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Filipe Amorim/Global Imagens

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Determinada ou incendiária: quem é Ana Rita Cavaco, a bastonária dos enfermeiros?

Tornou-se a cara da contestação dos enfermeiros e acabou processada pelo Governo. As polémicas, as guerras e as ligações ao PSD da bastonária que atrai elogios e críticas.

O comício ia acontecer em frente ao colégio diocesano que Ana Rita Cavaco frequentava em Almada, a cidade onde nasceu e cresceu. Ela e os colegas gostavam de política, por isso não perderam a oportunidade: queriam ouvir o homem que, minutos depois, estaria a discursar, empoleirado em cima de uma carrinha de caixa aberta. “Achámos que ele tinha qualquer coisa de diferente e foi isso que nos fez filiar na JSD [Juventude Social Democrata].” Na altura, Ana Rita Cavaco tinha 14 anos, agora tem quase 43. O tal homem era Aníbal Cavaco Silva.

“Gostava — e ainda gosto — de pessoas irreverentes e descontraídas”, explica a bastonária dos Enfermeiros, dizendo que foi isso que viu no então primeiro-ministro. “Depois verifiquei que ele não era assim. Nunca cheguei a votar nele.”

Começou na JSD e depois foi membro do conselho nacional do PSD durante mais de 15 anos, até 2018 — PSD/Facebook

PSD/Facebook

Mas a ligação ao PSD estava lançada e a vida política de Ana Rita Cavaco também, num caminho que estaria sempre cruzado com a enfermagem, a área onde viria a formar-se. Ao Observador, a bastonária (que também foi conselheira nacional do PSD) diz que quis ser enfermeira “desde sempre”. A mãe teve uma depressão pós-parto da qual nunca recuperou — e foram mais as vezes que Ana Rita tratou dela do que o contrário.

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Desses tempos até agora, criou uma imagem reivindicativa, polémica e desafiadora. Chegou a ser suspensa durante 30 dias por assinar folhas de ponto quando não estava a trabalhar — e respondeu com uma queixa-crime contra o então presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo; acabou por ser despedida num outro processo disciplinar — e foi indemnizada mais tarde por isso; está a ser investigada por alegadas irregularidades na gestão da Ordem e acumula processos por difamação, como denunciada ou queixosa — numa guerra, por exemplo, com Graça Machado, seu antigo braço-direito, com quem se incompatibilizou.

Autora de declarações polémicas — contra as políticas de saúde, mas também sobre classes específicas, como a dos médicos — deu à Ordem dos Enfermeiros um mediatismo que não tinha e passou a ser presença habitual nas televisões e nos jornais. Já este ano, o Governo decidiu processá-la, depois de o primeiro-ministro, António Costa, a ter acusado de violar a lei das ordens profissionais, por apoiar e incentivar a greve cirúrgica dos enfermeiros, e de o secretário de Estado Adjunto da Saúde, Francisco Ramos, ter suspendido as relações institucionais com a Ordem pelos mesmos motivos. Quem a conhece há vários anos, garante, porém, que não vê diferenças em relação ao que era, antes do mediatismo: nunca teve problemas em dizer aquilo que pensa, nem teme as consequências dessa frontalidade.

Ana Rita Cavaco num protesto dos enfermeiros, em setembro de 2017 (MÁRIO CRUZ/LUSA)

MÁRIO CRUZ/LUSA

Será incendiária, como também já lhe chamaram? Ana Rita Cavaco recusa a crítica. Defende que está a fazer aquilo que lhe compete enquanto bastonária. O seu perfil não é, ainda assim, fácil de traçar — e não é só por causa das opiniões extremadas sobre ela. Alguns dos que assumiram posições críticas sobre ela, sobretudo nos anos mais recentes, preferiram não responder ao Observador. Outros pareceram querer evitar uma colagem à figura de Ana Rita Cavaco, numa altura de tensão entre a Ordem e o Governo e com novos episódios já marcados.

