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Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda em 1982. Estreou-se com "Esse Cabelo" (Teorema, 2015), auto-ficção sobre a relação de uma rapariga com o seu cabelo crespo

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda em 1982. Estreou-se com "Esse Cabelo" (Teorema, 2015), auto-ficção sobre a relação de uma rapariga com o seu cabelo crespo

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Djaimilia Pereira de Almeida: "Ser uma escritora negra hoje é reclamar o meu direito ao gozo da escrita"

A importância da ficção, o sonho da liberdade criativa total e aquilo que separa a mulher da escritora: entrevista a Djaimilia Pereira de Almeida, que está de regresso às crónicas no Observador.

Djaimilia Pereira de Almeida é escritora, mas não tivesse nascido em 1982 e poderia muito bem não ter sido. Diz que é uma “lotaria cósmica”, um “privilégio imerecido”, esse de ter nascido num tempo que lhe permite “viver de escrever”. “Diria que é o melhor tempo que já existiu para ser uma escritora como eu sou”, assume.

O nome Djaimilia Pereira de Almeida rompeu na literatura portuguesa quando se estreou com Esse Cabelo (Teorema, 2015), auto-ficção sobre a relação de uma rapariga com o seu cabelo crespo de onde teceu um ensaio sobre identidade. Desde então, ​​fugiu do eu narrativo e na ficção revelou-se escritora além da raça e género, com romances como Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras, 2018), A Visão das Plantas (Relógio D’Água, 2019) ou Toda a Ferida é uma Beleza (Relógio D’Água, 2023). Ficções onde se descobre mais de Djaimilia do que se possa pensar.

Autora de catorze livros, vencedora de vários prémios literários, como o Oceanos, a escritora está de volta a Lisboa depois de um ano a viver em Nova Iorque, EUA, onde deu aulas na New York University. No regresso a casa, assina a partir desta sexta-feira uma coluna no Observador, onde escreve, nas suas palavras, “sobre o que me apetecer”. Assim mesmo. Porque escrever também é sobre liberdade, como explica em entrevista.

Capa do livro "O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo", de Djaimilia Pereira de Almeida, editado em 2023 pela Companhia das Letras

“Fosse eu minha trisavó, preta de carapinha dura, e o meu destino seria o chicote. Ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, uma mulher deste tempo, é escrever contra esse facto, carregando-o às costas, sem deixar que ele me tolha”, escreve neste livro. A escrita parte de uma ideia de combate e resistência?
Não. A questão do contra quer dizer que escrevo contra essa fatalidade. Contra a fatalidade que seria imaginar que há escassos anos provavelmente não estaria aqui a ter esta conversa consigo e que a minha liberdade de escrever, a possibilidade de viver de escrever e de ter uma carreira de escritora estar-me-ia vedada. Escrever contra esse facto não é contra no sentido de combate, mas é contra no sentido de ter uma noção muito séria desse facto. E escrever apesar desse facto, com esse facto às costas, traz-me uma grande dose de responsabilidade em relação aos meus ancestrais e em relação à maneira como encaro a minha profissão.

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Daí a frase que arranca este livro ser “O meu maior privilégio imerecido é ter nascido em 1982”?
Exatamente. Quer dizer: não escolhi a idade em que nasci, mas sei que escrevi num tempo propício a viver de escrever e a escrever. Se tivesse nascido há 50, 70 anos, provavelmente não conseguiria fazer do mesmo modo. É uma lotaria cósmica e arbitrária aquela que nos faz nascer no ano em que nascemos. Encaro essa lotaria, no meu caso, como um privilégio. E é um privilégio imerecido no sentido em que não o pude determinar, no sentido em que me transcendo em todos os sentidos. Não escolhi nascer onde nasci, não escolhi ser quem sou, nem ser filha de quem sou, não escolhi os meus pais, não escolhi a minha família, e muito menos escolhi a era em que nasci, o tempo em que nasci. Diria que é o melhor tempo para ser uma escritora como eu sou que já existiu.

