A expulsão da Reditus do mercado de capitais é uma “decisão irreversível”, garante ao Observador a Euronext Lisbon. É o fim anunciado de uma história com 37 anos, de uma empresa que entrou na bolsa portuguesa na “febre“ de 1987, poucas semanas antes do famoso “gato por lebre” de Cavaco Silva. Nos últimos anos, as ações caíram quase 98% – e os acionistas arriscam, agora, ficar com títulos que valem muito pouco e que só podem vender fora de bolsa.
A empresa foi excluída esta segunda-feira pela Euronext Lisbon depois de a gestora da bolsa de valores nacional ter feito uma “avaliação cuidadosa dos interesses de todas as partes envolvidas”. Em declarações ao Observador, enviadas na última sexta-feira (véspera da exclusão), fonte oficial da bolsa garantiu que, “considerando que a Reditus continua a não cumprir as obrigações regulamentares, a decisão é irreversível”.
A expulsão foi comunicada pela bolsa a 11 de julho (depois de ter sido comunicada diretamente à empresa) e foi baseada em “vários fatores”, diz a bolsa. Em primeiro lugar, porque “os acionistas têm acesso limitado à informação financeira da empresa, devido à ausência de relatórios anuais auditados nos últimos anos”.
Os constantes atrasos e adiamentos na divulgação de resultados marcaram os últimos anos de presença da Reditus na bolsa. Os resultados relativos a 2022 só foram conhecidos em agosto deste ano, depois de terem sido adiados em várias ocasiões. A pandemia de Covid-19 e “uma situação de doença súbita” na empresa foram algumas das justificações dadas pela Reditus para os atrasos na apresentação de contas.
A Euronext Lisbon lembra que, devido a estes atrasos sucessivos em prestar a devida informação aos investidores, as “ações da empresa estiveram no Penalty Bench por mais de 36 meses, desde julho de 2021”. A expressão usada pelas bolsas de valores é inspirada na box (compartimento fechado) onde os jogadores de hóquei no gelo se sentam enquanto cumprem alguns minutos de castigo por terem cometido uma falta.
Este Penalty Bench, explica a bolsa, é um compartimento especial criado para alertar os investidores que a empresa se encontra em algum tipo de incumprimento das regras, nomeadamente com deveres de informação ao mercado. Ou seja, “os títulos continuam a ser negociados, mas estão assinalados para que os investidores tomem as suas decisões de investimento em consciência”, esclarece fonte oficial da Euronext Lisbon.
Depois de mais de três anos neste “purgatório”, a gestora da bolsa decidiu cortar relações com a empresa. “Não me recordo de ver uma decisão [deste tipo] da Euronext em relação a uma cotada, portanto não é algo que seja muito normal, pelo menos na minha experiência”, confessa Paulo Oliveira, trader da sala de mercados do Banco Carregosa. O especialista acrescenta que, “normalmente é a própria empresa que decide a saída, não me recordo de ver uma cotada ser ‘expulsa’ pela Euronext”.
Até agora, não são conhecidos dados sobre a situação financeira da empresa em 2023. O que se sabe é que, no final do ano passado, a Reditus tinha instauradas contra si quatro ações de execução de dívidas por parte do Novo Banco, no valor de 11 milhões de euros. E, nessa mesma altura, terá sido fechada a reestruturação de “uma parte substancial” da dívida, com acordos de pagamento até ao máximo de sete anos, com um perdão mínimo de 82,5%.
A Reditus apresentou em 2022 um passivo de 154,9 milhões de euros, penalizado principalmente por fatores como empréstimos e uma alínea descrita como “outras contas a pagar”. Por sua vez, o ativo da empresa foi de 99,8 milhões. Ou seja, estava em falência técnica. A dívida bancária no fim de 2022 sofreu um aumento de 4,9%, ascendendo a 51,8 milhões de euros. Todos estes dados estão completamente desatualizados, porém, porque não há informação completa sobre a situação financeira da Reditus no final de 2023. Esse terá sido um momento importante dada a reestruturação da dívida que foi comunicada ao mercado, de forma isolada, no final do ano passado.
O que tem colocado o grupo em apuros, em parte, é a dificuldade em fazer repatriamento de divisas de Angola, um país onde a Reditus trabalha há várias décadas, “com uma carteira de clientes importante, quer no setor privado, quer no setor público”.
