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O Cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, presidiu à missa do Dia de Natal na Sé Patriarcal de Lisboa, 25 de dezembro de 2020. TIAGO PETINGA/LUSA
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D. Manuel Clemente sabia de uma denúncia de abusos e até se encontrou com a vítima, mas manteve o nome do padre longe do conhecimento da polícia

TIAGO PETINGA/LUSA

D. Manuel Clemente sabia de uma denúncia de abusos e até se encontrou com a vítima, mas manteve o nome do padre longe do conhecimento da polícia

TIAGO PETINGA/LUSA

Denúncia de abusos ocultada pelo patriarca. O que pode (ou podia) a justiça da Igreja Católica fazer?

A resposta curta é: muito pouco. A maioria das normas que responsabilizam os bispos e os obrigam a denunciar os casos à polícia são demasiado recentes, não se aplicando a casos antigos.

A Igreja Católica dificilmente poderá tomar alguma medida em relação ao cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na sequência da notícia publicada esta terça-feira pelo Observador que dava conta de que o responsável católico teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de um menor relativa à década de 1990 — tendo mesmo recebido pessoalmente a vítima –, mas optou por não comunicar as suspeitas às autoridades e por manter o sacerdote em funções. Também no plano civil, estando o crime em causa prescrito, não poderá haver uma acusação por omissão.

De acordo com fontes eclesiásticas ouvidas pelo Observador, as disposições legais internas da Igreja Católica que responsabilizam os bispos pela ocultação e pelas falhas na comunicação de casos de abuso são muito recentes e não se aplicam ao caso em questão. Ao mesmo tempo, embora possa ser discutível se o patriarca de Lisboa poderia, ou deveria, ter adotado medidas preventivas quando tomou conhecimento da situação, estas medidas não são obrigatórias.

Patriarca de Lisboa recebeu denúncia de abusos e reuniu-se com vítima. Mas manteve padre em funções e não comunicou caso à polícia

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A notícia publicada na terça-feira levou a apelos à responsabilização de D. Manuel Clemente pela ocultação do caso das autoridades civis, incluindo por parte da ex-candidata presidencial Ana Gomes. “Acho que ele já se devia ter demitido, ou ser demitido pelo Papa. Ser substituído por alguém que não tenha os mesmos padrões de tolerância relativamente a este tipo de práticas”, disse Ana Gomes à Rádio Observador, depois de ter feito um comentário semelhante no Twitter.

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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Contudo, a situação não é simples. O Observador questionou a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), o órgão colegial que reúne todos os bispos portugueses e serve como instituição central da Igreja em Portugal, sobre o que poderá ser feito em relação ao caso, mas a resposta foi pouco esclarecedora. “Como tem acontecido noutras dioceses, cada caso é tratado em sede própria pelas respetivas instâncias competentes“, disse ao Observador, por escrito, o porta-voz da CEP, padre Manuel Barbosa, acrescentando que o organismo “reafirma a sua determinação na procura da verdade e na escuta e acompanhamento das vítimas”. O sacerdote não respondeu à pergunta subsequente, sobre qual é a sede própria e quais são as instâncias competentes num caso que envolve um bispo.

A história divulgada esta terça-feira pelo Observador é complexa e envolve a atuação de dois cardeais-patriarcas de Lisboa — D. Manuel Clemente e o seu antecessor, D. José Policarpo, que já morreu — num período de tempo que abrange quatro décadas. No final da década de 1990, o Patriarcado de Lisboa recebeu uma queixa contra um sacerdote por alegados abusos sexuais. A denúncia foi apresentada pessoalmente ao então patriarca, D. José Policarpo, pela mãe da alegada vítima, que se reuniu pelo menos duas vezes com o cardeal.

O padre em questão exercia funções em duas paróquias da zona norte do distrito de Lisboa na altura da denúncia — e, pouco depois, em 2002, foi afastado dessas paróquias e colocado como capelão, funções mais discretas, embora ainda com contacto com o público. Ao Observador, o Patriarcado de Lisboa confirmou que, na altura, “foram tomadas decisões tendo em conta as recomendações civis e canónicas vigentes“, mas não esclareceu se essas decisões se limitaram à transferência do padre para uma capelania ou se foram tomadas outras medidas.