Em A minha imaginação não se distingue da minha identidade, uma das partes deste livro, uma transcrição de uma conversa com a poeta e tradutora brasileira Stephanie Borges, elenca uma série de artistas, como Zia Soares, Aline Motta, José Luiz Tavares, Isabél Zuaa como parte de um coletivo de pessoas que partilham esta responsabilidade de serem historicamente os primeiros a ter uma voz, algo que foi recusado aos seus antepassados. Ter responsabilidade é diferente de ser representante?
É totalmente diferente. Não me sinto representante de absolutamente ninguém nem de nada. Não reconheço o direito a ser porta-voz ou representante seja o que for. Aliás, até temo que as perguntas vão no sentido de parecer que estas são as questões centrais da minha escrita e não são. Em todo o caso, não me sinto representante de coisa nenhuma, e, no entanto, escrevo com a noção — tal como essas pessoas que produzem e criam — de que somos os primeiros a ter espaço, voz, lugar para criar o que criamos no nosso país, na nossa língua. Somos os primeiros a ter esse espaço. Esse espaço não existia. Mas há muitos canais para abrir ainda nesse espaço. Há ainda muita gente que não chega a ser ouvida, cujo trabalho não é visto. Mas essa responsabilidade não é a responsabilidade de um representante. É a responsabilidade de alguém que tem a noção de que, para poder chegar a ser lida, no meu caso, isso significa que muitas pessoas não foram lidas para trás. E há muitas pessoas que não são lidas agora ainda. Portanto, é uma responsabilidade que tem a ver com ter a noção de que são ainda muito poucas as pessoas como eu, as mulheres negras, que podem escrever em público, publicar o que escrevem e exprimir as suas opiniões.

Florir em Dezembro

O “mundo em que gostava de viver” é aquele em que “a coluna frívola do jornal de referência do meu país pudesse ser escrita por um negro sem qualquer problema”, em que “qualquer assunto é assunto para qualquer pessoa”.  Mas diz que “ainda não estamos nesse tempo. Pelo menos aqui na Europa ainda não”. Porquê?
Há uma expectativa de que as pessoas que tenham finalmente um espaço que o ocupem com um certo tipo de questões, falem num certo tipo de assunto. E o mundo ideal, para mim, é um mundo em que toda a gente escreve sobre exatamente o que lhe apetece, que é o que tento fazer, que é o que faço nos meus livros. Escrevo sobre o que me apetece. E há um privilégio extraordinário, uma lata e uma coragem extraordinária em fazê-lo, porque a expectativa, muitas vezes, para mulheres negras como eu, escritoras negras, é que apenas falemos sobre racismo, sobre questões de discriminação, sobre um certo tipo de assuntos. As pessoas são admitidas na conversa desde que se cinjam a um certo tipo de assunto. Sonho com esse mundo em que nos é admitido sermos frívolas, falarmos sobre o jet set, falarmos sobre as jarras de flores que temos em casa, ao mesmo tempo que podemos falar sobre outras questões mais sérias. Sonho com essa liberdade, com a liberdade de podermos escrever sem restrições, de uma forma completamente livre.

Essa liberdade chegará quando as mulheres negras que têm espaço nos órgãos de comunicação social, no caso dos colunistas, por exemplo, deixem de ser a exceção ou algo pontual?
Certamente. O número, neste caso, tem muita influência. Se houvesse mais pessoas racializadas a escrever, se calhar, essa liberdade estaria mais disseminada. Respeito muito, e é importante dizer isto, o sentido de responsabilidade de pessoas que estão no espaço público e que sentem a necessidade de escrever de acordo com alguns critérios ou temas. Mas há também uma grande diferença entre mim e muitas dessas pessoas, que é o facto de ser escritora. Eu sou escritora, sou artista. Portanto, é natural que não me reconheça no dever de me cingir seja a que assunto for. Se não for para escrever sobre o que me apetece não me interessa escrever em lado nenhum. Seja isto uma coluna, um livro, um artigo, um ensaio, o que for.