“Os pagamentos de contratos com o setor público recomeçaram a ser pagos em 2021 e têm vindo a ser pagos regularmente ao longo de 2022 e também agora em 2023”, dizia a Reditus no final do ano passado, acrescentando que “os recebimentos relativos ao contrato mais importante têm vindo a ser executados, dentro dos prazos previstos, e recebidos em Portugal em euros, ao abrigo da linha de crédito protocolada entre os governos de Portugal e Angola”.
O Observador contactou, diretamente, o presidente da comissão executiva da empresa, José Louis Págès – que só assumiu a liderança no final do ano passado. Mas o responsável não estava disponível, nesta segunda-feira, para fazer quaisquer comentários.
Também contactada pelo Observador, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) lembrou que, “de acordo com o Código dos Valores Mobiliários, o incumprimento de deveres de prestação de informação pode gerar o apuramento de responsabilidades contraordenacionais“.
Porém, a CMVM não esclarece se isso pode acontecer com a Reditus e respetivos gestores. “A CMVM não pode pronunciar-se sobre medidas de supervisão ou sancionatórias concretas em curso em relação a qualquer entidade sob sua supervisão”, afirma o supervisor, garantindo que “acompanha em permanência o cumprimento dos deveres de prestação de informação ao mercado por parte das entidades emitentes”.
Dos estudos de mercado nos anos 60 até aos serviços e consultoria
A presença da Reditus no setor da tecnologia em Portugal vem de longe. Mas, na realidade, em 1966, quando foi criada, dedicava-se essencialmente à prestação de serviços específicos, como a realização de estudos de mercado. Algum tempo depois, evoluiu para o tratamento de dados para o Banco da Agricultura. Na altura, a lista de acionistas era dividida apenas entre a instituição bancária e Sociedade Alentejana de Seguros “A Pátria”, fundada em 1915 e que, já na década de 70, foi integrada no grupo Banco da Agricultura.
A companhia foi mudando de nome ao longo das décadas. Começou por ser a “Reditus — Estudos de Mercado e Promoção de Vendas, SARL” e, anos depois, assumiu a designação “Reditus — Processamento Automático de Informação”.
Em 1971, cinco anos após a fundação, começa a investir na tendência da tecnologia. O primeiro passo foi o desenvolvimento de um centro de tratamento de dados, com a instalação de equipamentos informáticos de última geração naquela época. Segundo a página da empresa, terá sido isso a permitir um “rápido crescimento da sua faturação e do número de clientes”.
No ano a seguir ao 25 de Abril, dá-se a nacionalização do Banco da Agricultura. A Reditus foi integrada num grupo económico privado já em 1980. Embrenha-se ainda mais no mercado das tecnologias de informação (TI), nomeadamente na microinformática. Se os computadores começaram por ser gigantescos dispositivos, capazes de ocupar uma sala inteira, na década de 80 eram já mais compactos e davam-se os primeiros passos na tendência dos computadores pessoais (PC), que viria a massificar-se vários anos depois.
Da “febre” bolsista e a “enorme prosperidade” aos crashes nos mercados
A Reditus cotou as ações no mercado de capitais de Lisboa no pico da “febre” bolsista de 86/87. Aliás, sendo negociadas pela primeira vez no final de agosto de 1987, poucas semanas depois enfrentariam o grande crash bolsista de outubro de 1987 – uma forte correção que começou na bolsa de Nova Iorque e que derrubou os mercados mundiais.
Ficou conhecido por “segunda-feira negra” esse que foi um dos piores colapsos da história das bolsas mundiais, com a bolsa nova iorquina a colapsar mais de 22% num só dia. Em Portugal, o crash foi antecedido em poucos dias pela declaração do então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, que referiu que na bolsa, em alguns casos, se estava a comprar “gato por lebre”.
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Na década de 80 a Reditus fica associada à figura do seu principal gestor, Frederico Moreira Rato, o sexto de sete filhos da conhecida família Moreira Rato. Foi pela mão de Frederico Moreira Rato, que morreu em 2014, que passou a reestruturação da Reditus, na década de 90. Já com algum distanciamento, o gestor admitiu que o período mais complicado da vida da tecnológica foi em 1994. Até então, a Reditus usufruiu de anos de “enorme prosperidade”, como contou Moreira Rato ao Jornal de Negócios, muito por ser a principal dealer da gigante norte-americana IBM em Portugal.