Esta sexta-feira, os enfermeiros organizaram uma “Marcha Branca” em Lisboa, com a participação da bastonária. O Diário de Notícias escreveu que o transporte de cerca de quatro mil enfermeiros foi pago pela Ordem. “É para isto que se pagam quotas”, responde a bastonária, garantindo que a marcha não é uma ação sindical. Caso diferente será o do protesto já anunciado para abril. O Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal vai convocar uma “greve geral, prolongada e muito dura”.

Queriam que fosse médica, mas ela queria ser enfermeira

Com a doença da mãe, Ana Rita Cavaco acabou por crescer com os avós maternos. A avó tinha um sonho para a neta: que fosse médica. Por isso, quando acabou o ensino secundário no Externato Frei Luís de Sousa, onde andava desde os três anos, a avó fez-lhe uma candidatura para a Universidade de Oxford. Ana Rita, por cá, candidatava-se às escondidas à Escola Superior de Enfermagem de Calouste Gulbenkian, em Lisboa (agora ESEL). E entrou.

Na altura, conta, “havia menos reconhecimento da importância dos enfermeiros”. “Tinha boas notas, e continuei a ter no primeiro ano do curso, e as professoras diziam-me que devia fazer permuta para medicina.” Mas não era isso que queria.

Durante o curso, tornou-se presidente da associação de estudantes. E foi assim que conheceu Luís Barreira, agora vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros, na altura presidente da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Calouste Gulbenkian, em Braga. Separados por 360 quilómetros, eram alunos do primeiro ano nos respetivos cursos e ambos faziam parte de listas rivais na candidatura à presidência da Federação Nacional de Associações de Estudantes de Enfermagem (FNAEE). A lista de Luís Barreira perdeu, mas, no mesmo ano, a nova presidente da federação, Ana Rita Cavaco, convidou-o para se juntar à sua equipa. “Isto demonstra bem a personalidade e o carácter dela”, diz ao Observador.

Ana Rita Cavaco e o amigo Luís Barreira, vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros — Ana Rita Cavaco/Facebook

Ana Rita Cavaco/Facebook

Para o segundo mandato, concorreram na mesma lista: ela presidente, ele vice-presidente, como agora na Ordem dos Enfermeiros. Nos quatro anos em que estiveram nos cargos (até 1997), Barreira diz que foram sempre “muito combativos sobre aquilo que tinha de ser feito pelo ensino do bacharelato”. Na altura, lutavam para que o curso passasse a ser uma licenciatura, o que acabou por acontecer. Além disso, conta, conseguiram que as associações de estudantes de enfermagem ficassem ao mesmo nível de outras associações académicas.

“A Ana Rita já tinha o mesmo espírito combativo que tem hoje. E é, claramente, muito mais combativa do que eu. Ela dá a cara, eu fico mais na retaguarda, como suporte.” É assim agora como nos tempos de faculdade, quando se manifestavam em frente aos ministérios da Educação e da Saúde — sempre com os jornalistas a acompanhar os protestos. “Mesmo com toda esta exposição pública, a Maria de Belém Roseira [ministra da Saúde entre 1995 e 1999] recebia-nos e acarinhava-nos”, garante o número 2 da Ordem.

Entre a política e a enfermagem — e o processo por falsificação

Depois de terminar o curso, em 1997, Ana Rita Cavaco especializou-se em saúde comunitária e saúde pública e quase todo o tempo de trabalho como enfermeira foi passado nos cuidados de saúde primários, nomeadamente nos centros de saúde. Um tempo, ainda assim, muitas vezes partilhado — ou interrompido — por cargos dirigentes ou políticos.

Poucos anos depois de sair da escola superior, aceitou o convite para trabalhar no Ministério da Saúde, como parte da equipa de Carlos Martins, secretário de Estado da Saúde no Governo de Durão Barroso (entre 2002 e 2004). Ao Observador, o antigo governante conta que a escolheu por causa da juventude, da ligação que tinha às associações de estudantes e do interesse pela humanização dos cuidados de saúde que mostrava ter. “Foi traçado um perfil para aquilo que precisávamos e a Ana Rita Cavaco encaixou nesse perfil”, recorda ao Observador.

