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Victoire de Lencquesaing
Main Edition
Ao contrário da palavra “frágil”, semelhante em português, francês e inglês, “main” tanto quer dizer “mão” como “principal”. Quatro letras que assentam como uma luva – pun intended – à marca criada por Victoire de Lencquesaing. “Fascinada com o gesto das pessoas a trabalhar”, a artista fez das suas próprias mãos o principal objeto de estudo, transformando-as em objetos de cerâmica que tanto podem ser usados como porta-joias, saboneteiras, expositores de livros ou simplesmente como peças decorativas para pendurar na parede.
A Main Edition nasceu em Paris, numa altura em que a ceramista de 34 anos estava a trabalhar em fotografia de moda e queria “fazer algo com as mãos e aprender o exercício da paciência”, mas foi já em Lisboa que a marca ganhou raízes e o seu próprio ateliê. Um espaço idílico na Lapa, no jardim da casa que Victoire partilha com o escritor Arthur Larrue e que mistura muitas das influências e gostos do casal francês, de Marrocos a Serralves, Luis Barragán a Richard Serra.
Foi numa viagem à Rússia que os dois se conheceram, andaram pelo mundo e chegaram a pensar viver em Tânger, mas decidiram vir para Portugal porque queriam “aprender a língua e trabalhar aqui”, conta Victoire num português fluente. O rés-do-chão que ambos têm vindo a transformar nos últimos cinco anos trouxe várias surpresas – incluindo um painel de azulejos antigos que estava enterrado – e sobretudo permitiu fazer dois anexos ao fundo do jardim, pintados de cor de rosa e com um terraço com vista para o Tejo onde nascem muitas das mãos em grés da ceramista.
“Tenho um ateliê para sonhar, outro para fazer”, resume Victoire, referindo-se ao segundo espaço que acaba de abrir em Campo de Ourique, todo forrado a azulejos brancos “e que parece quase um laboratório”. A dimensão do sonho não está aqui por acaso: abertas “em posição de dar e receber”, com a linha da vida desenhada a vermelho ou as nuvens do céu refletidas, muitas das suas mãos têm uma dimensão poética e até mesmo surrealista.
Natasza Grzeskiewicz
Further Ther
Mesmo quando trabalha com moldes, Natasza Grzeskiewicz vai acrescentando pedaços de barro à mão, quase como se fosse plasticina, e não tenta disfarçar as interseções. “Se não é perfeito, significa que não foi uma máquina que fez”, diz a ceramista de 36 anos, passando os dedos sobre as fissuras das canecas da Further Ther.
De origem polaca, Natasza é metade da marca e quem trata da parte da cerâmica. A outra metade é Tomás Fernandes, português e marceneiro que faz nascer as cadeiras e bancos imaginados pelo casal, em madeiras portuguesas como cedro, pinho e castanheiro. Os dois conheceram-se enquanto voluntários em Boisbuchet, uma quinta dedicada à arquitetura e ao design fundada por Alexander von Vegesack (do Vitra Design Museum) e viveram juntos na Noruega antes de virem para Portugal. “O Tomás estava empregado numa carpintaria e eu fazia cerâmicas para chefs num ateliê já estabelecido, e às vezes, sem sabermos, estávamos a trabalhar para o mesmo restaurante através de empresas diferentes”, recorda Natasza. Foi nessa altura que começaram a pensar num projeto a dois. Entretanto veio a pandemia e a família de Tomás ficou com um apartamento livre na Rua de São Bento, em Lisboa, onde viria a nascer o showroom e ateliê da Further Ther.
À imagem das próprias criações, é um espaço em tons naturais, onde tudo foi feito pelo casal, desde o gesso aplicado nas paredes à estante de alumínio em que amostras de madeira, arrumadas como livros, fazem companhia à coleção de mesa – disponível por exemplo no hotel White, nos Açores. Formada em Design Industrial, Natasza passou vários anos a desenhar mobiliário na Polónia – a cerâmica veio numa reviravolta do destino, quando ia fazer um estágio em joalharia em Amesterdão e o responsável a enviou para uma residência de ceramistas – e a curiosidade por diferentes materiais está presente no catálogo da marca, que tem já várias experiências produzidas também em pedra e vidro.
Guardadas em caixas com o mesmo pantone do ateliê estão mais de 200 amostras de vidrados “para chegar o mais perto possível à cor natural do grés”. “O meu sonho é cozer as peças num buraco”, diz a ceramista, referindo-se a um método ancestral que se pode encontrar por exemplo em Bisalhães. Outro é usar barro retirado diretamente da terra, como antigamente. Um sonho que já esteve mais longe: na última viagem ao Algarve, Natasza trouxe uma amostra que escavou e que está já em análises num laboratório.
Alan Louis
Para contrariar a ideia da cerâmica como algo frágil, pequeno e delicado, Alan Louis não só faz peças grandes como ganhou o hábito de testar os protótipos dos seus bancos saltando-lhes em cima. “Depois de cozido no forno, o grés fica tipo pedra”, explica o ceramista francês, que nas suas criações gosta de brincar também com assimetrias e nesse frágil equilíbrio surpreender o espectador.