Até que veio a euforia das dot-com e, já no novo milénio, a Reditus registou um máximo em bolsa em março de 2000 que, até hoje, nunca conseguiu ultrapassar, de 13,70 euros. Foi sol de pouca dura e, com o passar dos anos, o valor das ações da Reditus começou a recuar.
Dezoito anos após a entrada em bolsa, já em 2005, a empresa liderada por Frederico Moreira Rato foi promovida ao índice principal da bolsa lisboeta — o PSI20, hoje em dia PSI. Na revisão feita nesse ano, também a Novabase se juntou à liga das maiores cotadas. Mas, um ano mais tarde, a Reditus acabou por sair do índice de referência.
Logo no ano seguinte renovou-se o otimismo dos investidores com a entrada em cena de um nome sonante: Miguel Pais do Amaral. O empresário português anunciou em setembro de 2007 que detinha uma participação de 10% na Reditus, justificada pelo papel que acreditava que a tecnológica poderia “desempenhar na consolidação do setor” da tecnologia.
Já na altura admitiu a possibilidade de reforçar a participação, um cenário que a passagem dos anos confirmou. A presença de Pais do Amaral na Reditus cresceu ao ponto de se tornar no principal acionista, com quase 25% do capital, e de se tornar no presidente do conselho de administração. Mas em janeiro de 2018, renunciou ao cargo de administrador – continuando como maior acionista.
Operações focadas no outsourcing em Portugal e em Angola
Hoje em dia, a Reditus é uma empresa diferente, mas a prestação de serviços, dentro e fora de Portugal, continua a ser o principal destaque. Tem escritórios em Portugal e “vários centros de serviços” em todo o país, e em Angola, mais precisamente em Luanda, de acordo com informação da própria empresa no seu site. É referido ainda a “experiência na prestação de serviços em mais de 60 países”, em vários continentes. A lista de setores em que os serviços da Reditus são usados é composta por quatro grandes áreas: administração pública e saúde, telecomunicações, media e utilities, serviços financeiros e consumo, retalho e transporte.
Na comunicação mais recente ao mercado, sobre os resultados anuais de 2022, foi comunicado um resultado líquido de 8,7 milhões de euros. As principais fontes de receitas da Reditus nesse ano tiveram origem no segmento de outsourcing de processo de negócios, ou BPO (13,54 milhões de euros, representando 48% das receitas) e outsourcing de IT (13,27 milhões de euros, o equivalente a 47% das receitas).
A área de BPO envolveu a prestação de serviços de outsourcing, centros de contacto e de suporte ao negócio. Ou seja, atividades como atendimento e fidelização de cliente, tratamento de correio, preparação de documentos, digitalização, gestão de reclamações, etc. Já a área de outsourcing de IT diz respeito ao mercado de serviços, projetos e soluções infraestruturais de tecnologias de informação — gestão, administração e suporte de plataformas tecnológicas.
A área de negócio com menor representatividade era a consultoria de tecnologias de informação. Em 2022, representou somente 1,38 milhões de euros de receitas, um tombo de 66,5% em relação ao ano anterior.
Serviços de apoio às eleições e aos assuntos consulares entre os contratos mais recentes
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Uma pesquisa no Portal Base permite perceber mais concretamente alguns dos contratos que foram adjudicados às empresas do grupo Reditus. As menções mais recentes no Base dizem respeito à Reditus Business Products S.A. Os últimos contratos, relativos a 2022 e ao fim de 2021, estão ligados a serviços de centros de contacto em momentos de eleições ou mesmo durante a pandemia de Covid-19.
As legislativas de 2022 valeram alguns contratos à Reditus. O mais recente disponível na plataforma, de março de 2022, teve como objetivo a aquisição de serviços no âmbito das eleições legislativas desse ano, mais concretamente para a repetição da votação do círculo eleitoral da Europa. Foi celebrado entre a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e a empresa, por um valor de 17.556 euros, através de um ajuste direto regime geral. Nesse âmbito, também foi adjudicado à Reditus um contrato para a aquisição de serviços de centro de contacto de apoio à administração eleitoral, no valor de 21.122,56 euros. Há ainda outro contrato, através de um ajuste direto de regime geral, para a aquisição de serviços de centro de contacto para as eleições, no valor de 94,8 mil euros, também adjudicado pela Secretaria-Geral do MAI, ainda em dezembro de 2021.
