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Deus, Constituição e flirts. Os discursos de Bolsonaro nas entrelinhas

Via Facebook e perante as câmaras, o recém-eleito Presidente apresentou duas versões de si mesmo: a de um estadista responsável para o mundo e a do candidato que não desilude os seus apoiantes.

Primeiro no Facebook quase de improviso, depois perante as câmaras de televisão a ler um documento já escrito e, por fim, de regresso ao conforto das redes sociais. Foi assim que Jair Bolsonaro reagiu aos resultados desta noite eleitoral. Houve, ao contrário do que aconteceu na primeira volta, um discurso conciliador que defendeu a Constituição e a democracia, garantiu um país inclusivo a diferentes “cores” e “orientações” e prometeu união entre nordestinos e sulistas.

O discurso perante as câmaras de televisão foi feito a ler de um papel, com um texto pré-escrito — em tudo semelhante a qualquer político típico. Só que, antes dessa intervenção mais formal, Bolsonaro relembrou a quem votou nele por ser polémico e fora da caixa que as suas ações são orientadas por valores conservadores, invocando repetidamente Deus e citando a Bíblia — e acrescentando que é necessário afastar “o extremismo da esquerda” que ameaçava dominar o país, pelo seu flirt com “o socialismo e o comunismo”.

[Veja o vídeo: #EleConseguiu. A noite em que o Brasil virou]

Ao final da noite, o Presidente eleito regressaria ao Facebook para repetir as mesmas ideias — como que a dizer aos seus eleitores que Bolsonaro vestiu o fato de candidato arrumadinho por breves instantes, é certo, mas que não se esqueceu de agir como os que o apoiaram querem: diretamente para o eleitor, através das redes sociais, sem filtro. Mas menos anti-sistema do que foi durante toda a campanha.

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O discurso de Jair Bolsonaro está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

“Eu quero nesse momento agradecer a Deus pela oportunidade. E mais ainda agradecer a Deus que, pelas mãos de médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde da Santa Casa de Juiz de Fora e do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, operaram um verdadeiro milagre, mantendo a minha vida, num momento em que jamais poderia esperar, mas que, graças a Deus, repito, foi superado. Com toda a certeza, ele reservou algo para mim e para todos nós aqui no Brasil.”

Jair Bolsonaro inaugura as suas declarações para o Brasil e para o Mundo com múltiplas referências a Deus — seriam sete ao longo de todo o primeiro discurso via Facebook, contra apenas quatro no discurso “oficial” lido mais tarde, perante as televisões. Em ambos os discursos, contudo, esteve presente o versículo 32 do capítulo 8 do evangelho segundo João: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” É a confirmação clara do pendor conservador do candidato tornado Presidente, que quer provar que mantém as suas convicções religiosas. Bolsonaro assume-se como Messias não apenas de nome, mas como defensor da “verdade” que diz ter faltado ao Brasil liderado pela PT, trazendo-a agora para o Planalto e para o Congresso. Pelo meio, relembra que também ele assumiu uma dimensão de quase mártir, aquando do seu esfaqueamento em Juiz de Fora, ao dizer que sobreviveu  porque Deus tinha “reservado algo” para Bolsonaro “e para todos nós aqui no Brasil” — a sua chegada à presidência.

Jair Bolsonaro comunica através de um live no Facebook (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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“Esse primeiro contato meu, via live, deve-se ao respeito, à consideração e à confiança que tenho pelo povo brasileiro. Também só cheguei aqui porque vocês, internautas, povo brasileiro, realmente, vocês acreditaram em mim.”

Bolsonaro deixa claro que decidiu reagir em primeiro lugar não no palanque, numa tribuna, num hotel ou sede de partido e perante as televisões, como é habitual da praxe política. A sua primeira reação é dada através das redes sociais, diretamente para o eleitorado — exatamente como fez na sua campanha. Na primeira volta, Bolsonaro teve direito a apenas oito segundos de tempo de antena televisivo; na segunda, faltou deliberadamente aos debates marcados para passar na televisão. E, através de uma campanha assente sobretudo nas redes sociais, conseguiu a vitória. Portanto, num primeiro momento, evita os mecanismos habituais da política e privilegia o contacto direto com o eleitor “internauta”, como fez durante toda a campanha.