Apesar da ligação que a enfermeira já tinha com o PSD, Carlos Martins garante nunca lhe ter dado um tratamento diferenciado. “Se se conseguiu manter no gabinete do princípio ao fim, é porque, do ponto de vista ético, era irrepreensível”, assegura. A agora bastonária diz que os dois ficaram amigos e que trabalhavam muito bem juntos — mas, em conversa com o Observador, o antigo secretário de Estado não quis falar da relação atual com Ana Rita Cavaco.

Sobre o passado, recorda apenas que Ana Rita Cavaco era uma enfermeira jovem e irreverente. “Essas características eram bem aceites por mim, porque eu próprio sou irreverente e insatisfeito por natureza”, diz Carlos Martins. “Hoje em dia estará muito mais irreverente do que quando era assessora no gabinete.”

“Hoje em dia estará muito mais irreverente do que quando era assessora no gabinete”, diz Carlos Martins, antigo secretário de Estado da Saúde num Governo do PSD.

Afastada das funções de enfermeira durante mais de três anos por estar no Governo, Ana Rita Cavaco teve de voltar a estudar antes de regressar ao serviço, na área dos cuidados continuados no Centro de Saúde de Alvalade. Mas as coisas não correram bem: a enfermeira não conseguia entender-se com a médica que coordenava a unidade. Esses desentendimentos acabaram por fazer com que fosse transferida para uma das extensões do Centro de Saúde da Graça — a Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados das Mónicas. “Para a Graça só iam os cowboys ou quem estava de castigo”, ter-lhe-ão dito na altura.

No novo posto de trabalho, as funções de coordenação estavam atribuídas ao enfermeiro António Galvão e a relação entre os dois correu melhor. O agora enfermeiro da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) no Hospital de Santa Maria só tem elogios para fazer. Ao Observador, diz que Ana Rita Cavaco “foi sempre uma profissional empenhada e bem integrada na equipa” e que era das primeiras a querer trabalhar nos casos que mereciam uma atenção especial, por ter “um sentido muito agudo das necessidades dos doentes”. Dos doentes e dos colegas: “Nunca estava satisfeita e mobilizava-os para a defesa dos seus direitos”.

Ana Rita Cavaco tem estado ao lado dos enfermeiros nos protestos, mas já antes de ser bastonária se batia pelos direitos destes profissionais — Ana Rita Cavaco/Facebook

Ana Rita Cavaco/Facebook

António Galvão confessa-se um bom amigo da enfermeira, mas admite que, como qualquer profissional, Ana Rita Cavaco tinha os seus defeitos. As discussões nas reuniões de equipa eram frequentes, mas os diferendos também eram resolvidos ali. “Quando corre tudo bem dentro de uma equipa, alguma coisa está mal. É preciso disrupção. E a Ana Rita tinha esse papel”, diz o enfermeiro. “Crescemos todos com as diferenças e com as cedências.” Porque, nestas batalhas, Ana Rita Cavaco não ganhava sempre. “Se fosse menos aguerrida, conseguia expressar-se melhor.” O também enfermeiro-chefe da Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados dos Olivais diz que, nesse aspeto, Ana Rita Cavaco “está completamente diferente” — agora, fala melhor.

Quando saiu do Centro de Saúde da Graça para ir coordenar outra unidade, António Galvão sugeriu à então diretora do centro de saúde que Ana Rita Cavaco ficasse a coordenar a equipa de enfermeiros da extensão das Mónicas. Foi nesse período que aconteceu um dos conflitos com contornos mais graves — e, de novo, com ligações à enfermagem e à política.

Acusada de ter assinado a folha de ponto em duas semanas nas quais não esteve a trabalhar, em 2013, a enfermeira foi alvo de um processo disciplinar por falsificação, por parte da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT). A agora bastonária alegava que era uma prática comum e autorizada, para compensar as horas extraordinárias que não eram pagas. Mas o argumento não foi aceite: internamente, foi condenada a 30 dias de suspensão e o caso foi também encaminhado para o Ministério Público. Esse processo, porém — e segundo a própria — não passou da fase de inquérito e acabou por ser arquivado já em 2018.

“Podem pôr-me os processos que quiserem que não é isso que me vai calar”, avisa Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros.

