económico”, combinado com a carreira internacional de Tiago Pires, foram o empurrão que o surf precisava em Portugal.
A quarta geração chega agora. “É a primeira geração que tem, desde o início, toda uma estrutura à sua disposição”, defende Francisco Rodrigues.
Uma geração de surfistas que beneficia também do sucesso que a modalidade está a ter em Portugal, o que lhes “abre muitas portas”. É também a geração que é filha dos primeiros surfistas portugueses, como é o caso de Afonso Antunes, filho de João Antunes, atualmente com 13 anos.
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João Antunes assume que o filho tem agora mais oportunidades e condições para praticar a modalidade. “Ele faz tudo mais cedo e é mais orientado. Eu não tinha um pai que me transmitia certas informações como eu faço”, acrescenta o ex-tricampeão nacional e formador de Afonso Antunes.
É também o caso de Frederico Morais (também conhecido por Kikas), cuja família, apesar de não ter “raiz no surf”, está muito ligada ao desporto em geral — Tomaz Morais, ex-selecionador nacional de râguebi, é tio de Frederico.
Francisco Spínola também destaca este fator na carreira de Kikas. Ressalva, contudo, que o seu sucesso é, acima de tudo, fruto de um trabalho que tem vindo a fazer desde os seus 11 anos, da sua “capacidade de sofrimento e capacidade atlética invejável”. “Ele é um produto desportivo puro”, afirma o representante da WSL.
De Portugal para o mundo: as provas internacionais em praias portuguesas
Para o representante da WSL em Portugal, a realização de provas dos circuitos internacionais em Portugal também contribuiu para o sucesso do surf e dos atletas portugueses a nível internacional.
Estas etapas “em casa” dão aos atletas a possibilidade de “experimentar” e de estar em contacto com o modo como funcionam os campeonatos internacionais. Além de que é vantajoso não só a nível financeiro, mas também mais confortável para o atleta.
E há ainda outra vantagem. Como estes surfistas estão ‘a jogar em casa’, têm um “maior conhecimento do mar e das ondas”, o que lhes permite “amealhar pontos” para outras etapas do circuito. Já para não falar do apoio que recebem do público, motivando-os ainda mais .
“A organização destes eventos permitiu aos atletas portugueses chegar aos palcos do surf sem que isso seja novo para eles. Desde muito cedo têm acesso ao melhor do que há no surf, mesmo à porta de casa”, diz Francisco Spínola.
Frederico Morais é (novamente) exemplo disso. “Toda a gente diz que o Kikas não parece um rookie a competir. A verdade é que ele teve vários ‘wild card’ [convites] para participar na prova de Peniche. Até eliminou o Kelly Slater”, recorda Francisco Spínola.
Mas o surf em Portugal não se faz apenas de profissionais. Em declarações ao Observador, João Aranha, presidente da Federação Portuguesa de Surf, refere que, em 2014, estimava-se que havia 150 mil praticantes de surf — número que terá aumentado até aos dias de hoje e que irá crescer certamente com o 2.º lugar de Frederico Morais numa das etapas do circuito mundial.
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Os surfistas nacionais da quarta geração
Frederico Morais: o atleta de 25 anos ficou em segundo lugar na etapa Corona Open J-Bay, na África do Sul, do WCT. O futuro será com certeza sorridente para Kikas. Fique a saber mais sobre o surfista de Cascais.
Vasco Ribeiro: o surfista de 22 anos tornou-se conhecido do grande público depois de, em 2014, ter arrecadado os títulos de campeão nacional, campeão europeu de júnior e campeão mundial júnior. O próximo passo é chegar ao circuito mundial.
Pedro Henrique: o surfista luso-brasileiro, de 35 anos, começou a usar a camisola portuguesa em 2015 e os títulos não tardaram: foi campeão europeu no mesmo ano e campeão nacional em 2016. Tem agora a possibilidade de regressar ao WCT, onde já competiu com as cores brasileiras.
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Teresa Bonvalot: atualmente com 17 anos, a surfista de Cascais começou participar em provas internacionais quando tinha 13 anos. Em 2014 sagrou-se campeã nacional e, este ano, sagrou-se bicampeã europeia júnior (2016 e 2017). É presença regular na etapa de Cascais do WCT feminino.
Mais um título europeu. Surfista Teresa Bonvalot é campeã de juniores
Carol Henrique: o surf parece estar no sangue desta luso-brasileira de 22 anos. A irmã de Pedro Henrique foi campeã nacional em 2016 e, em abril, venceu a etapa do WQS no País Basco.
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Camilla Kemp (21 anos): a surfista do Guincho, atualmente com 21 anos, há muito que chega ao pódio nacional: foi vice-campeã nacional em 2013, 2015, 2016 e 2017. Este ano, foi a segunda classificada na prova do WQS na África do Sul.
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Nas ondas grandes, destaque para Nicolau Von Rupp (26 anos). Este surfista da Praia Grande, filho de um alemão e de uma portuguesa, é considerado um dos melhores big wave riders, mas também dá cartas nas ondas ‘normais’. Em 2015 sagrou-se vice-campeão do mundo.
Nicolau Von Rupp: “Só agora temos a primeira geração de pai surfista, filho surfista”
Apesar de não ser um surfista da quarta geração, é importante mencionar Tiago Pires. Foi o surfista português que mais tempo esteve no circuito mundial (sete anos, entre 2008 e 2014) e que abriu portas para todos os nomes acima referidos. Anunciou o fim da sua carreira em 2016, mas continua a participar em campeonatos — este ano, venceu a etapa da Liga MEO Surf do circuito nacional, na Ericeira. Atualmente, está também a trabalhar como “mentor” de Vasco Ribeiro, um atleta que considera ter “muito potencial” e quer levar até ao WCT.
Tiago Pires: “Ninguém surfa em Portugal com o mesmo peso às costas que eu”