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O Bloco de Esquerda rompeu e de repente, no plenário, cruzaram-se ataques entre todas as bancadas, sem filtro e sem freio, do PCP para o Chega, do PAN para o Bloco, do Governo para o PSD e para o BE, do BE para o Governo. Foi o dia do desconfinamento total de críticas, ameaças e dedos em riste que estavam no bolso há cinco anos. O dia um do Orçamento para 2021 foi simultaneamente o dia um do pós-geringonça. E o efeito foi este.

O ambiente parlamentar virou e até António Costa decidiu inaugurar esta nova fase com novas cores. Máscara vermelha, gravata vermelha, caneta vermelha, pasta de documentos vermelha e até meias… também vermelhas. Vermelho PCP ou BE? Dependia da perspetiva, mas encaixava em qualquer dos dois, afinal para o PCP, tudo. Para o BE, nada.

Malhar no Bloco de Esquerda

Com o voto contra do BE anunciado, o PS não poupou o antigo parceiro e a cada intervenção, mesmo quando era suposto a resposta ser para a direita, lá aparecia uma bicada ao partido liderado por Catarina Martins. Foi o primeiro confronto parlamentar pós-rutura e até em António Costa era visível um tom diferente em relação ao partido com quem negociou nos últimos cinco anos. Logo depois de na sua intervenção a líder do Bloco  ter dito que a”postura do BE é de razoável bom senso” e de acusar Costa de recuar em relação ao caminho iniciado em 2015, Costa levantou-se, olhou Catarina Martins nos olhos, e atirou: “Permita-me discordar”.

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“Não vale a pena tentar polarizar entre nós o debate porque a alternativa que se apresenta não é a que o OE apresenta e a que o BE vai votar contra, mas a que o Governo apresenta e a que a direita apresenta”, atirou Costa irritado e de dedo indicador em riste: “A alternativa é entre os que vão votar a favor e os outros partidos à esquerda e ambientalistas que, entendendo que é necessário avançar no sentido de superar a situação, não desertam da esquerda para se juntarem à direita“.

E, mesmo em resposta ao CDS, António Costa aproveitava para malhar (como diria Augusto Santos Silva) no Bloco, aproveitando um episódio com sete anos, o do irrevogável de Paulo Portas. “Não sei se a decisão do Bloco de Esquerda em relação a este Orçamento é mais ou menos irrevogável que a decisão do CDS de abandonar o Governo com o PSD”, atirou Costa e até foi o PEV que acabou por vir de seguida defender o partido da esquerda e afastá-lo dos “jogos da direita”.

E os insólitos não ficavam por aqui, com o PAN a dedicar também boa parte da sua intervenção do debate orçamental para se distinguir do BE, numa altura em que António Costa faz gala em referir insistentemente “os animalistas” e a abertura para negociar que o partido tem mostrado. Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, atirou a “quem queira convencer a todos e ao país de que o voto contra o Orçamento de Estado, a este tempo, é perfeitamente justificável. A esses, o PAN diz que, neste momento, o Parlamento tem a possibilidade de, não se demitindo das suas responsabilidades, decidir tornar esta proposta num Orçamento que contemple as visões das diferentes forças políticas e, portanto, das diferentes preocupações das cidadãs e dos cidadãos”.

No PS foi já sem surpresa que se sucederam as intervenções no mesmo sentido, como por exemplo a do deputado Porfírio Silva que disse que o PSD tenta recuperar a linha austeritária do Passismo e que “há partidos que se reclamam de esquerda que não olham ao perigo disso”. E depois dele Sónia Fertuzinhos, que antecipou já o retrato de quinta-feira: “O BE a levantar-se sozinho ao lado de toda a direita do Parlamento, do PSD, CDS, IL e Chega, para votar contra um Orçamento que reforça o papel do Estado social”.

No Bloco o tom da resposta foi inesperadamente comedido, muitos decibéis abaixo do que se antecipava para esta guerra. Nem mesmo quando Costa olhou para Joana Mortágua, que tinha acabado de fazer uma intervenção com as reivindicações do BE para o SNS, onde tinha falhado a negociação, e de resposta teve apenas: “É preciso falar a verdade, por isso fale a verdade”.