Portanto, desejável seria caminharmos no sentido de haver mais diversidade nos órgãos de comunicação social. Não me refiro apenas a pessoas negras, mas refiro-me a pessoas racializadas de um modo geral, e mais mulheres, já agora. Também há poucas mulheres de um modo geral a escrever. Muitas vezes acordo, abro os jornais — os jornais em geral, por acaso o Observador não é dos piores — e as colunas dos jornais são todas preenchidas por senhores. Acho que [ter nos jornais] mais gente, mais mulheres, mais pessoas diferentes, com diferentes pontos de vista, iria fazer balançar um bocadinho as expectativas do público, de poder esperar ser informado por algumas pessoas, esclarecido por outras e entretido por outras também.

"A expectativa para mulheres negras é que apenas falemos sobre racismo, questões de discriminação. As pessoas são admitidas na conversa desde que se cinjam a um certo tipo de assunto. Sonho com esse mundo em que nos é admitido sermos frívolas, falarmos sobre o jet set, sobre as jarras de flores que temos em casa, ao mesmo tempo que podemos falar sobre outras questões mais sérias. Sonho com essa liberdade, com a liberdade de podermos escrever sem restrições, de uma forma completamente livre."

Há um momento neste livro em que relata um episódio com um leitor que lhe deu um conselho. “Um leitor desassombrado tentou certa vez avisar-me, numa livraria lisboeta, para que não me deixasse ser catalogada como «escritora negra». «Isso é literatura de gueto», disse-me, «e o problema da literatura de gueto é que é demasiado limitadora»”. Lembrei-me do filme American Fiction (2023), em que o protagonista, interpretado pelo ator Jeffrey Wright, um escritor negro, fica muito revoltado quando descobre que os seus livros estão arrumados na livraria na secção de autores afro-americanos. Não sei se viu o filme e está recordada essa cena.
Sim. Esse leitor, muito simpaticamente, deu-me esse conselho. Passei um ano e tal a pensar nesse conselho, a pensar que, se por um lado acho que compreendo o que ele quis dizer, se compreendo que não me interessa nada que as pessoas me vejam como uma pessoa que apenas escreve sobre um certo tipo de assuntos — e, aliás, é mentira, porque não faço —, em todo caso, como digo também neste livro, mesmo quando estou a escrever sobre outras coisas, sou sempre a Djaimilia a escrever sobre outras coisas. E há um sentido muito importante. Eu escrevo sobretudo ficção. E há um sentido muito importante em que a minha imaginação, o modo como imagino, como sonho, é sempre o modo da pessoa que eu sou a sonhar. Portanto, eu sonho sempre como uma mulher negra. Quando estou na cama a dormir, sou negra nos sonhos também. E porque é que isto é importante? Apenas para dizer que não me interessa nada que a minha identidade racial determine as coisas que escrevo. E, no entanto, não posso desprender-me completamente da minha identidade racial. Não apenas racial, mas de um modo geral. Portanto, penso e sonho. E estou a frisar muito o sonho porque os sonhos são importantes para mim e para a minha escrita. Portanto, penso, imagino e sonho de acordo com aquilo que sou. Sonho, imagino e penso na minha pele. E isso constrange-me. E, no entanto, compreendo a advertência contra a literatura de gueto no sentido em que acho que não só apenas eu, mas muitos dos escritores negros da minha geração, portugueses e de outros países, se sentem completamente injustiçados em relação a serem catalogados como alguém que apenas escreve sobre um certo tipo de assunto.

Há um aspeto importante também que é: eu não considero literatura de gueto histórias de pessoas racializadas ou histórias de pessoas negras. Não considero isso literatura de gueto. Não considero que essas pessoas façam parte de um gueto. Não considero que as histórias humanas dessas pessoas sejam consideradas histórias de gueto apenas porque elas não são a maioria das histórias, não são a maioria das pessoas. Quando conto histórias assim, encaro essas histórias como histórias de seres humanos, de pessoas do mundo. Não estou a encará-las como histórias à parte das outras histórias. Para mim, essa não é uma história à parte. Para mim, essa é a história em conjugação com a história de todas as outras pessoas.

