“Aos 12 anos, já tinha violado duas raparigas, de 9 e 10 anos”
As palavras são de um ex-membro de um grupo rebelde da República Democrática do Congo e surgem num grande documentário de 2015 sobre a violência sexual que, ao invés de se debruçar apenas sobre os depoimentos das vítimas, pôs as experiências dos homens e rapazes agressores sob os holofotes.
Com o Prémio Nobel da Paz a ser atribuído a Denis Mukwege, um médico que passou grande parte da sua vida a ajudar vítimas de violência sexual na República Democrática do Congo, o mundo voltou a olhar para o país que já foi descrito pela Organização das Nações Unidas como a capital mundial das violações. Há poucos anos, um estudo divulgava que, a cada hora, 48 mulheres eram violadas na região. Isto, em pleno conflito. Desde 1998, mais de seis milhões de pessoas foram mortas numa guerra que perdura entre dezenas de grupos de rebeldes e o exército.
Foi em 2012 que Dearbhla Glynn foi ao Congo pela primeira vez, já depois de ter feito filmes na Palestina, no Iraque, na Libéria, na Guiné e na Costa do Marfim. “War Against Women in Eastern Congo” nasce três anos depois. “É um filme difícil de ver”, confessa a realizadora irlandesa de 43 anos, que foi sozinha, sem medo e de câmara em riste, para o olho do furacão. Neste sábado, vai ser exibido pela primeira vez em Portugal, às 17h na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. O Observador falou com a realizadora irlandesa.
Quando é que se começou a interessar mais por direitos humanos e conflitos?
Quando fui pela primeira vez a África, em 2005, queria fazer um filme positivo que celebrasse a cultura e a riqueza, porque sentia que naquela altura a maior parte dos filmes destacavam apenas os aspetos negativos do continente. Fizemos um belo filme sobre música no Mali. Depois disso, quis mesmo ir a Gaza. Sempre me interessei por direitos humanos, mas acho que foi quando fui pela primeira vez a Gaza, em 2009, e vi o que estava a acontecer, que me comprometi a chamar atenção para os direitos das mulheres e crianças nos conflitos. Queria dar a conhecer histórias de pessoas que nunca seriam ouvidas de outra forma.
O seu documentário destaca-se por dar a conhecer não só o lado das vítimas de violência sexual, mas também a experiência dos agressores. Porque é que achou que era importante fazê-lo?
Em 2010, enquanto fazia um um mestrado em Desenvolvimento, comecei a ler sobre os números elevados de violações que chegavam do Congo. Mas não conseguia encontrar nenhuma pesquisa, nenhum diálogo com os homens – o foco era sempre nas mulheres sobreviventes. E eu queria entender o porquê de estes homens estarem a violar mulheres, crianças, idosas – porque, para mim, isso não é próprio de alguém que está mentalmente saudável. A um certo nível, acho que estes homens e rapazes são, também eles, vítimas da guerra. Foram expostos à violência desde tenra idade, muitos deles foram crianças-soldado, rebeldes, e foram forçados a matar desde muito novos. E a violação fazia parte dessa cultura. Não estou a desculpá-los, mas acho que eles são um resultado do ciclo de violência. Muitos dos homens com os quais falei, que violaram várias mulheres, disseram-me que nem sabiam que estavam a fazer algo de errado. E quem somos nós para dizer o que eles sabiam ou não? O que é preciso é educar as pessoas. No Congo, é preciso pagar para ir à escola, é um país muito privatizado, precisas de dinheiro para tudo. Muitos destes rapazes não foram à escola, não tinham família, cresceram em campos de refugiados, estavam vulneráveis. É por isso que os líderes dos grupos rebeldes raptam crianças bem novas – porque elas são fáceis de manipular.
[Além de “War Against Women in Eastern Congo”, Dearbhla Glynn realizou curtas-metragens sobre o mesmo tema. Esta é uma delas:]
Que testemunho a tocou mais?
É difícil dizer. Eu entrevistei muitos agressores, muitos homens que admitiram que violaram. E é sempre estranho ouvires alguém a dizer-te que já perdeu a conta de quantas mulheres já violou. Um homem, que me pareceu muito bondoso quando o conheci, contou-me que violou mais de 50 mulheres e que as espancou. E é igualmente chocante ouvir uma mulher a contar a sua história de violação, ouvi-la dizer que os filhos também foram violados ou mortos. Não entendo como é que alguém consegue continuar a viver com tanta dignidade e força como aquelas mulheres.
Até porque, no Congo, acredita-se que quando uma mulher é violada perde todo o valor. É rejeitada pela família e pode mesmo a chegar a ser expulsa da aldeia. Conheceu mulheres sem esperança, com pensamentos suicidas.
Foi horrível. Conheci raparigas que foram violadas e as famílias estavam chateadas com elas. Diziam-lhes “porque é que não fugiste, porque é que não correste?”. Como se a culpa fosse delas. É trágico. Elas têm de lidar com a violação, uma possível gravidez e com o facto de terem perdido todo o valor para a sociedade – quem é que vai querer casar com elas agora? Mas tenho de o dizer: há imensas mulheres cheias de esperança, incrivelmente resilientes e fortes.
