É legítimo dizê-lo: é injusto que grande parte dos textos que resultam dos últimos discos de Madonna sejam muito centrados no tema da idade. Madame X, que é editado esta sexta-feira, dia 14, não é grande exceção, mas não deixa de ser injusto, sobretudo para uma estrela pop que, de uma forma ou de outra (ou de todas as formas, talvez seja mais correto dizê-lo assim), tem sempre conseguido quebrar as regras estabelecidas numa cultura que parece obcecada em estabelecer — precisamente — regras a partir dessa entidade complexa que é o corpo feminino, a sua imagem e os comportamentos que a idade deve ou não ditar.
Torna-se importante, então, definir que quando falamos de Madonna não estamos a falar de uma artista de 60 anos que está prestes a lançar o seu 14º disco de estúdio, misturado com inúmeros outros projetos. Madonna é mais uma espécie de cápsula do tempo sem tempo, que dominou de forma quase constante a cultura popular, em todas as suas áreas e dimensões, dos últimos 40 anos. Das ruas da Nova Iorque em ebulição no final dos setentas até à Lisboa de 2019, é impossível fugir-lhe. E não é por fazer 60 anos que lhe reconhecemos relevância, ou porque tal idade no meio desta indústria lhe dá alguma espécie de novo exotismo. Convenhamos: Madonna inventou (ou reinventou) à sua maneira a palavra “exotismo”. Reinventou-a várias vezes e ao longo de muitos anos.
Ainda assim, esta coisa da idade continua a ser inescapável. E esse tema, mais a sua importância ou não, é um dos muitos pontos altos da ótima peça que o New York Times lhe dedicou recentemente (ironicamente titulada de “Madonna at Sixty”) e que a Maria Ramos Silva tão bem resume aqui. Uma peça em que Madonna vira a questão de volta à jornalista Vanessa Grigoriadis:
“Acho que pensas demasiado sobre idade. Acho que devias parar de pensar sobre isso.”
Simples. É o mundo que está obcecado com a idade de Madonna, ou é ela que tão bem sabe aproveitar isso para enfatizar essa espécie de improbabilidade estatística que a carreira dela continua a representar? Provavelmente, será um pouco das duas coisas. Até porque Madonna sempre foi mestre em juntar informação e matéria vindas de (às vezes apenas aparentemente) diferentes origens. E mesmo esta questão da idade não é nova. Noutros tempos o assunto já existia, ainda que com menos expressão, porque os números eram mais pequenos.
Para uma certa geração — malta que agora tenha 33 anos, por exemplo — há um disco que no meio da confusão pop que reinava no final dos anos noventa e início dos zeros acaba por ser o seu “momento Madonna” mais relevante. Esse disco é Ray of Light, de 1998, e cumpre a façanha de levar Madonna a transformar aquilo que a própria chegou a descrever como uma fase demasiado calma na sua vida num pedaço de pop absolutamente encantador, que, aliado a influências mais espirituais, trouxe a eletrónica da década a um mainstream impensável até à altura. Em Portugal, por exemplo, a TV Cabo, e obviamente a MTV — que em tempos chegou a ser importante nisto das coisas da música porque até trabalhava a matéria — dava espaço privilegiado a pérolas como “Frozen”, “The Power of Good-Bye” ou a faixa-título do álbum. Canções que eram mais ou menos ubíquas para os popheads, os do punk, os da eletrónica ou os que iam só beber um café lá abaixo.
Curioso, isto dá que pensar: nessa altura, a injustiça da idade de Madonna ser um tema central já existia. Injustiça porque essa transversalidade que conseguiu aos 40 anos vinha-lhe da criatividade, da aspiração a chegar a algum lado diferente, tudo constantes que nunca a largaram, nem com 20, nem com 40, nem com 60.
[“Dark Ballet”:]
Ray of Light é amplamente considerado como um dos pontos altos da discografia da artista, mas para outros será só uma de nota de rodapé, porque o seu momento Madonna andará mais por “Vogue”, “Like a Prayer”, “Erotica”, “Like a Virgin” ou mesmo por êxitos que tenham chegado mais tarde, como “Music”, “Hung Up” ou “Girl Gone Wild”. Tudo bons exemplos de como entre influências vindas de toda a parte — da estética, do mundo da moda, da arte, do disco, do erotismo ou da religião –, misturadas com um número continuamente em crescimento de géneros musicais, Madonna foi capaz de manter-se sempre relevante e raramente pareceu ter de estar a correr muito atrás do que estava a acontecer no panorama pop de um certo momento.
Serve tudo isto para dizer que agora chega então Madame X, um disco que com base nos feitos que já listámos e noutros, não precisava de ser tão ambicioso como é. Dizemos ambicioso porque é criativo, porque não quer estar parado, porque vai à procura. Está a ser considerado por muitos como um dos mais bizarros de toda a discografia da cantora, o que, para os mais militantes, deverá ser uma boa notícia e motivo para manifesta antecipação. Mas nada disto é assim porque Madonna tem 60 anos. É porque Madonna é Madonna. Basta-lhe isso para ter a tal ambição de que aqui falamos.