Manifestantes pró-Bolsonaro colocam PT dentro de um "caixão" (Buda Mendes/Getty Images)

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“Não poderíamos mais continuar flirtando com o socialismo, com o comunismo e com o populismo, e com o extremismo da esquerda. Todos nós sabíamos para onde o Brasil estava marchando e clamava por mudanças.”

No único momento em que fala diretamente dos adversários políticos, Bolsonaro define os governos do PT — primeiro de Lula da Silva, depois de Dilma Rousseff — como tendo sido executivos cúmplices do “socialismo”, do “comunismo” e do “populismo”. A ideia do caminho para onde o Brasil estava a “marchar” evoca um fantasma da campanha que a direita levantou várias vezes, acusando o PT de estar a tentar tornar o Brasil numa nova Venezuela.

A Constituição brasileira foi colocada em cima da mesa de um dos vídeos de Bolsonaro transmitidos no Facebook (BETO BARATA/AFP/Getty Images)

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“Nós fomos declarados vencedores desse pleito. E o que eu mais quero é, seguindo ensinamentos de Deus, ao lado da Constituição brasileira, me inspirando em grandes líderes mundiais e com uma boa assessoria técnica e profissional ao seu lado, isenta de indicações políticas de praxe, começar a fazer um governo a partir do ano que vem que possa realmente colocar o nosso Brasil no lugar de destaque. Temos tudo, tudo para sermos uma grande nação.”

Na única referência à Constituição deste primeiro discurso, Bolsonaro aponta para os livros que tem, propositadamente, em cima da mesa. Trata-se da Constituição brasileira, da Bíblia, de uma biografia de Winston Churchill — um dos “grandes líderes mundiais” em que declara querer inspirar-se — e de um livro de Olavo de Carvalho, O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Idiota. Este último representa a tal “assessoria técnica e profissional”, ou não fosse Olavo de Carvalho um dos ideólogos da direita brasileira que mais tem apoiado Bolsonaro.

O Congresso brasileiro está altamente fragmentado, mas é favorável a Bolsonaro (EVARISTO SA/AFP/Getty Images)

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“Temos condições de governabilidade dado os contatos que fizemos ao longo dos últimos anos com parlamentares. Todos os compromissos assumidos serão cumpridos, com as mais variadas bancadas, com o povo em cada local do Brasil em que estive presente.”

Bolsonaro aproveita ainda a comunicação via Facebook para garantir que tem condições de governar o país, graças aos acordos que diz ter andado a fazer “nos últimos anos” com congressistas. Os “compromissos” feitos com “as mais variadas bancadas” indicam que o Presidente eleito deverá manter a estratégia que a sua campanha definiu: formar um Governo minoritário que fará acordos pontuais, não com partidos, mas com “bancadas” — ou seja, grupos que reúnem parlamentares que defendem interesses comuns. Esta eleição resultou num Congresso ainda mais fragmentado do que o habitual, onde o PT é o partido com mais deputados (56), mas está longe de ter qualquer maioria. O PSL de Bolsonaro, por outro lado, registou um crescimento exponencial, tendo agora 52 deputados. Para além deles, já é praticamente certo que Bolsonaro terá o apoio da bancada evangélica, da agro-pecuária e da segurança pública — informalmente conhecidas como BBB, por representarem “Bíblia, boi e bala”. Resta saber se esses acordos chegam para legislar sobre medidas mais profundas e sobre temas complexos como a reforma do sistema de pensões, que necessitam geralmente de maioria de dois terços por estarem dependentes de emendas constitucionais.