Depois de ser afastado das paróquias, e enquanto capelão, o sacerdote acabou por criar uma associação privada que funcionava, na prática, como uma espécie de paróquia paralela, celebrando missas regulares e organizando atividades com famílias, crianças, jovens e idosos. A associação privada não foi criada à luz do direito canónico e, por isso, não tem qualquer ligação formal com a Igreja Católica, motivo pelo qual o Patriarcado de Lisboa nunca teve jurisdição sobre o que ali se passava. Ainda assim, a Igreja sabia da sua existência, como confirmou ao Observador o gabinete de Clemente.

Duas décadas depois, a vítima, já adulta, reuniu-se pessoalmente com o novo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e contou o que lhe tinha acontecido. Não é certo qual o grau de conhecimento que Clemente — que entre 1999 e 2007 tinha sido bispo auxiliar de Lisboa — tinha, nesta altura, sobre o caso. O que é certo, segundo confirmou o Patriarcado ao Observador, é que o bispo se encontrou com a vítima, que “não quis que o caso fosse público e desejou apenas que os abusos não se repetissem“. Tendo em conta esta vontade, D. Manuel Clemente optou por não entregar o caso às autoridades civis e manteve o padre nas funções de capelão que teve durante duas décadas. Também não suspendeu o sacerdote com o objetivo de limitar a sua atuação na associação privada, onde continuava a privar com crianças e jovens.

Já depois da notícia avançada pelo Observador, o Patriarcado de Lisboa disse estar “totalmente disponível para colaborar com as autoridades competentes, tendo sempre como prioridade o apuramento da verdade e o acompanhamento das vítimas”, afirmou esta quarta-feira o gabinete de D. Manuel Clemente, numa nota enviada aos meios de comunicação social, acrescentando que a Comissão Diocesana de Proteção de Menores, coordenada pelo bispo auxiliar D. Américo Aguiar, também não recebeu qualquer denúncia ou comunicação sobre o caso. “Até este momento, o Patriarcado de Lisboa desconhece qualquer outra queixa ou observação de desapreço sobre o sacerdote“, disse o gabinete.

Igreja. “Coniventes têm de ser levados à justiça”

Normas para responsabilizar bispos são recentes

Se um caso com estas características acontecesse hoje, restariam poucas dúvidas sobre qual deveria ser a atuação da Igreja Católica. De acordo com um conjunto de normas internas que entraram em vigor em 2020 depois de o Papa Francisco ter reunido os bispos de todo o mundo em Roma, em fevereiro de 2019, para discutir a crise dos abusos, atualmente todos os bispos são obrigados a comunicar as suspeitas de abusos que lhes chegam, mesmo que a respetiva lei civil não pressuponha essa obrigação legal (que, em Portugal, não existe) e mesmo que os casos até possam já estar prescritos, se o denunciado ainda estiver no ativo.

Isto, porque, como é bem explícito no documento do Vaticano, o objetivo não é apenas o de fazer justiça à vítima já ofendida, mas também o de proteger eventuais futuras vítimas de um crime em que a reincidência é habitual. “Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis competentes, sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos“, lê-se nas normas da Santa Sé para a atuação dos bispos.

Papa Francisco

O Papa Francisco reuniu todos os bispos do mundo em 2019 para tomar medidas sobre os abusos sexuais na Igreja

Getty Images

Esta necessidade de proteção de eventuais futuras vítimas tem sido uma das grandes preocupações da comissão independente que está a investigar os casos de abuso na Igreja, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. “Há um facto que preocupa a Comissão e que é o seguinte: nós podemos ter o testemunho que revela um alegado abusador num crime que aconteceu há mais de 20 anos, mas, a ser verdade, há um alto risco de prossecução do mesmo crime porque os abusadores, uma vez abusando, têm grande probabilidade de o continuar a fazer”, disse recentemente ao Público.