BE ainda abriu a porta, Governo ignorou…

Depois de uma tarde inteira de tensão entre o Governo, o PS e o Bloco de Esquerda — com os socialistas aguerridos e os bloquistas mais comedidos no tom –, coube a Mariana Mortágua fazer a intervenção de fundo do partido. Isto, claro, sem abdicar das críticas, como quando disse que o que o Governo estava a pedir ao Bloco é que “enterre a cabeça na areia, como uma avestruz, fingindo não ouvir, não ver, não entender nada”.

Foi nessa intervenção mais de fundo que deixou uma porta aberta para a viabilização do Orçamento do Estado, mas com as condições do costume. “Se o Governo ainda admitir reforçar o SNS, se proteger quem está sem emprego” e se proteger o Estado da “pilhagem” financeira, então o BE admite um “compromisso”.

Que é como quem diz, se o Governo aumentar a abrangência da nova prestação social de forma a incluir mais gente do que em 2020, se o Governo aumentar as contratações no SNS face ao que estava previsto e se der melhores condições para os médicos do SNS e se o Governo tirar a autorização de despesa ao Fundo de Resolução para o Novo Banco sem antes haver uma auditoria prévia, então sim haverá compromisso. Mas o Governo nem ligou a esta margem de abertura e não foi ao repique.

O único sinal de abertura tinha sido dado antes disso quando o vice-presidente da bancada do PS, João Paulo Correia, lançou a escada a que o BE mudasse o sentido de voto da generalidade para a votação final global com uma espécie de convite: “Esperávamos poder contra convosco naquilo que é mais importante que é não deixar ninguém para trás”. Mas também disse que a posição do Bloco era uma “desilusão” e todo o debate daí para a frente foi duro entre os dois partidos. O convite pareceu assim mais um pró-forma. O Bloco está fora.

… mas deixou janela aberta para leis laborais

O Bloco está fora do Orçamento. Mas isso pode não ser o mesmo do que dizer que a relação entre os dois ex-parceiros morreu para sempre. Em resposta ao deputado bloquista José Manuel Pureza, que tinha criticado “a aliança sistemática entre o PS e a direita (e os patrões) em matéria de leis laborais”, António Costa mostrou que aquela janela ainda estava aberta: assinar um compromisso escrito, para o horizonte da legislatura, com matérias de cariz laboral extra orçamentais. “Estamos sempre a tempo”, disse. “Estamos disponíveis para assinar um documento com o BE para rever as leis laborais ao longo da legislatura”, insistiu ainda o primeiro-ministro referindo-se ao tal documento escrito com o qual o Governo sempre quis comprometer o Bloco.

Mas as divergências nas leis laborais são de fundo: o BE quer revogar as alterações do tempo da troika (em matéria de indemnização por despedimento e dias de férias), e o Governo nem quer ouvir falar nisso. Daí que, se o Governo fez orelhas moucas à porta deixada entreaberta pelo BE, o BE fez orelhas moucas à janela deixada aberta pelo Governo.

A guerra dos números e os acertos à margem do debate

António Costa ainda tentou convencer o Bloco de Esquerda a mudar de ideias sobre o Orçamento: disse que o novo apoio social, afinal, vai abranger 258 mil pessoas e custar 633 milhões, gabando-se de que são valores acima do que o Bloco propôs (100 mil e 420 milhões, respetivamente). Mas não teve o efeito pretendido. Muito pelo contrário.

É que o Bloco não gostou que Costa tivesse passado a mensagem de que os bloquistas só queriam abranger na medida 100 mil pessoas. E apressou-se a enviar aos meios de comunicação social uma nota a corrigir os números apresentados pelo primeiro-ministro: dizia o partido que desde cedo identificou um universo de 198 mil pessoas “que iam ficar totalmente desprotegidas” perante “as alterações na proteção social em 2021”.