Na resposta, Ana Rita Cavaco também avançou para tribunal. E em duas frentes: recorreu da pena que lhe foi aplicada e pediu 20 mil euros de indemnização ao Ministério da Saúde, alegando que “adoeceu gravemente” e ficou quase um ano de baixa por causa do processo disciplinar; e apresentou uma queixa-crime contra Luís Cunha Ribeiro, antigo presidente da ARS-LVT, por denegação de justiça, prevaricação e abuso de poder.

Na tese da enfermeira, o processo disciplinar era, na verdade, o reflexo de uma perseguição política e, segundo Ana Rita Cavaco, o dirigente da ARS-LVT teria dito, entre amigos, que arquivaria o inquérito pela alegada falsificação caso ela parasse de o criticar. Na altura, a enfermeira era também membro do Conselho Nacional do PSD e, nas reuniões daquele órgão do partido, fazia muitas críticas a Cunha Ribeiro. Na queixa-crime, citada pelo jornal Público, falava em dois casos: numa das reuniões, e perante o então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, tinha acusado o presidente da ARS-LVT de esbanjar dinheiros públicos em grandes almoços semanais, de 90 euros por pessoa. Mais tarde, denunciou que Cunha Ribeiro vivia num apartamento de Paulo Lalanda e Castro, administrador de uma empresa farmacêutica que chegou a ser arguido da Operação Marquês, a quem teria atribuído grandes contratos públicos de aquisição de plasma sanguíneo.

Cunha Ribeiro negou as acusações. No final de 2016, foi detido por alegadamente ter sido corrompido por Lalanda e Castro.

Outras funções, outros dois processos disciplinares — e o despedimento

Os problemas disciplinares no Centro de Saúde da Graça não foram, contudo, os primeiros. Entre 2008 e 2010, Ana Rita Cavaco foi supervisora da Linha Saúde 24, por onde antes já tinha passado, quando era ainda apenas uma linha pediátrica, a “Dói, dói? Trim, trim”. Ainda agora, mantém as críticas: diz que “a linha tinha muitos problemas” e que o contrato com o Estado “estava mal feito”. Acusa a empresa que a geria, do grupo da Caixa Geral de Depósitos, de pedir aos supervisores, como ela, que mentissem sobre o tipo de chamadas que eram recebidas, porque o Estado pagava diferentes valores consoante o tipo de pedidos dos utentes.

Nesse período, a enfermeira teve dois processos disciplinares. Diz que o primeiro foi por ter autorizado que os colaboradores comessem pizza dentro do centro de atendimento, em vez de o fazerem na copa, e por não ter cedido a cadeira a uma colega. Como pena,  foi suspensa. Depois, foi acusada de ter tapado o leitor biométrico que permitia aceder ao edifício com líquido corretor. A enfermeira nega, mas acabou por ser despedida.

Também aqui, não aceitou a decisão e recorreu à justiça. Do seu lado teve, por exemplo, Francisco George, então diretor-geral da Saúde, que se disponibilizou para testemunhar a seu favor. O médico recorda-a, agora, como uma pessoa perseverante, com uma “especial energia para levar para a frente as suas ideias”. E foi assim naquele caso: o tribunal deu-lhe razão e Ana Rita Cavaco acabou por receber 51 mil euros de indemnização por causa do despedimento, num processo que só terminou em 2012. Também podia ter voltado ao serviço, mas não quis.

Os amigos dividem-se sobre se essa característica é um defeito ou uma virtude. “Leva até às últimas consequências aquilo que para ela é uma questão de princípio”, diz Luís Barreira.

A chegada atribulada à Ordem e o mandato marcado por suspeitas

Ana Rita Cavaco é bastonária da Ordem dos Enfermeiros desde 30 de janeiro de 2016, num mandato que termina no final deste ano. Mas não foi a primeira vez que se candidatou. Já em 2011 tinha feito campanha contra Germano Couto, eleito num processo que a enfermeira diz ter estado cheio de irregularidades. A começar pelo facto de ela própria, naquela altura, não ser considerada elegível, apesar de toda a restante lista o ser. A Ordem alegava que Ana Rita Cavaco não tinha ainda 15 anos de serviço, exigidos a um candidato a bastonário. A enfermeira contesta, diz que não lhe contaram os anos em que esteve no Governo — primeiro no Ministério da Saúde, depois no Ministério da Agricultura.