Toni Morrison chegou a dizer que escrevia para negros e não tinha de pedir desculpa por isso.
Sim, ela disse isso.

Estamos num outro momento?
Não sei. Ela disse isso e eu compreendo isso e tenho um enorme respeito por isso. Porque isso significa que ela não encontrou, quando começou a escrever, ela não encontrou histórias nas quais ela se encontrasse. E ela sentiu falta. Ela disse muitas vezes que escreveu os livros que gostava de ter lido, gostava de ter encontrado. E ela não se encontrava em livros negros. Então ela escreveu as histórias que gostaria de ter encontrado.

A escritora está de volta a Lisboa, depois de um ano a lecionar na New York University, NYU, nos Estados Unidos

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A Djaimilia encontrava-se em histórias?
Encontrava-me nas histórias no sentido em que não preciso que um livro tenha uma personagem parecida comigo fisicamente para me encontrar nesse livro. E, portanto, os livros onde sempre me encontrei, os meus livros favoritos, são livros povoados por pessoas muito diferentes de mim.

Quer dizer um, já agora?
Sim. Por exemplo, o meu livro favorito é o Três Contos, do [Gustave] Flaubert (1877). As histórias: uma é sobre um santo, outra é sobre uma senhora, uma empregada que tem um papagaio. Nenhuma dessas pessoas é parecida comigo. Para me encontrar nessas histórias não preciso que as pessoas sejam parecidas comigo fisicamente ou parecidas com a minha fotografia. Encontrarmo-nos na literatura tem a ver precisamente com a capacidade de projetarmos a nossa vida em vidas radicalmente diferentes da nossa e em histórias radicalmente diferentes da nossa. No entanto, para voltar à Toni Morrison: compreendo a Toni Morrison e tenho um profundo respeito por essa atitude, mas, para mim, em relação às coisas que escrevo, gosto de imaginar que escrevo para todos os leitores, sem qualquer restrição. Não escrevo para pessoas parecidas comigo. Se fosse para escrever para pessoas parecidas comigo não escrevia. A mim interessa-me escrever para toda a gente. Interessa-me, aliás, outra coisa. Interessa-me a possibilidade de que pessoas que não são nada parecidas com os meus personagens se reconheçam nas minhas personagens. Para mim isso tem a ver com o alargamento da hospitalidade. No sentido em, por exemplo, uma pessoa portuguesa ou europeia vá ler a história de uma rapariga negra, uma pessoa que não lhe é próxima, e consiga identificar-se. Não é identificar-se, não gosto da palavra identificar-se. É reconhecer-se. É conseguir ser tocado por uma vida muito diferente da sua. É ter a possibilidade de, de repente, sendo tocado por vidas muito diferentes da sua, poder alargar a sua própria conceção daquilo que é uma vida humana e daquilo que é o mundo tal como o entendemos. Gosto desta ideia.

Se calhar a única razão pela qual escrevo, de facto, ou a minha intenção, se quiser, é ajudar as pessoas a repararem em mais coisas, a repararem em mais pessoas, a repararem em aspetos da realidade nos quais não tinham pensado à primeira. E isso passa por levá-las a ver vidas, levá-las a ser tocadas por vidas e sensibilidades e inteligências que à partida não conheciam ou à partida não… nas quais à partida não pensavam. Tem a ver com reparar. Reparar. A palavra reparação hoje é uma palavra com um sentido muito particular, mas a mim interessa-me a reparação neste sentido de ver as coisas pela primeira vez. Ver o arrumador de carros, para dar um exemplo de um romance meu — Maremoto [2021, Relógio D’Água] —, pela primeira vez, ou ver aquela moça que vai ao nosso lado sentada no autocarro, cansada depois de um dia de trabalho e na qual nós nunca pensámos. De repente, porque lemos um certo romance, somos capazes de ir ao pé daquelas pessoas ou estar junto daquelas pessoas na cidade e pensar: quem são essas pessoas? Até [pode] estimular a curiosidade a respeito das pessoas que estão à nossa volta.