Porém, estas disposições legais só entraram em vigor em 2020, o que significa que D. José Policarpo não estava, decididamente, abrangido por esta obrigação de denúncia dos casos às autoridades civis. O antigo patriarca optou, aparentemente, por seguir um padrão que a Igreja seguiu ao longo de décadas: desvalorizar o caso, mudar o padre de local e abafar o escândalo público que poderia resultar de uma comunicação do caso às autoridades. Quanto à atuação de D. Manuel Clemente, a situação é menos clara. A reunião com a vítima aconteceu já depois da cimeira de fevereiro de 2019, onde o Papa Francisco tomou uma posição clara em favor da denúncia de todos os casos às autoridades civis, e o próprio D. Manuel Clemente já se assumia como um defensor da transparência e da cooperação entre Igreja e autoridades civis no que toca à crise dos abusos. O documento que saiu do encontro em Roma ainda não estava em vigor, mas as suas linhas orientadoras já estavam definidas.

Mesmo antes de a Igreja Católica ter determinado que existe uma obrigação canónica de denunciar os casos de abuso às autoridades, já havia um entendimento na cúpula eclesiástica de que esse seria o caminho — e de que já havia uma obrigação moral de o fazer. As palavras foram ditas em entrevista ao Observador em 2019 pelo padre alemão Hans Zollner, um dos principais conselheiros do Papa Francisco para a questão dos abusos de menores. Questionado sobre se os bispos tinham uma obrigação de denunciar casos de abuso, Zollner disse que existia “uma enorme obrigação moral de reportar” quando existem indicações de que há a possibilidade de os abusos se repetirem no futuro.

Bispos têm “enorme obrigação moral” de denunciar abusos sexuais à polícia. Entrevista ao responsável pelo encontro inédito no Vaticano

Mais. Há outro documento eclesiástico a ter em conta na análise deste caso. Trata-se da carta apostólica Vos Estis Lux Mundi, promulgada pelo Papa Francisco em maio de 2019, também na sequência da cimeira sobre a proteção de menores realizada em fevereiro desse ano no Vaticano. Nesse documento, Francisco vem debruçar-se sobre um tema até então relativamente esquecido na legislação eclesiástica sobre os abusos: a responsabilização dos bispos.

Até àquela altura, a Igreja Católica já tinha produzido uma quantidade considerável de legislação interna sobre o problema dos abusos sexuais de menores, mas toda essa legislação era focada no modo como deviam ser tratados os casos de abuso e os abusadores. Não havia, até então, legislação específica sobre como responsabilizar os bispos que, em conivência com os abusadores, tinham ocultado os crimes e interferido com investigações judiciais para proteger a reputação da instituição.

Francisco resolveu essa lacuna recorrendo à figura do arcebispo metropolitano, que havia caído no esquecimento ao longo da história, tornando-se numa figura essencialmente cerimonial. Em Portugal, existem três províncias eclesiásticas: Braga, Évora e Lisboa. Estas províncias eclesiásticas servem de instância de recurso na justiça eclesiástica para os casos que ocorrem nas chamadas dioceses sufragâneas, as dioceses que compõem a província, e são lideradas por arcebispos, que no caso de Lisboa é o cardeal-patriarca.

Em 2019, no documento Vos Estis Lux Mundi, o Papa Francisco determinou a possibilidade de a justiça eclesiástica se debruçar não apenas sobre os padres abusadores, mas também sobre os bispos e outros elementos da hierarquia eclesiástica. Além disso, passam a estar em causa não apenas casos concretos de abuso, mas também “ações ou omissões tendentes a interferir ou contornar as investigações civis ou as investigações canónicas, administrativas ou criminais, contra um clérigo ou um religioso relativas aos delitos“.

Num caso que diga respeito a um bispo católico, a situação tem de ser transmitida à Santa Sé e ao metropolita da província eclesiástica em questão. Se o bispo em questão for o próprio metropolita, então é necessário recorrer ao “bispo sufragâneo mais antigo por promoção”, uma designação que tem sido usada habitualmente para descrever o bispo que recebeu a ordenação episcopal há mais tempo de entre os bispos titulares em funções na província eclesiástica. No caso concreto, como não poderia ser o próprio D. Manuel Clemente a conduzir um processo relativo a si próprio, esta função caberia ao bispo de Portalegre-Castelo Branco, D. Antonino Dias, que já foi ordenado há mais de 20 anos e é o bispo mais antigo da província eclesiástica de Lisboa.