Além disso, garante que houve fraude na contagem dos votos na secção sul da Ordem. A lista derrotada impugnou os resultados e perdeu no julgamento de primeira instância, mas recorreu para o Tribunal da Relação e ganhou. E voltou a ganhar no recurso apresentado no Supremo Tribunal de Justiça. O ato eleitoral foi anulado, mas a decisão só chegou em 2015, quando o mandato de Germano Couto já estava a chegar ao fim.

Germano Couto venceu Ana Rita Cavaco nas eleições de 2011

MÁRIO CRUZ/LUSA

Nesse ano, Ana Rita Cavaco voltou a candidatar-se e venceu. Tomou posse em janeiro de 2016 e menos de um ano depois já tinha divisões graves na equipa, que foram o ponto de partida para uma guerra interna que acabou com o afastamento da sua vice-presidente, Graça Machado, e com uma série de processos em tribunal, a maioria por difamação.

Ana Rita Cavaco diz que a mulher que foi, durante alguns meses, o seu braço-direito foi afastada da Ordem e impedida de exercer as funções de enfermeira durante cinco anos por causa de irregularidades — nomeadamente a acumulação ilícita de dois salários. Graça Machado contrapõe que se tornou incómoda para a bastonária, quando começou a questionar práticas alegadamente ilegais impostas por ela.

O caso acabaria por ser denunciado publicamente pela antiga vice-presidente e pelo antigo tesoureiro, José Lopes, também afastado, numa reportagem da TVI, quando já estava a ser investigado pelo Ministério Público.

Uma reportagem que deu origem a um inquérito

O mandado de busca executado por inspetores da Polícia Judiciária a 7 de março de 2017, no edifício da Ordem dos Enfermeiros, em Lisboa, foi assinado pela procuradora adjunta Susana Araújo quatro dias antes. Nesse documento, a que o Observador teve acesso, a magistrada da 9.ª secção do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa mandava que fossem apreendidos todos “os objetos, documentos e outros elementos de prova relacionados com a prática dos factos em investigação” que podiam enquadrar os crimes de falsificação de documento, peculato e abuso de poder, por irregularidades na gestão das verbas da Ordem dos Enfermeiros.

Irregularidades essas que a procuradora elencou ao longo de seis alíneas e que foram denunciadas por Graça Machado e por José Lopes. Os então membros da Ordem falavam na existência de “um acordo de compensação mensal aos membros do conselho diretivo, através do pagamento de ajudas de custo fictícias”. Uma forma de contornar a lei e os impostos.

Esse suposto acordo vigoraria desde o anterior mandato, mas teria sido revisto numa reunião do Conselho Diretivo, em 2016, ficando definido que a bastonária receberia mensalmente 2.800 euros, os vice-presidentes e os presidentes das secções regionais receberiam 1.400 e os vogais e tesoureiros receberiam 467 euros, como se lê na ata dessa reunião. Os denunciantes acusavam, ainda, a bastonária Ana Rita Cavaco de utilização abusiva do cartão da instituição — exibindo documentos comprovativos de como pagou cabeleireiro e comprou roupa na Mango por uma vez, com o cartão da Ordem.

"Terão elaborado documentos de conteúdo inverídico e, com base neles, garantido o pagamento de remunerações que não eram devidas por não terem correspondência com serviços prestados, bem como a concessão de outros benefícios pecuniários, causando dessa forma ao Estado prejuízo de milhares de euros".
Comunicado da Procuradoria Geral da República, em março de 2017

Logo após as buscas da PJ, a bastonária Ana Rita Cavaco, que tinha sido eleita a 5 de janeiro de 2016, falou à comunicação social. “As buscas versam sobre toda a atividade da Ordem desde os mandatos anteriores até aos dias de hoje”, explicou. Sem especificar o que estava em causa, avançou apenas que a investigação, em segredo de justiça, incidia sobre irregularidades “do ponto de vista contabilístico”. “Para nós é desejável que isto esteja a acontecer”, referiu. Ano e meio depois, ao Observador, considerou que a busca tinha sido feita na sequência de uma participação que fez contra o seu anterior bastonário e não na sequência da reportagem, remetendo para o comunicado então emitido. Mas não é isso que refere o mandado.