É curioso falar na ideia de reparar, porque o realizador Miguel Gomes dizia há dias que o “o cinema não é para dizer, é para mostrar”.
Reconheço-me isso. Há qualquer coisa de wittgensteiniano nessa observação. Mas é isso mesmo. É mostrar e, no meu caso, é mostrar e é revelar e é permitir com que aquilo que nós pensávamos que conhecíamos ou aquilo pelo qual não tínhamos a menor curiosidade de repente nos desperta a atenção e nos faz ver uma coisa pela primeira vez, uma coisa que não tínhamos pensado.

Tem características que exacerbam isto de alguma forma? Isto é, considera-se uma pessoa particularmente atenta, observadora? Ou é antes a curiosidade ou a imaginação?
Não sei. Reduzir ou reconduzir esta ambição artística a uma característica minha é uma coisa que me faz confusão. Porque isto não são sequer características minhas. Tem a ver com virtualidades do meu trabalho, do que escrevo, e aquilo que escrevo é muito diferente daquilo que sou. Agora, sou uma pessoa curiosa e sou o género de pessoa que anda pela rua a reparar em estranhos e a imaginar quem são as outras pessoas e porque é que elas estão a fazer o que estão a fazer e o que é que elas estão a sentir. Isto é uma coisa que faço naturalmente, sempre fui curiosa. Agora, isto que lhe estava a explicar é qualquer coisa que tem a ver com coisas que se processam na escrita enquanto estou a escrever. Não tem a ver com características minhas. As minhas características não são para aqui chamadas. São virtudes que os textos têm e que as pessoas podem não ter.

Falemos sobre essa separação de não ser a sua escrita.
De eu não ser a minha escrita, sim.

Isso foi sempre nítido para si?
Talvez agora, quando me fez esta pergunta, estivesse a pensar no meu primeiro livro ou em livros que parecem mais autobiográficos. Sabe, para mim, a minha escrita mais autobiográfica é a minha ficção. Os meus livros mais ficcionais são aqueles em que estou a falar de capitães piratas e de pessoas que não têm qualquer relação comigo. Eu sou todas as minhas personagens e, ao mesmo tempo, não sou nenhuma delas. Sou todas elas no sentido em que empresto-lhes o meu íntimo e muitos dos seus pensamentos e sensibilidade sobre o mundo, a sua forma de ver a vida, as suas perceções, as suas inquietações, muitas vezes sou eu que as empresto. E, no entanto, elas são eu e totalmente diferentes de mim. Se disser que um dos meus livros é sobre um homem que era um capitão de um navio negreiro [A Visão das Plantas, 2019, Relógio D’Água] pode compreender como essa pessoa é diferente de mim. E, no entanto, não sou os meus livros no sentido em que acho que toda pessoa que lê os meus livros está muito longe de mim, Djaimilia. A escrita tem uma virtude, uma propriedade: tem uma capacidade de transformar aquilo de que parte. Escrevi, por exemplo, o meu primeiro livro. Era um livro de autoficção, foi assim que foi entendido. E, no entanto, mesmo quando estou a falar dos meus avós ou dos meus pais, ou da minha infância, a partir do momento em que esses elementos passam para um texto, eles passam a cumprir, passam a respeitar as leis do próprio texto. Transformam-se. A partir do momento em que as coisas se transformam na literatura, elas deixam de ter a ver comigo. Já não é a minha vida. A partir do momento em que começo a contar, deparo-me com dificuldades e desafios inerentes a contar que falsificam a experiência em relação à minha própria vida. Portanto, já não é a minha vida.

Capa do livro "A Visão das Plantas", 2019, editado pela Relógio D’Água

E, por isso, não lhe deve veracidade nenhuma?
Não deve veracidade nenhuma e já é outra coisa. A partir do momento em que se começa a contar começa-se a mentir. Portanto, já não sou eu.