Pormenor de vigília por Bolsonaro depois de ter sido esfaqueado em Juiz de Fora (MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images)

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“‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.’ Nunca estive sozinho, sempre senti a presença de Deus e a força do povo brasileiro. Homens, mulheres, crianças, famílias inteiras que, diante da ameaça de seguirmos por um caminho que não é o que os brasileiros desejam e merecem, colocaram o Brasil, o nosso amado Brasil, acima de tudo. Faço de vocês minhas testemunhas de que esse governo será um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade. Isso é uma promessa — não de um partido, não é a palavra vã de um homem. É um juramento a Deus.”

No início do seu discurso que podemos classificar de “oficial” — perante as câmaras, lendo um papel e respondendo a jornalistas no final —, Bolsonaro começa por invocar as mesmas ideias do início do discurso que fez no Facebook, agradecendo a força dada por Deus. Desta vez, contudo, começa por reforçar que o seu próximo Governo será “um defensor da Constituição, da democracia e da liberdade”. Se o primeiro discurso foi uma garantia aos apoiantes de que está com eles e de que mantém as ideias que sempre defendeu, o segundo foi uma tentativa de mostrar ao resto do Brasil e ao mundo que irá respeitar o sistema democrático vigente. Ao contrário do primeiro discurso, neste pronunciamento não houve referências veladas ao PT, ms sim uma aparente tentativa de promover a união.

Bolsonaro tem defendido que o seu Governo deve ser composto por "notáveis", entre eles militares (NELSON ALMEIDA/AFP/Getty Images)

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“O compromisso que assumimos com os brasileiros foi o de fazer um governo decente, com o país e com o nosso povo. E eu garanto que assim será. O nosso Governo será formado por pessoas com o mesmo propósito de cada um que nos ouve neste momento: transformar o nosso Brasil numa grande, livre e próspera nação. Podem ter a certeza que nós trabalharemos dia e noite para isso.”

Em vez de abordar a questão da governabilidade, Bolsonaro optou aqui por reforçar que irá cumprir a promessa de campanha de ter um Governo não de políticos — falíveis pelo sistema de “toma lá dá cá” do presidencialismo peculiar brasileiro —, mas sim de “notáveis”. Ao longo da campanha, Bolsonaro e a sua equipa têm declarado várias vezes que um Governo ideal conta com membros que não estão dependentes dos favores políticos, como, por exemplo, alguns militares.

Bolsonaro defendeu este domingo um país com leis iguais para todos, independentemente de "cores" e "orientações" (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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“Este é um pais de todos nós. Brasileiros natos ou de coração. Um Brasil de diversas opiniões, cores e orientações. Como defensor da liberdade vou guiar um governo que proteja os direitos dos cidadãos, que cumpra os seus deveres e respeite as leis. Elas são para todos, porque assim será o nosso Governo: constitucional e democrático.”

É o maior esforço de Bolsonaro, ao longo dos últimos meses, para se apresentar como um político moderado. O candidato da extrema-direita, que tem sido repetidamente acusado de racismo, machismo e homofobia pelas suas declarações polémicas ao longo dos anos, aproveita o discurso à nação para garantir que as leis “são para todos” e que o Brasil com Bolsonaro incluirá “diversas opiniões, cores e orientações”. Não será por acaso que uma das pessoas que acompanhou o Presidente eleito nesta comunicação perante as câmaras foi Hélio Lopes, conhecido como Hélio “Negão”, deputado federal mais votado no Rio de Janeiro que concorreu com o PSL de Bolsonaro — e frequentemente apontado como exemplo pelos apoiantes do capitão que tentam desmentir a ideia de que o seu candidato seria racista.

Outro dos pontos defendidos foi a união nacional entre brasileiros do sul e do norte (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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“Muito do que estamos fundando no presente trará conquistas no futuro. As sementes serão lançadas e regadas para que a prosperidade seja o desígnio dos brasileiros do presente e do futuro. Este não será um Governo de resposta apenas às necessidades imediatas. As reformas a que nos propomos são para criar um novo futuro para os brasileiros. E quando digo isso falo com uma mão voltada para o seringueiro no coração da selva amazónica e a outra para o empreendedor suando para criar e desenvolver a sua empresa. Que não existem brasileiros do sul ou do norte, somos todos um só país, somos todos uma só nação. Uma nação democrática.”