Ana Rita Cavaco atém-se ao comunicado emitido pela Procuradoria Geral da República, que explicou que neste inquérito se investigava “a prática de crimes de falsificação de documento, peculato e abuso de poder”, apesar de sublinhar que os suspeitos eram ex-dirigentes, e não os atuais como se depreende do mandado de busca.

A sede da Ordem dos Enfermeiros foi alvo de buscas em fevereiro de 2017

MAFALDA LEITAO/LUSA

A assembleia geral que legalizou os pagamentos polémicos — o episódio mais recente

Nos documentos que Graça Machado entregou ao Ministério Público, há também recibos de ordenado que mostram que, de facto, a bastonária recebeu os referidos 2.500 euros de compensação (uma vez que prescindiu do ordenado de origem) durante os três meses seguintes. No ano passado, ao Observador, Ana Rita Cavaco voltou a negar qualquer irregularidade: “Neste mandato, nunca se pagou ajudas de custo através de quilómetros fictícios, nem, obviamente, quilómetros fictícios a quem quer que seja. Pelo contrário, eram os autores dessa imputação que o faziam. Foram, de resto, juntos ao processo pela Ordem documentos que o demonstram.”

Se os pagamentos eram irregulares, como dizem os acusadores, entretanto deixaram de o ser. Em 2018, a Ordem fez aprovar, numa assembleia realizada na Madeira, o “Regulamento de Recrutamento, Seleção e Condições para o Exercício de Funções”, que não só prevê a existência de cargos de confiança pessoal — algo que Graça Machado e José Lopes criticavam na forma de trabalhar da bastonária — como também vem regular o tema que acabou por tornar-se polémico: o tal subsídio de função,  que a Ordem garante não ter qualquer relação com o reembolso de despesas de deslocação.

Este regulamento fará parte de uma estratégia de reestruturação interna aprovada em 2017, numa reunião do conselho diretivo, logo após a saída de José Lopes do cargo de financeiro. E tem uma particularidade: corrige todos os procedimentos adotados no início do mandato de Ana Rita Cavaco e define um novo subsídio de função. Assim, quem for para bastonário da Ordem dos Enfermeiros passa a receber um vencimento base igual ao de um enfermeiro diretor grupo B. São cerca de 3.400 euros brutos.

Graça Machado pôs um processo por difamação contra Ana Rita Cavaco. Ela, cinco elementos da Ordem e a própria associação pública apresentaram uma queixa crime contra a enfermeira Graça por sete crimes de difamação e o número de processos cíveis correspondente para obterem uma indemnização por danos morais.

Como esse novo regulamento tem efeitos retroativos, diz Graça Machado, resolve, de forma retroativa, os pagamentos suspeitos passados que levaram a Polícia Judiciária à sede da Ordem dos Enfermeiros em 2017. A bastonária recusa qualquer ligação entre uma coisa e outra.

As declarações polémicas — e a ruptura com Governo

No meio das guerras internas, Ana Rita Cavaco foi juntando também algumas inimizades fora da Ordem: primeiro por causa de declarações públicas; depois, por causa do apoio declarado à chamada greve cirúrgica dos enfermeiros, que paralisou blocos operatórios em todo o país, causando o adiamento de milhares de cirurgias.

Pouco depois de ter tomado posse, em entrevista à Renascença, Ana Rita Cavaco disse que, nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, a eutanásia “já é de alguma forma praticada, com médicos que sugerem essa solução para alguns doentes”, garantindo ter exemplos concretos, de situações que ela própria viveu: “Vi casos em que médicos sugeriram administrar insulina àqueles doentes para lhes provocar um coma insulínico. Quem trabalha no SNS sabe que estas coisas acontecem por debaixo do pano”.

A Ordem dos Médicos reagiu de imediato, acusando a bastonária de ligeireza, ao fazer afirmações tão graves que punham em causa os profissionais de saúde, e prometendo apresentar queixa por causa disso.