Por isso, “propôs, em setembro, cobrir esse universo” através de três medidas: alargar e prolongar o subsídio de desemprego (absorvendo 54 mil pessoas que não tiveram acesso ou que perderão o subsídio); alargar e prolongar o subsídio social de desemprego (cobrindo 44 mil pessoas que não cabem hoje nas regras apertadas); e criar uma nova prestação para todos aqueles que ficassem de fora destas duas alterações (cerca de 100 mil pessoas).

Mas “o Governo rejeitou que esse universo pudesse ser coberto por alterações às regras do subsídio de desemprego e do subsídio social”. Em vez disso, propôs que essas 198 mil pessoas fossem cobertas pelo apoio extraordinário. Esta explicação toda para quê? É que o Bloco achou injusto que o Governo comparasse o universo que quer agora abranger na medida não com os 198 mil, mas com os 100 mil. E quando o deputado bloquista José Manuel Pureza retomou o tema pediu a Costa que retificasse esses valores.

António Costa respondeu-lhe: “Sabe bem que ainda no domingo foi comunicado por escrito ao Bloco que, para além daquilo que consta da proposta de lei, o Governo aceitava e estava disponível para viabilizar, como viabilizará, na especialidade, um alargamento desta prestação social”. Costa adiantou, como o Observador já tinha escrito, que o Governo está disponível para “um alargamento desta prestação social de forma a cobrir todos aqueles que têm subsídio de desemprego e vão perder o subsídio de desemprego em 2021, independentemente da condição de recursos”.

As divergências repetiram-se também nas contratações de profissionais para o SNS, um dos temas que tem suscitado maior divergência entre Bloco e Governo. A bloquista Joana Mortágua disse duvidar da contratação de 4.200 profissionais. “Não há nenhuma prova nem nenhum plano para acreditar que é possível encontrar estes médicos e ultrapassar o problema das vagas vazias”, afirmou. E também aí houve acertos de contas à margem do debate — desta vez, da parte do Governo, que fez chegar à comunicação social um calendário de contratações no SNS que acordou com o Bloco já depois de entregue a proposta de Orçamento do Estado para 2021, a 12 de outubro.

Calendário do Governo de contratações do SNS

Segundo o documento, a maior parte de trabalhadores (1.554) será contratada no primeiro trimestre do próximo ano. Ao longo dos quatro trimestre de 2021, o Governo compromete-se a contratar mais 1.083 assistentes operacionais, 518 assistentes técnicos, 764 enfermeiros, 1.500 médicos, 98 técnicos superiores e 379 profissionais para outras categorias técnicas.

A calendarização das contratações para o SNS tinha sido uma das exigências do Bloco que o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Duarte Cordeiro, disse na segunda-feira ter margem para ser aceite pelo Governo.

O abraço ao PCP, ao PAN, ao PEV e às deputadas não inscritas

Por várias vezes ao longo do debate, António Costa fez referência aos parceiros PCP, PAN, PEV e deputadas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. Tudo para mostrar que esses foram os que não “desertaram” da esquerda, em contraponto com o Bloco de Esquerda, que “desertou” e se juntou à direita. A estes parceiros foi sempre mostrando abertura para continuar a dialogar na especialidade, com “seriedade” e sem “espalhafato”. Como sempre foi.

Em resposta a um conjunto de medidas que o comunista Jerónimo de Sousa elencou, Costa até admitiu que não poderia ir a todas. Mas que mantém a boa fé e que, se dúvidas houvesse, não é com o PSD que o Governo quer convergir. “Não vou convergir em tudo o que enunciou”, admitiu desde logo António Costa, sublinhando que confia que, se “trabalharmos seriamente como temos feito, chegaremos a um ponto que nos permitirá continuar a caminhar enquanto houver estrada para andar”. “Tenho a certeza de que todos trabalharemos para chegarmos ao nosso destino”, disse ainda. Mas Costa sabe que ainda há uma dúvida sobre o desfecho final do Orçamento: o PCP vai-se manter no barco até ao fim? A votação final é só no fim de novembro.