Já através de um concurso público internacional, foi adjudicado à empresa pela Agência para a Modernização Administrativa um valor de 1,05 milhões de euros para vários serviços de atendimento técnico, incluindo para o centro de atendimento consular e o centro de atendimento do SAMA, o Sistema de Apoio à Modernação Administrativa. A publicação do contrato é de março de 2022.
A prestação de serviços de gestão operacional da linha da Segurança Social, no âmbito das medidas excecionais da Covid-19, valeu à Reditus um contrato de 249 mil euros, celebrado com o Instituto da Segurança Social em janeiro de 2022, através de um ajuste direto.
Um “vazio legal”. Acionistas arriscam ficar sem contrapartida
Ao longo dos 37 anos de história da Reditus na bolsa, a empresa chegou a valer o tal máximo histórico de 13,70 euros na primavera de 2000, em plena “bolha” das tecnológicas (dot-com). Foram, agora, expulsas da negociação com um preço inferior a quatro cêntimos (0,036 euros), uma desvalorização superior a 97%.
Nos tempos mais recentes, a Reditus voltou a mostrar alguma força no mercado de capitais em 2007, antes de, depois, voltar a sofrer com a quebra dos índices bolsistas no pós-crise do subprime. Nos últimos cinco anos, a ação valeu mais de 10 cêntimos apenas uma vez: foi em agosto, depois de a empresa apresentar os resultados de 2022 – resultados que, embora tenham vindo com ano e meio de atraso, apontaram para uma melhoria do resultado operacional.
Os títulos quadruplicaram em poucos dias, levando a empresa a valer mais de um milhão de euros em bolsa – mas voltaram a descer, entretanto, para uma valorização de mercado de pouco mais de 500 mil euros.
De acordo com a informação disponível no site da empresa, além do maior acionista individual (o empresário Miguel Pais do Amaral, com quase 25%), há mais 10% do capital que está nas mãos da família Moreira Rato. Mais de metade (50,36%) do capital está disperso na bolsa de valores – e são estes investidores que, agora, arriscam ficar com títulos que, sem qualquer contrapartida, valem muito pouco e só podem ser comprados e vendidos fora de bolsa.
A expulsão da Reditus, além de ser uma novidade para quem vive da negociação bolsista, também não tem enquadramento legal ou precedente jurídico. Uma saída da bolsa involuntária configura uma espécie de vazio legal, explicam João Santos Carvalho e Daniel Macedo Ferreira, respetivamente sócio e associado da firma de advogados SRS Legal.
“A exclusão de negociação – voluntária ou por iniciativa da entidade gestora de mercado regulamentado – não confere, por si só, direito ao pagamento, aos acionistas, de uma contrapartida” pelo facto de a empresa ter deixado de estar cotada em bolsa. Porém, dizem, “em determinadas circunstâncias, poderá, sim, conferir ao acionista o direito a alienar as suas ações mediante o pagamento de uma determinada contrapartida”. Tudo depende “das circunstâncias em que essa saída aconteça”.
“Efetivamente, no caso de uma exclusão voluntária de negociação (que deve seguir o regime previsto no Código dos Valores Mobiliários), a sociedade fica obrigada a adquirir, a indicar um acionista ou um terceiro que se obrigue a adquirir, as ações detidas por acionistas que tenham votado contra a exclusão de negociação”, explicam os advogados. “Esta aquisição deverá ocorrer no prazo de três meses após o deferimento pela CMVM da exclusão voluntaria da negociação, sendo a contrapartida fixada nos termos previstos na lei”, afirmam.
Porém, isto só é válido quando a saída é voluntária. Num caso de saída involuntária, como acontece na Reditus, o processo será mais complexo. “No caso de uma exclusão de negociação que ocorra por iniciativa da entidade gestora de mercado regulamentado, não se encontra previsto na lei qualquer direito (potestativo) de venda das ações pelos acionistas”, esclarecem os advogados da SRS Legal. “Consequentemente”, acrescentam, não está previsto na lei “o direito a receber qualquer contrapartida em virtude dessa mesma venda”.