Enfermeiros. Administrador do Hospital de Guimarães acusa bastonária de incentivar “violação do direito à privacidade”

Ainda nesse ano, voltou a gerar controvérsia ao dizer que alguns doentes passavam fome ou não recebiam a medicação devida. Num debate público, explicou que, numa unidade de saúde, que recusou nomear, alguns doentes não recebiam alimentação havia dois dias, por faltarem enfermeiros e auxiliares. E que noutros hospitais, quando a afluência de utentes era grande, não havia quem administrasse os medicamentos.

Já este ano, a bastonária voltaria a indignar os médicos, ao dizer, numa entrevista à SIC, que “um médico no primeiro ano de internato não é um médico” — uma declaração considerada “falsa e atentatória da dignidade” daqueles profissionais de saúde pelo bastonário Miguel Guimarães.

Antes de se incompatibilizar com os médicos, neste último caso, já estava incompatibilizada com o Governo. Na sequência do apoio que a bastonária deu à greve cirúrgica, e das declarações que foi fazendo, o secretário de Estado Adjunto da Saúde anunciou um corte das relações institucionais entre o ministério e a Ordem. E, pouco depois, o primeiro-ministro anunciava que o Governo ia avançar com uma queixa contra Ana Rita Cavaco, alegando que estava a violar o estatuto das ordens profissionais ao envolver-se nas ações sindicais.

A bastonária nunca deixou os críticos sem resposta. Quando António Costa classificou as greves como “selvagens” e “absolutamente ilegais”, escreveu no Facebook: “Com os poderosos que ganharam milhões nunca o ouvi com voz tão grossa e tão nervoso, nem relativamente aos milhões que voaram da CGD e de outros bancos, nem à corrupção ou às ilegalidades de figuras do Estado”.

Secretário de Estado suspende relações institucionais com Ordem dos Enfermeiros

Há quem acuse a bastonária de só dar voz às lutas dos enfermeiros e apoiar os sindicatos por querer dificultar a vida a um Governo socialista. Mas Ana Rita Cavaco responde: “O que dizia no tempo de Passos Coelho está gravado no conselho nacional do PSD e eram as mesmas coisas”. Luís Barreira, que não tem filiação a qualquer partido, diz que isso não faz sentido: “O que vemos na Ana Rita é o que ela já fazia dentro do partido”. O social-democrata José Eduardo Martins concorda: “Se fosse um Governo PSD, ela seria tão ou mais dura”.

Quando compara os Governos PSD e PS, Ana Rita Cavaco diz que “ambos tiveram coisas más para os enfermeiros, a começar pela não resolução dos problemas da classe”. Com o atual Governo ficou desiludida por causa de falsas expectativas criadas: primeiro com o vídeo divulgado durante a campanha eleitoral de 2015, no qual António Costa deixava uma mensagem direta aos enfermeiros; depois, por achar que um Governo da esquerda unida seria mais sensível às questões dos trabalhadores. “Comecei a perceber que não”, diz.

[“Contamos convosco e vamos trabalhar convosco para todos em conjunto melhorarmos o Serviço Nacional de Saúde”, disse o então candidato a primeiro-ministro no vídeo]

Marco António Costa, ex-vice-presidente do PSD, lembra bem os tempos em que ele era dirigente partidário e ela militante. “Ela tinha intervenções muito tumultuosas e eu tinha de ouvir as queixas”, diz ao Observador. E acrescenta: “Se as pessoas disserem o que pensam nos sítios apropriados, isso não é um problema. E as coisas que dizia eram sérias e tinham de ser abordadas”. Mas a forma como ia contra tudo e contra todos não criou simpatia dentro do conselho nacional, diz ao Observador José Eduardo Martins.

Marco António Costa, que chegou a ser orador convidado no congresso organizado pela Ordem dos Enfermeiros, vê na bastonária uma pessoa “bastante independente, que pensava pela sua própria cabeça e que não fazia fretes a ninguém”. Ao Observador, não assume que são bons amigos, mas a bastonária admite que são próximos. Não quer dizer que estivessem sempre de acordo, mas Marco António Costa nunca lhe pediu que deixasse de fazer o tipo de intervenções que fazia no conselho nacional, onde esteve mais de 15 anos — só não se candidatou no congresso que elegeu Rui Rio.