A propósito desta ideia de ninguém a conhecer lendo os seus livros, a escritora irlandesa Sally Rooney, numa entrevista recente ao The New York Times, confessava que não tinha interesse nenhum na vida pessoal dos escritores. Que, quando muito, sabe em que altura viveram, mas que não tem grande curiosidade sobre o resto.
Também não tenho muita curiosidade. Quer dizer… É mentira. Tenho alguma curiosidade. Há escritores de que gosto, os meus escritores queridos e, às vezes, tenho curiosidade em saber a vida deles. Isto contradiz o que ainda agora estava a dizer a respeito do meu trabalho, mas há vidas que estão de tal modo em consonância com as obras que são elas próprias uma obra. Elas fazem parte da obra. Há um fotógrafo que admiro muito que é o Robert Adams [EUA, 1937], um fotógrafo americano que é um homem cujo trabalho fotográfico admiro muito e que fez um trabalho com uma longevidade de tom muito particular. Ele foi toda a vida casado com uma mulher. O casamento deles faz parte da obra dele no sentido em que há fotografias desde a juventude com ela, fotografias de longas viagens que fizeram juntos.

Ao longo de toda a obra, há muitas imagens dela à espera dele enquanto ele vai tirar fotografias para algum lado. A presença dela é uma constante. O casamento deles faz parte de qualquer noção séria da premissa do que é o trabalho do Robert Adams. O facto de ele ser casado com a Kerstin e aquela relação, para mim, é interessante. Mas é interessante na medida em que essa relação de algum modo está nas imagens também. Dou-lhe outro exemplo: tenho uma grande admiração pelo Raul Brandão, o escritor português que era casado também com uma senhora chamada Maria Angelina. Ele escreveu sobre ela, escreveu textos sobre os dois, a mim interessa-me isso. Mas isto são casos em que há uma contiguidade entre a vida e a obra. Depois há casos em que não existe isso, ou há casos em que não me interessa. Não me interessa nada saber quem é o namorado da Sally Rooney.

No seu caso crê que não há uma contiguidade ou, existindo, escolhe — legitimamente — que essa barreira não seja ultrapassada?
Não, certamente haverá uma contiguidade qualquer. As pessoas que me conhecem, as pessoas que me conhecem bem, se calhar, leem os meus livros e dizem: “olha, isto és mesmo tu”. Eu é que não tenho curiosidade nenhuma por essa contiguidade. Há, certamente, uma contiguidade muito grande, sobretudo de tom e de ponto de vista, entre os meus romances e a pessoa que sou. Agora, acho que isso não interessa muito, porque a única coisa que interessa da Djaimilia é o que ela escreve. E, portanto, eu própria não estou muito interessada nessa contiguidade até porque gosto de estar livre para a contradizer a todos os momentos. Não tenho muita curiosidade nessa contiguidade nem em nenhuma espécie de coerência a respeito dessa contiguidade.

"Tenho um gozo extraordinário a escrever. Talvez isto seja a coisa mais importante de todas. Quando falo de necessidade visceral e digo que se não escrevesse explodia, enlouquecia, é porque escrever enche-me de alegria. Os artistas nunca dizem vezes suficientes o quanto gostam do trabalho que fazem. O quanto o gozo, o prazer, a alegria estão implicados no trabalho que fazem. Para mim é muito importante afirmar isso."

Em 2022, numa entrevista ao Expresso dizia: “Escrever é a minha vida. A literatura é a segunda coisa mais séria da minha vida, depois do amor”.
Escrever é a minha vida no sentido em que para mim é uma questão de vida ou morte. Se não escrevesse… E isto é mais importante do que publicar. Publicar é outra coisa, é outro momento.

Escreve muitas coisas que não publica?
Escrevo, sim. Muitas, muitas mesmo. Escrever para mim é qualquer coisa de visceral. É uma necessidade vital. Preciso de escrever para viver. Isso não significa que tenha de publicar tudo ou que tudo tenha de ser lido por outras pessoas. Mas escrevo todos os dias. É um bocadinho idiota dizer que escrevo como respiro. Mas escrevo no sentido em que tenho uma necessidade visceral todos os dias de escrever. Não imagino os meus dias sem satisfazer essa necessidade. Provavelmente, como aliás digo neste livro — e não estou a exagerar, não é uma hipérbole — se não pudesse escrever enlouqueceria. Acho que morria. Enlouqueceria no sentido em que ficava… Ia asfixiar-me com as minhas próprias inquietações.