Depois de afirmar perante o país que respeitará as minorias, Bolsonaro tenta apelar à união nacional. Ao dizer que “não existem brasileiros do Sul ou do Norte, somos todos um só país”, o candidato tenta estender a mão aos eleitores do Nordeste, bastião do PT e uma das regiões mais pobres do país. Já durante a campanha eleitoral Bolsonaro tinha tentado conquistar alguns votos nessa região, afirmando que garantiria a manutenção de alguns dos programas sociais lançados por Lula, como o Bolsa Família.

O economista Paulo Guedes tem sido apontado como provável ministro das Finanças de um Governo Bolsonaro (DANIEL RAMALHO/AFP/Getty Images)

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“O Estado democrático e de direito tem como um dos seus pilares o direito de propriedade. Reafirmamos aqui o respeito e a defesa desse princípio constitucional, fundador das principais nações democráticas do mundo. Emprego, renda e equilíbrio fiscal é o nosso compromisso para ficarmos mais próximos de oportunidades de trabalho para todos. Quebraremos o ciclo vicioso do crescimento da dívida, substituindo-o pelo ciclo virtuoso de menores défices, dívida decrescente e juros mais baixos. Isso estimulará os investimentos, o crescimento e a consequente geração de empregos. O défice público primário precisa de ser eliminado o mais rápido possível e ser convertido em superavit. Este é o nosso propósito.”

Para além de falar para a nação, o homem do PSL aproveita para falar também para o mundo, com especial atenção aos mercados financeiros. Isso implica explicitar o seu programa económico, assente sobretudo em propostas de “equilíbrio fiscal”, redução da dívida e eliminação do défice.

Apoiantes de Bolsonaro na Flórida, nos Estados Unidos (GREGG NEWTON/AFP/Getty Images)

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“Libertaremos o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais de viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos. O Brasil deixará de estar apartado das nações mais desenvolvidas. Buscaremos relações internacionais com países que possam agregar valor económico e tecnológico aos produtos brasileiros. Recuperaremos o respeito internacional pelo nosso amado Brasil.”

Depois da economia, o programa para os Negócios Estrangeiros: ao proclamar o fim do “viés ideológico” nas relações internacionais e ao declarar o fim do afastamento das “nações mais desenvolvidas”, Bolsonaro deixa claro que pretende romper com a tradição dos governos do PT de solidariedade firme entre países da América Latina — como com a Venezuela — e de alguma oposição aos Estados Unidos.

Manifestação de apoio a Jair Bolsonaro, dias antes da segunda volta das eleições (CARL DE SOUZA/AFP/Getty Images)

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“Nesse projeto que construímos cabem todos aqueles que tenham o mesmo objetivo que o nosso. (…) Somos um grande país e agora vamos juntos transformar esse país numa grande nação. Uma nação livre, democrática e próspera. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”

O parágrafo que resume o equilibrismo na corda bamba que Jair Bolsonaro tentou fazer nesta noite eleitoral — e que, possivelmente, poderá continuar a tentar fazer. Por um lado, garantir ao Brasil e ao mundo que será um Presidente moderado, respeitador da Constituição e dos princípios democráticos. Por outro, assegurar aos seus eleitores que continuará a defender os mesmos princípios: a construção de um projeto onde entram “todos aqueles que tenham o mesmo objetivo que o nosso”. Ou seja, um projeto político onde o Brasil está "em primeiro lugar" e onde “Deus está acima de todos” — ou seja, onde alguns valores conservadores que os apoiantes de Bolsonaro defendem (a família tradicional, o combate firme à insegurança pública, a contestação ao sistema político) continuam a ser princípios invioláveis.

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