D. Manuel Clemente “já devia ter sido demitido, até mesmo pelo Papa”

É a ele que caberiam, então, as funções tradicionais do metropolita: analisar a situação e, a menos que ela se revele “claramente infundada”, solicitar “prontamente ao Dicastério competente o encargo para iniciar a investigação”. Neste caso, seria necessário informar a Congregação para os Bispos, no Vaticano. Em resposta, a Santa Sé teria trinta dias para determinar o que deve ser feito, nomeadamente determinar a abertura de uma investigação, conduzida pelo bispo em questão, que teria de enviar relatórios mensais para o Vaticano sobre o decorrer do inquérito.

A investigação deveria ficar concluída, por norma, em 90 dias, altura em que as atas do inquérito são enviadas para o Vaticano. Aí, o organismo competente — neste caso, a Congregação para os Bispos — determina as consequências da investigação, que poderão incluir penas canónicas contra o bispo acusado.

Na prática, as normas atualmente em vigor no seio da Igreja Católica são muito claras: um caso destes não poderia ter acontecido sem que houvesse uma investigação dos atos do bispo. Porém, à semelhança da lei civil, também a lei canónica não se aplica com retroatividade. O Patriarcado de Lisboa não respondeu às perguntas do Observador sobre a data concreta em que ocorreu a reunião entre D. Manuel Clemente e a alegada vítima, informação sem a qual é impossível clarificar com exatidão quais as disposições que já estavam em vigor e quais as que ainda viriam a ser implementadas.

O Observador contactou o bispo de Portalegre-Castelo Branco, D. Antonino Dias, na qualidade de bispo mais antigo da província eclesiástica de Lisboa, para saber se planeia indagar os detalhes do caso em questão. O bispo respondeu garantindo o empenho da Igreja na erradicação do problema, mas não revelou qualquer pormenor sobre uma eventual investigação à conduta do patriarca de Lisboa. “A Igreja está empenhada, no seu todo, em erradicar o trágico fenómeno dos abusos sexuais de menores. Esse empenho leva-nos a fazer tudo quanto é possível para colocar as vítimas no centro da nossa atenção e dos nossos cuidados”, disse D. Antonio Dias ao Observador.

“Sobre os mecanismos previstos no motu proprio Vos Estis Lux Mundi, qualquer Bispo deve estar disposto a colaborar com a Santa Sé naquilo que for de sua competência, mas não me cabe a mim tornar públicas quaisquer iniciativas que sejam tomadas em relação a casos concretos”, acrescentou.

Medidas preventivas eram possíveis, mas não obrigatórias

O que podia, afinal, ter feito D. Manuel Clemente quando soube da história de abusos associada a este sacerdote? A resposta é pouco clara e obriga-nos a explorar diferentes perspetivas.

Em primeiro lugar, poderia ter comunicado às autoridades o nome do padre e as suspeitas que sobre ele recaíam, mesmo que optasse por não revelar os detalhes da vítima, respeitando o pedido desta para que a sua situação não fosse exposta. Essa opção, que não é obrigatória pela lei civil e que a lei canónica só impõe desde o verão de 2020, iria ao encontro dos anseios da comissão independente para que todos os casos, incluindo os prescritos, possam ser analisados pela Polícia Judiciária, uma vez que existe a possibilidade de continuação dos crimes e da existência de novas vítimas mais recentes. Esta opção iria também ao encontro daquilo que é o atual entendimento da Igreja Católica em relação ao assunto: “Tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos.”

Em segundo lugar, poderia ter suspendido o sacerdote das funções que detinha como capelão. Caso entendesse que as funções do padre, aliadas à suspeita que já recaía sobre o sacerdote desde a década de 1990, representavam um perigo para eventuais futuras vítimas, o bispo poderia ter tomado a decisão administrativa de atribuir ao sacerdote outras funções, que não incluíssem o contacto com crianças e jovens. Possivelmente, não considerou que existisse esse risco, uma vez que o padre se manteve em funções até este ano e que só não está em funções por motivos de doença. Poderá situar-se aqui a única falha na devida diligência a apontar, em termos puramente técnicos, ao cardeal-patriarca de Lisboa.