Pensa sobre a ideia de escrever até ao fim?
A Toni Morrison disse uma coisa que tem a ver com isso. A Toni Morrison nem sequer é uma das minhas escritoras de cabeceira, mas ouvi-a a falar num vídeo e tocou-me. Ela dizia que aquilo de que ela gostava era de escrever para sempre. E eu, uma vez, escrevi um texto sobre esta frase. Esta frase toca-me porque escrever para sempre é mais do que escrever até ao fim. Escrever para sempre é escrever para além da vida. É escrever até depois do fim. E, para mim, isto é o género de ambição que é muito peculiar, que um escritor confesse uma coisa destas, que tem esta ambição. E, no entanto, compreendo o que ela quer dizer. Há pouco falávamos da continuidade entre a vida e a obra, mas há um sentido mais bonito de pensar nisso que tem a ver com escrever como a nossa forma de viver. Eu escrevo na medida em que escrever é a minha forma de viver. Portanto, a escrita acompanha a minha vida no sentido em que não há distinção entre escrever e viver. Isto não tem a ver com aquela outra questão mais comezinha de: “será que o escritor e a obra coincidem?”. Isso acho que é uma forma muito contemporânea e muito pouco interessante de olhar para o assunto.

Não lhe interessa o comparativo biográfico. 
Não me interessa, mas isto interessa-me: escrever como… qualquer coisa que é indistinguível de viver.

É autora de catorze livros, entre os quais os romances "Luanda, Lisboa, Paraíso", "As Telefones", "Ferry" ou "Toda a Ferida é uma Beleza", vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela APE 2024

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Li que durante muito tempo “escrevia para não desperdiçar a vida”.
Costumava pensar que escrevia para não desperdiçar a minha própria vida, mas agora já não acredito tanto nisso.

Então?
Porque agora não tem a ver com desperdício. Tem a ver com não conseguir conceber a minha vida sem escrever. Para mim tem muito a ver com imaginação. Há pouco perguntou-me se tinha alguma característica pessoal que me facilitava… Talvez essa característica mais preponderante seja a imaginação. Tenho demasiada imaginação e tenho de a canalizar, porque senão expludo (risos). É um bocadinho assim.

Gostava de lhe perguntar sobre o estado de espírito no momento de escrever. “Escrevo para resolver problemas. Os livros ajudam a pôr a cabeça em ordem, pôr o coração em ordem”. E continua: “Escrevo tanto mais quanto mais nervosa estou. Ou seja, quanto mais ansiosa eu estou, mais escrevo. Escrevo precisamente porque estou ansiosa. Escrevo porque não estou bem.”
Isso também já não é verdade, já viu bem? As entrevistas passam o prazo de validade (risos).

Perguntava-lhe porque li uma outra entrevista em que associa a ideia de escrita à felicidade: “Escrever é a coisa que me dá mais alegria” [Público, 2018].
Mas associo, isso é tudo verdade. Tudo isso se conjuga na perfeição. Por um lado, quando estou mais ansiosa, escrevo. Escrevo mais quando estou mais ansiosa.

Escreve em quantidade?
Sim, há uma pulsão qualquer para escrever. Talvez o faça ou talvez o fizesse para me alegrar, para me aliviar. Mas agora acho que o mais importante é deixar de lado este aspeto de escrever quando não estou bem. Já não é tanto assim. Resgato esse outro aspeto que esse sim é muito importante e liga-se àquilo que estava a dizer há pouco também da necessidade visceral de escrever e de escrever como uma questão de vida ou morte. Tem a ver com a alegria e o gozo extraordinário que escrever me dá. Eu adoro escrever. Para mim, isto é uma coisa importante. Tenho um gozo extraordinário a escrever. Divirto-me imenso a escrever. Talvez isto seja a coisa mais importante de todas. Quando falo de necessidade visceral e quando digo que se não escrevesse explodia, que se não escrevesse enlouquecia é porque gosto de me divertir. Escrever enche-me de alegria. Mais do que uma diversão, é uma alegria. É um prazer. E, para mim, é importante que seja um prazer. Os artistas nunca dizem vezes suficientes o quanto gostam do trabalho que fazem. O quanto o gozo, o prazer, a alegria estão implicados no trabalho que fazem. Para mim é muito importante afirmar isso.

