“O que são três pontinhos amarelos…?” Podia ser o início de uma adivinha, mas era literalmente o cenário às primeiras horas da manhã desta segunda-feira no imenso deserto Parque Tejo, em Lisboa: três jovens voluntários ao longe, vestidos de amarelo, com os símbolos da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) estampados na t-shirt.
“Era suposto encontrarmo-nos às 9h, mas ninguém está aqui”, queixa-se Victoire Robert, 25 anos, francesa, que chegou a Portugal logo no final de julho para fazer uma peregrinação de Fátima a Lisboa. “Foi difícil, mas foi uma ótima experiência”, conta a jovem da Bretanha, França, e que é voluntária no evento católico que monopolizou as atenções de 1 a 6 de agosto.
Espera há largos minutos pelo team leader, em inglês, o coordenador da equipa que a vai orientar e a Benoit Lazack, 19 anos, também francês, que decide ligar uma vez mais ao ponto de contacto. O jovem parisiense não tarda a perceber que quem está do outro lado não fala francês nem inglês, e o Observador acaba a fazer a tradução da mensagem.
Se nos primeiros dias da JMJ estiveram a dar informações e a distribuir lanches a peregrinos, esta segunda-feira coube-lhes a tarefa de reforçar a limpeza do recinto do Parque Tejo, apelidado estes dias de Campo da Graça. “Somos a equipa de resposta rápida”, explica Benoit. “Temos de ajudar quando não têm muitos voluntários”. Neste dia pós-jornada “temos de limpar o parque, apanhar lixo e limpar as tendas que ainda se veem”. “Fazemos só o turno da manhã, das 9h até às 14h.” Depois vão “curtir a cidade”. Até porque o tempo que lhes resta é muito pouco: Victoire regressa a casa ao fim do dia, Benoit tem voo esta terça-feira.
A limpeza é a prioridade no Parque Tejo — que este domingo estava repleto de lixo –, onde ainda se mantém todo o aparato técnico: colunas, ecrãs, estruturas, tendas. O recinto que, segundo as autoridades portuguesas, juntou 1,5 milhões de pessoas na vigília este sábado à noite está agora praticamente vazio de gente: três voluntários aqui, umas equipas de limpeza municipal a esvaziar caixotes ali. E, mais à frente, quando nos distanciamos do altar-palco, o silêncio é interrompido pelos berbequins de um grupo de homens que desaparafusam parte do chão da ponte ciclopedonal sobre o rio Trancão, que marca a ligação entre os concelhos de Lisboa e Loures, e que foi inaugurada a 6 de julho, mesmo a tempo da Jornada Mundial da Juventude. É “um investimento que fica para a cidade”, afirmou então o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas.
Sob um sol abrasador, vários homens retiram o “contraplacado marítimo”, explicam-nos, que serviu temporariamente para suavizar a passagem do papamóvel na ponte com uma extensão de cerca de 560 metros. Esperam terminar o serviço nas próximas horas, “enquanto não estiver muito calor”.
No Parque Eduardo VII já se desmontam andaimes, mas ainda não se vê estátua de Cutileiro
Dali ao outro grande palco da Jornada Mundial da Juventude, no Parque Eduardo VII, são ainda alguns quilómetros — os suficientes para encontrar um cenário bem distinto. Não há equipas de limpezas nem voluntários. O recinto está limpo e ouve-se o tilintar do metal, típico da desmontagens de andaimes, e retira-se a alcatifa azul que revela a calçada portuguesa, de ambos os lados do jardim central. O monumento de evocação do 25 de Abril, a estátua do escultor João Cutileiro que no final dos anos 90 gerou polémica pela sua forma fálica, é que ainda não está à vista. De acordo com a autarquia, as peças, “foram desmontadas” para “restauro” e “serão recolocadas conforme o original após a desmontagem do palco“. Ainda não aconteceu.
No topo do parque, uma família espanhola com dois miúdos observa o jardim até ao Marquês de Pombral. “Imagina isto cheio até lá abaixo”, diz o pai ao mais pequeno. A visão, contrastante com o observado nos últimos dias, estende-se ao resto da cidade.
Das ruas de Lisboa desapareceram os grupos de jovens que nos últimos dias ocuparam jardins e lugares à sombra um pouco por todo o centro da cidade. Na estrada há autocarros para diferentes pontos da Europa. O metro retomou a circulação e só a linha vermelha, na direção Aeroporto, regista maior afluência. Regressou o típico agosto lisboeta.