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros confessa-se uma grande amiga de Marco António Costa, ex-vice-presidente do PSD — PSD/Facebook

PSD/Facebook

José Eduardo Martins, antigo membro do conselho nacional da JSD, conhece Ana Rita Cavaco há cerca de 25 anos e diz que ela é bruta, mas “escolhe sempre o lado do bem”: “Tem liberdade e coragem. Não tem papas na língua e eu gosto de pessoas assim”. O social-democrata admite, ainda assim, que “há de haver momentos em que não tem razão, mas tem convicção”.

A relação com os sindicatos. “Acaba por trazer prejuízos”

Quando concorreu ao cargo de bastonária, em 2015, Ana Rita Cavaco teve como opositora Lúcia Leite, que tinha sido vice-presidente de Germano Couto. A enfermeira é agora presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE) — sindicato onde está Graça Machado, antiga vice-presidente da Ordem — e diz que as duas mantêm uma relação de cordialidade e respeito institucional, mas que a separação de poderes é clara. “Não discutimos estratégias sequer”, garante ao Observador. Aliás, a presidente da ASPE até critica a associação excessiva da Ordem aos movimentos sindicais: “Acaba por trazer prejuízos”. Mas também entende que a “bastonária deve ter um papel ativo” e deve “ser a voz dos enfermeiros”.

O Governo de António Costa critica Ana Rita Cavaco por participar nas manifestações dos sindicatos — Ana Rita Cavaco/Facebook

Ana Rita Cavaco defende, de forma inflexível, essa posição. Insiste que um bastonário deve sempre apoiar os enfermeiros e volta a fazer o contraponto com os médicos para o sustentar, alegando diferenças de tratamento: “O bastonário da Ordem dos Médicos também disse que ia aderir a uma greve. Mas há aqui uma dualidade de critérios que acho que é por eu ser mulher.” A enfermeira referia-se à forma como é vista pelo Governo. “Estavam habituados a uma classe subserviente”, diz. Mas isso acabou.

A bastonária também já teve a sua quota de lutas sindicais. Inscreveu-se no Sindicato dos Enfermeiros (SE) depois de acabar o curso e chegou a ser delegada sindical em Lisboa. “É uma profissional que muito cedo se começou a interessar por corrigir as coisas que estavam mal”, diz ao Observador José Azevedo, atual presidente desse sindicato. “Tenho-a como uma boa pessoa, uma profissional de craveira acima da média.”

Sobre o papel que tem desempenhado desde que assumiu a Ordem, José Azevedo só tem elogios — em oposição à bastonária anterior. “A antiga bastonária [Maria Augusta Sousa] fundou o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses e 10 anos depois passou para a Ordem. Não dava para perceber onde começava a Ordem e acabava o sindicato.” Para o sindicalista, Germano de Sousa, antigo presidente do Conselho Diretivo Regional da Secção Regional do Norte da Ordem entre 2008 e 2011, deu continuidade a esta linha de gestão. “Esta bastonária teve o condão de limpar tudo.”

"A Ana Rita mostra que está sempre bem e pronta a continuar, mas já lhe sinto algum cansaço”, diz Luís Barreira, vice-presidente da Ordem dos Enfermeiros.

O mandato acaba este ano e Ana Rita Cavaco não fala, para já, em recandidatura. Luís Barreira, o vice-presidente, também não. “A Ana Rita mostra que está sempre bem e pronta a continuar, mas já lhe sinto algum cansaço”, conta, dizendo que também teme pela segurança dela, por receber mensagens ameaçadoras.

“É um trabalho muito cansativo, muito intenso. Não me parece que passaram três anos, parece que passaram dez”, diz a bastonária. Explica essa intensidade com as mudanças que quis fazer dentro da organização e ao corte com as gestões anteriores. Além disso, admite que estava determinada em fazer com que a Ordem e os enfermeiros tivessem mais visibilidade pública. E conseguiu: “Se estamos demasiado visíveis? Não, as pessoas é que não estão habituadas a ver os enfermeiros reclamar”.

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