"É uma das coisas bonitas do privilégio de ter nascido uma mulher negra em 1982: poder fazer o que gosto, uma coisa que me dá um gozo diabólico. Isso, para mim, é muito bonito. Redime muito o sofrimento das mulheres da minha vida que, se calhar, tiveram de levar vidas inteiras a fazer coisas de que não gostavam, contrariadas e em sofrimento. Encaro esse prazer com uma grande seriedade. Escrever sobre o que me apetece, divertir-me, são coisas muito sérias. Para mim, são as coisas mais sérias de todas."

É comum falar-se com artistas sobre o peso da criação, com escritores sobre a dor de escrever um livro. Também tem esses momentos, mas são suplantados pela alegria?
Não. Só posso falar por mim, claro, mas para mim [escrever] é um gozo extraordinário. Aliás, se não fosse um gozo extraordinário não conseguiria estar oito horas por dia a escrever.

É o que normalmente acontece?
Quando estou a fazer um romance, sim. Quando estou a fazer um romance estou oito horas por dia a escrever. Quando não estou mais.

Impõe-se um horário?
Não preciso me impor horário. É mais forte que eu porque estou constantemente a pensar no livro. Só penso no livro, não há espaço para mais nada. Mas essa parte do prazer, do gozo, é muito importante. Para resgatarmos um pequeno aspeto do início da conversa… Quando falávamos sobre o que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo, [é] reclamar o meu direito a esse gozo todo. A esse prazer e a essa alegria. É uma das coisas bonitas daquele privilégio de ter nascido uma mulher negra em 1982: que eu possa ter o privilégio de fazer o que gosto, de fazer uma coisa que me dá um gozo diabólico. Isso, para mim, é muito bonito. E é uma coisa que redime muito o sofrimento das mulheres da minha vida que se calhar tiveram de levar vidas inteiras a fazer coisas de que não gostavam, contrariadas e em sofrimento. Encaro esse prazer com uma grande seriedade. Escrever sobre o que me apetece, divertir-me, são coisas muito sérias. Para mim, são as coisas mais sérias de todas.

Há uma passagem perto do fim de Esse Cabelo [2015, Teorema], o seu primeiro livro…
Já não me lembro desse livro. Foi há muito tempo. Se calhar não sei o que dizer.

Diz assim: “O que se encontra reconfigura o que se procurava. A procura de uma origem e de uma identidade não reconstitui a minha origem nem descobre a minha identidade. Uma pessoa apenas se encontra a si mesma por acaso”.
Ah, lembro-me disso.

A pergunta é se já se encontrou e se foi por acaso?
Não. Nesse dia retiro-me. Acho que ainda me revejo um bocadinho nessa frase. Hoje, quase dez anos depois, diria que encontrarmo-nos depende de uma sucessão de acidentes e de encontros com outras pessoas. Encontrarmo-nos é qualquer coisa que tem muitos intervenientes para além de nós. Não controlamos isso. Hoje em dia as pessoas dizem sobre alguém: “está muito resolvida”…

Bem resolvida.
É, bem resolvida. Não sei bem o que é isso. Não estou à procura de me encontrar. Continuo a achar que isso é um acidente e que quando acontece é um acaso com muitas personagens pelo meio. Aliás, não sei se encontrarmo-nos é qualquer coisa da primeira pessoa do singular, uma coisa que tem a ver com “eu, sozinha”. Acho que não. Uma pessoa encontrar-se tem a ver com uma vasta família de conhecidos e desconhecidos com os quais vamos tropeçando, com os quais nos vamos encontrando. E que nos ajudam nisso.

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