“Para nós foi exatamente a mesma coisa, nunca saímos daqui”
Na Avenida Almirante Reis não há palcos para desmontar. Nas paredes permanecem os cartazes com críticas ao evento que levaram esta artéria a ser considerada a “rua da contestação”. Frases pintadas na parede criticam a falta de habitação, os abusos sexuais na Igreja Católica e a construção dos confessionários da JMJ.
“[A cidade] esteve mais movimentada a nível de peregrinos, mas para nós foi exatamente a mesma coisa, nunca saímos daqui”, diz Ricardo, 49 anos. Está em situação de sem-abrigo desde dezembro e faz da Almirante Reis a sua morada desde que saiu de Pataias, vila em Alcobaça. “Fui lá fazer a fruta no ano passado. Pêras e maçãs”.
Tem um cigarro na mão, está sentado na reentrância de um prédio, com a tenda montada e o chão imaculado. “Vim à procura de trabalho, com uma promessa de trabalho que não existiu”, recorda.
Papa? Nem vê-lo. “Não passou por aqui”, lamenta.
E sobre o suposto aviso para que todos os sem-abrigo da Almirante Reis saíssem antes de a Jornada Mundial da Juventude arrancar — desmentido pela Câmara de Lisboa como sendo algo excecional, já que é necessário fazer uma limpeza regular — garante: “A mim ninguém me disse nada, as pessoas da Câmara passam, pedem para limpar as tendas todas as quartas-feiras”.
Tiramos as tendas, eles lavam tudo, desinfetam tudo e a gente volta a montar as tendas. Quem tem paletes por baixo não necessita, que eles lavam por baixo. A mim não me fazem isso porque eu tenho sempre isto limpo, lavo isto todos os dias, tenho ali balde e esfregona, não há necessidade. Limpam uma vez por mês pela desinfeção apenas.”
A conversa é interrompida por um homem que passa e aponta para a garrafa de água de Ricardo, que lhe acena que pode beber. O ar sente-se quente, os termómetros marcam os 35ºC.
“Aqui estou autorizado a permanecer o tempo que eu quiser”, assegura. “Pela diretora daqui [aponta para a porta do edifício nas suas costas], ela conhece-me, sabe que eu normalmente trabalho, só que aleijei-me nas mãos e entretanto agora não há trabalho, é o mês de agosto, está tudo de férias.”
Ricardo, um homem de fé, que gostava de ter visto Francisco
Até há pouco tempo trabalhava no isolamento de telhados, montava telas de alumínio. “Mas apanhei uma alergia devido ao calor e ao fumo do alcatrão, queimou-me a cara e as mãos”, explica, exibindo as marcas. “Está em ferida, está a mudar a pele ainda”. No centro de saúde dizem-lhe que não deve trabalhar pelo menos mais duas semanas. “Por enquanto ando à procura, vou pedindo e vou perguntando. Quando vejo pessoas a passar com roupa de trabalho pergunto, pode ser qualquer coisa, para as obras… No outro dia passou aqui uma carrinha de mudanças e perguntaram-me ‘queres trabalhar?’ e fui. Quatro horas, ganhar 25 euros, sempre dá para alguma coisa.”
A pele vai ficando cada vez mais quente. Daqui a umas horas, Ricardo pegará nas trouxas e passará para o outro lado do eixo da avenida. “Quando fica muito mau vou para a zona da igreja ou para o Jardim Constantino”. Dormir na rua está longe de ser o cenário ideal, mas ainda assim prefere isso ao albergue que lhe foi oferecido pela Comunidade Vida e Paz — que é tutelada pelo Patriarcado de Lisboa. “Aquilo é gente que, pronto, são pessoas como eu só que têm vícios que eu não tenho. Nem temos segurança nas nossas coisas, podem-nos roubar a roupa, estamos sujeitos a ir ao balneário tomar banho e a ver pessoas a injetarem-se. Isso vai contra os meus princípios, prefiro estar aqui.”
Todos os dias sai da tenda que tem na Almirante Reis e caminha até aos balneários públicos do Largo de Santa Bárbara, em Arroios. “Toda a gente pode lá tomar banho, seja com abrigo ou sem abrigo, não só tomar banho, mas também fazer as necessidades”, explica. Segundo os Censos de 2011, cerca de 4096 pessoas em Lisboa vivem em habitações sem instalação de banho ou duche.
Nos últimos dias, Ricardo até gostaria de ter visto Francisco. É um homem de fé, mas gosta de pouco de confusões, por isso manteve-se à margem. “Era muito país, muita gente, muito aglomerado, eu não gosto disso”, disse, explicando o porquê de não ter saído dali.