Mais complexa é a situação que envolve a associação privada que o padre geria em paralelo às suas atribuições canónicas. Aí, o cardeal-patriarca não tinha qualquer tipo de jurisdição nem poderia interferir na organização, uma vez que se trata do âmbito da vida privada do sacerdote. Ainda assim, o cardeal-patriarca tinha conhecimento da existência da organização — e as atividades ali praticadas eram públicas. Por esse motivo, D. Manuel Clemente tinha uma possibilidade: a de suspender o padre do exercício do sacerdócio, o que, na prática, o impediria de celebrar missas e sacramentos, até na associação — mas não interferiria com qualquer outro aspeto da vida daquela associação privada.

O advogado Miguel Matias que representou as vítimas do processo Casa Pia

JOÃO RELVAS/LUSA

Para a justiça civil o crime está prescrito

Os tempos do direito canónico são diferentes dos da justiça civil, mas também neste campo não haverá para já qualquer responsabilidade criminal a imputar ao bispo D. Manuel Clemente. Isto, porque o crime de que agora se fala terá ocorrido na década de 90 e, apesar de não se saber exatamente em que ano, a lei em vigor prevê que a vítima possa apresentar queixa até cinco anos depois de completar os 18. Neste momento a vítima terá mais de 30.

Segundo o advogado Miguel Matias — o advogado que representou as vítimas do caso Casa Pia – caso o crime não tivesse prescrito, podia o bispo D. Manuel Clemente vir a ser indiciado por omissão, neste caso concreto pelo crime de abuso sexual por omissão. É que apesar de a lei não obrigar à denúncia de um crime por quem não exerce funções públicas, tem previstas penas para quem teve conhecimento de um crime e não o denunciou.

Foi o que fez recentemente o Ministério Público ao acusar o padre da paróquia de Samora Correia. Segundo a acusação, em razão do seu “ofício”, competia-lhe orientar a sua paróquia e zelar pelo processo de educação dos menores, pela sua segurança e bem-estar. Neste caso estava em causa um suspeito que auxiliava na catequese e que era acólito. Na primeira denúncia de abuso ao padre, este limitou-se a afastar o suspeito das atividades da catequese, mantendo-o como acólito. E foi nestas funções que ocorreram os segundos abusos, a uma segunda vítima, meses depois. Segundo a acusação, o padre ao ter tomado esta decisão e ao manter o caso entre quatro paredes sem denunciá-lo conformou-se com a possibilidade de o crime voltar a repetir-se.

No caso da denúncia levada ao conhecimento de D. Manuel Clemente, o padre em questão já não tinha paróquia atribuída, mas tinha uma capelania. E era do conhecimento da Igreja, aliás do público também, a associação que presidia à margem do direito canónico e em que celebrava missas quase como que numa paróquia paralela — frequentada também por menores.

Já um cenário diferente seria se a Polícia Judiciária ao investigar este padre, o que é uma hipótese ainda em aberto, descobrisse outras vítimas cujos crimes não tivessem prescrito. Neste caso concreto, a ocultação da informação recebida por parte de D. Manuel Clemente podia ser olhada pela justiça civil de um outro ângulo. E o atual patriarca de Lisboa poderia mesmo enfrentar um processo crime por omissão.

MP já arquivou quatro denúncias de abusos sexuais na Igreja

Até agora, das mais de 300 queixas que chegaram à Comissão Independente criada pela Igreja para fazer um retrato dos abusos sexuais por elementos do clero em Portugal, 17 foram enviadas para o Ministério Público — quatro casos até já foram arquivados. Em alguns casos, como chegou a dizer o juiz jubilado Laborinho Lúcio, que integra a comissão, dificilmente haverá elementos para seguir uma investigação, seja porque os crimes possam estar prescritos, seja pela falta de elementos sobre o caso (a maior parte anónimos) para seguir a investigação. Ainda assim, houve sete nomes de padres ainda no ativo, cujos crimes prescreveram que foram dados em mão à Polícia Judiciária sob o princípio de que um suspeito de abuso sexual dificilmente comete um só crime. O caso agora divulgado pelo Observador era um deles.

Nota: Artigo atualizado às 22h42 com a resposta de D. Antonino Dias ao Observador.

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