Em particular, a Mama Masika – que foi violada depois de terem torturado e matado o marido e que acabou a gerir um “espaço seguro” para as mulheres – é um grande exemplo dessa força.
Na verdade, ela voltou a ser violada depois da realização do documentário e, infelizmente, morreu recentemente de malária. Mas eu estive em contacto com ela, trabalhei com ela e cheguei a levá-la à Irlanda, para uma conferência de “ativistas na linha da frente”. Ela era uma mulher incrivelmente forte e manifestou-se imenso contra a violência sexual. Fez um excelente trabalho.
Um dos momentos mais chocantes do documentário é quando um coronel do exército conta que alguns líderes rebeldes seguiam indicações de feiticeiros…
Sim, o coronel Mamadou Ndala disse-me que havia um grupo rebelde que acreditava que, se os homens violassem uma menina virgem de 9 anos, as balas passar-lhes-iam ao lado. Mais uma vez, tudo se resume à falta de educação. Muitas pessoas ainda acreditam e seguem os conselhos dos feiticeiros. Não só no Congo, mas em toda a África.
Denis Mukwege e Nadia Murad. Nobel da Paz para ativistas contra violência sexual em conflitos
Em 2012, 126 mulheres e crianças foram violadas por soldados congoleses em Minova, numa só noite. Apenas dois foram condenados. Como é que, após isto, as mulheres podem acreditar na justiça?
Simplesmente não acreditam. Não há qualquer infraestrutura que funcione bem no Congo. Tudo é corrupto e todos os homens violam. As mulheres não confiam na polícia, não confiam no exército. A primeira vez que as pessoas acreditaram que o exército poderia trazer paz àquela região foi quando o coronel Mamadou Ndala estava à frente das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC). Ele disciplinava o exército, foi o primeiro a fazê-lo – se um dos seus soldados violasse uma mulher, era severamente punido. Eu falei com imensos homens das FARDC que pertenceram a grupos rebeldes e violaram imensas mulheres. Diga-se que FARDC não é um exército bem equipado, os homens não são bem pagos, não são protegidos, ao contrário do que acontece com o Exército Nacional, que é o exército do presidente Kabila. E acredita-se que o Kabila não quer que as FARDC sejam muito fortes, porque não quer que esse exército se levante contra ele. O coronel Mamadou era um excelente líder. Foi com ele a primeira vez que o exército ganhou uma guerra contra um grupo rebelde apoiado pela Ruanda. As pessoas estavam a gritar “Mamadou para presidente”. Duas semanas depois foi morto.
Já disse que “as violações e as mortes perduram há tanto tempo que já nem são notícia”. E a verdade é que ouvimos falar da Síria, de Gaza. Mas há um silêncio geral quanto ao que se passa no Congo.
A África Subsariana tem sempre menos cobertura. E essa foi a minha maior dificuldade. Quando estava lá, presenciei o massacre de Beni e tentei imenso que a história fosse publicada. Porque nós devíamos saber se 50 pessoas são massacradas numa noite no Congo. Mas é muito difícil alguém querer cobrir isto. Muita gente nem sabe que o Congo está a meio de uma guerra enorme. O Congo é um sítio lindíssimo. É muito verde, há imensos rios… Outrora deve ter sido um paraíso. O que me chocou foi que este país, incrivelmente belo e fértil, podia fornecer comida para toda aquela região de África. Mas, por causa da guerra, estão a importar grandes quantidades de alimentos, porque as pessoas não conseguem cultivar a terra – há muitas deslocações, refugiados. Há muita riqueza em ouro, petróleo, coltan e há muitas multinacionais a extrair recursos da região enquanto o caos perdura. E o governo está a ser bem pago por isso, com certeza, mas as pessoas não têm ruas decentes, o país não tem infraestruturas.
Neste ano, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído a Denis Mukwege, um médico que passou toda a sua vida a ajudar vítimas de violência sexual na República Democrática do Congo.
O doutor Mukwege é um homem fantástico, conheci-o no hospital dele. E há muitas pessoas que não são tão famosas quanto o Mukwege, mas que fazem o mesmo que ele faz em tantos outros hospitais. Mas este reconhecimento é muito bom para o Congo e para ele, que viu a sua vida ameaçada devido ao trabalho que estava a fazer. Ele sempre foi muito vocal acerca da violência sexual que está a ocorrer no Congo e já fez centenas de operações em mulheres e crianças que, após a violação, tiveram de fazer cirurgias reconstrutivas. Acho ótimo que o foco do Nobel da Paz deste ano tenha sido a violência sexual nos contextos de conflito. É bom o mundo voltar a pôr os olhos no Congo.
Planeia voltar?
Sim. Quero fazer um filme no Congo sobre resiliência e força, um filme positivo, diferente daquele que eu fiz, que é muito deprimente. As pessoas são tão inspiradoras e eu quero mostrá-lo. Da última vez que lá estive, conheci mulheres mais velhas fabulosas, que também foram vítimas de violência sexual, mas que fizeram canções acerca do que lhes aconteceu – e estavam a cantar e a dançar. Vou lá no próximo ano para capturar essa força. E também quero fazer esse mesmo tipo de filme de resiliência na Gaza e no Haiti. Uma espécie de trilogia.