A amostra que tínhamos até agora, o single “Medellín”, já indicava um pouco dessa inquietude. Mais contido do que outros primeiros singles de Madonna, apesar de contar com as influências do reggaeton materializadas na presença do colombiano Maluma. Esta sonoridade mais latina acaba por ser uma constante por todo o disco, apesar de vir misturada com muitas outras que vão do trap ao kuduro e ao fado ou do disco à house.
[“Medellín”, com Maluma:]
É um disco de tal maneira moderno que até cai em algumas das armadilhas que podemos esperar de trabalhos de outras máquinas da pop atual como Drake, por exemplo. Madame X é longo, ideal para as plataformas de streaming e é feito de tantas ideias e temáticas tão díspares na sua génese que faz com que o termo “playlist” salte logo à cabeça numa primeira audição. Não é surpreendente que palavras como “bizarro” ou “complexo” apareçam em muitas das primeiras análises que já estão a ser feitas a este Madame X. Como tal, após essa única escuta, seria injusto estar a fazer o trabalho ingrato de lhe escrever uma crítica.
O que dá é para fazer uma pequena antecipação e elogiar temas como “Future”, uma espécie de valsa dancehall que teve direito a uma bela atuação com Quavo no intervalo da Eurovisão deste ano.
[“Future”, com Quavo, na final da Eurovisão:]
Serve de ótimo momento de respiração pop, especialmente porque segue a aparente contenção de “God Control”, feita de um coro acompanhado por pianos que acaba por ir ter às eletrónicas que até remetem para o já referido Ray of Light. Pelo meio, conta com produções de Mike Dean em temas como “Crave”, uma faixa bem orelhuda que se fosse cantada por alguém como Ariana Grande não surpreenderia ninguém. Tudo isto a culminar numa segunda metade feita de momentos de uma EDM meio introspetiva, como em “I Don’t Search I Find” ou “I Rise”, que fecha o disco, intercalados por outros que voltam à energia latina como “Bitch I’m Loca”, que, como o single, também conta com Maluma e não vai estar fora das pistas de dança por muito mais tempo.
Nas temáticas são muitas as referências ao estado do mundo, em que Madonna não deixa de parecer uma observadora algo distante mas atenta que se desdobra em pequenos mantras sobre complexidades sociais. O ponto onde isso se torna mais evidente será “Killers Who Are Partying”, que conta com linhas como:
“I’ll be Islam if Islam is hated
I’ll be Israel if they’re incarcerated
I’ll be Native Indian if the Indian has been takin
I’ll be a woman if she’s raped and her heart is breaking”
Momentos que poderão ser algo exagerados para alguns, mas que acabam por vir bem intercalados com a experiência pessoal normal de quem passou por demasiadas mudanças ao longo da carreira para não padecer de uma dose saudável de introspeção.
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Para os portugueses, sobra também o exercício divertido de tentar contabilizar as influências que resultam de Madonna ter passado muito tempo em Lisboa nos últimos anos. Como a própria indica, é uma relação que nem sempre foi pacífica, às vezes solitária e dividida entre “o FIFA, a escola dos filhos e pronto”.
Aqui, no disco, tudo isso se materializa em acenos ao fado e à guitarra portuguesa e em versos cantados em português em momentos como “Extreme Occident” que estará na edição deluxe do disco, “Crazy” ou a já falada “Killers Who Are Partying”. Tudo isto terá talvez o seu momento mais inteligente na versão de “Faz Gostoso”, de Blaya, com a brasileira Anitta, que promete deixar Portugal, Brasil e quem mais aparecer pela frente absolutamente agarrados a um tema que já de si demonstrava uma capacidade notável para prender atenções e soltar tudo o resto.
[“Crave”, com Swae Lee:]
É muita coisa. E no meio disto tudo, Madame X é um disco de Madonna que está cheio de temas que se recusam a deixar de ser Madonna. A alusão à idade continua a ser uma tecla na qual se bate na reflexão sobre o seu trabalho, mas o que não muda é que todas as versões de si mesma que já nos apresentou nunca vieram sem um cunho altamente pessoal e de uma visão artística impressionante que nunca deixou de ter, independentemente dos números no calendário.
As influências podem ir mudando de forma mais ou menos calculista, e essa tendência pode sempre dar num trabalho de identidade perdida. Mas ela nunca parece estar distante dos elementos sonoros que traz para cima da mesa, de quem convida para a ajudar e com um o outro passo ao lado, é mais um disco que não vai ficar nada mal num cânone que já vai longo e que promete não desiludir quem o segue.
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Madonna tem muito a provar. Tem sempre muito a provar. Mas não é por ter 60 anos. De alguma maneira, Madonna não tem idade. Ou tem uma idade física à qual não pode fugir formalmente, mas que não se mete nos assuntos criativos e artísticos. Madonna não tem nada a provar porque tem 60 anos, era o que faltava. Sem ela, de alguma maneira não existiria uma linha de artistas pop femininas que vai de Britney a Beyoncé. Tem muito a provar porque recusa ser simplista, recusa ser preguiçosa, recusa-se, perante ela própria, a ficar quieta e sentada, à espera. E com Madame X, com mais ou menos brilhantismo entre canções, mostra que correu atrás do que queria. Mais uma vez. E o mais provável é que continue a ser assim.