Natural da Bretanha e antigo oficial da Marinha, Alan mudou-se para Paris “para explorar um lado mais artístico” e começou a expor os seus desenhos na capital francesa. Com saudades do mar, veio para Portugal de férias e acabou por fazer as malas definitivamente. “Apaixonei-me pela vibração de Lisboa e percebi que era a cidade certa para experimentar outras áreas, sendo que a cerâmica era já uma possibilidade”, conta o ceramista de 30 anos no apartamento que renovou na Lapa. “Em Paris é tudo muito frenético, aqui as pessoas são mais calmas, há uma paz e ao mesmo tempo uma energia criativa e uma liberdade que acho que se estão a perder em França.”
Ao fim de dois anos de aulas de cerâmica com Maud Téphany, no estúdio Sedimento, Alan Louis lançou a marca homónima em 2021 e considera-se ainda em constante aprendizagem: “Na primeira coleção queria fazer tudo depressa, mas a cerâmica não funciona assim. Às vezes as peças partem no forno, não resultam, é um processo. Quando estou a criar um objeto é sempre uma surpresa.”
Para além dos bancos que são testados com todo o tipo de pesos, feitos em chamote, o ceramista desenhou uma série de outras peças de linhas modernas e em tons naturais, como jarras, velas, candeeiros com picos e até uma mesa de jantar, com a base composta por várias formas geométricas e um tampo de madeira que é apenas uma das combinações possíveis com outros materiais.
Cada peça é numerada e assinada, como se se tratasse de uma escultura. No ateliê de casa é feita essa parte “mais limpa” e também a costura dos elementos em linho, enquanto “a parte mais suja” acontece num ateliê nas Caldas da Rainha, onde o ceramista e designer de interiores autodidata está também a renovar uma ruína.
Jorge Nesbitt e Madalena Parreira
Hunchback Society
Desta “sociedade de corcundas” fazem parte dois portugueses habituados a curvarem-se sobre as artes manuais. “O nome veio da posição que fazemos a trabalhar”, brinca Madalena Parreira, metade da Hunchback Society juntamente com Jorge Nesbitt.
Ambos são professores no Ar.Co de Almada e entraram na escola de artes ainda adolescentes, para estudar desenho. Madalena, de 45 anos, especializou-se em gravura – muito por culpa do gravador Bartolomeu Cid dos Santos –, Jorge, de 50, em ilustração e artes plásticas, com uma carreira recheada de exposições dentro e fora de Portugal. Mas nunca se deixaram ficar apenas pela tela ou a folha de papel. Amigos há quase 30 anos, neste tempo têm-se dedicado a explorar os vários ateliês da Quinta de São Miguel, onde está sediada a Ar.Co, incluindo o de cerâmica. Também para efeitos de ensino, fizeram workshops de moldes, roda, vidrados, porcelana líquida e serigrafia sobre lastra, e no verão do ano passado lançaram a Hunchback Society (sociedade da corcunda) para criarem objetos tridimensionais a quatro mãos.
O que têm feito nascer na quinta do século XVIII e num ateliê em Lisboa é aquilo a que chamam de conversation pieces: “Objetos que são alvo de conversa, porque ou são cómicos, ou tortos, ou têm só uma pseudo-utilidade”, explica Madalena. Uma Arca de Noé de macacos, pássaros, tigres, cãezinhos, centopeias, esquilos, lobos e ouriços que são também candelabros, fruteiras, paliteiros, cálices e jarras – em breve lamparinas de azeite, por influência de uma visita ao Museu Nacional de Arte Romana de Mérida.
“Vamos inventando à medida que nos apetece”, diz Jorge, explicando também um pouco do processo, que começa sempre com a modelação do objeto à mão. Depois de uma primeira cozedura, a peça é vidrada a branco e pintada com tintas de alto fogo – as mesmas dos azulejos –, numa técnica chamada majólica que remonta ao século XVI. Outras influências antigas são as cerâmicas vitorianas Staffordshire e os primórdios da ilustração científica, “quando ainda não se podia considerar propriamente científica porque eram ilustrações baseadas em descrições ou esboços de outras pessoas”, com animais entre o real e o imaginário.
“Tal como não pretendemos ser rigorosos na representação dos animais, não fazemos acabamentos muito aprimorados, gostamos deste lado tosco”, diz Madalena. Jorge acrescenta: “Procuramos uma vertente mais crafty, manual.”
No meio deste processo, “não é claro quem fez o quê em termos de autoria”, e daí a sociedade no nome. “A ideia é também poder envolver mais pessoas, que podem até nem ser da área da cerâmica”, a mostrarem a sua melhor corcunda.
Laetitia Rouget
“Há muitas pessoas nuas por aqui”, brinca Laetitia Rouget enquanto mostra a casa-estúdio que está a renovar na Aroeira. Não é uma república nudista, antes uma provocação relacionada com os desenhos que ocupam telas nas paredes, almofadas e cerâmicas, e que saem das mãos da artista francesa.
Aos 19 anos, Laetitia trocou Paris por Londres para estudar na famosa escola de artes Central Saint Martins – “já desenhava nus desde os 16” –, mas o primeiro trabalho que arranjou foi para vestir pessoas como designer de padrões na área da moda. A cerâmica veio por curiosidade, através de um curso noturno e numa altura em tinha começado a vender os primeiros quadros. Às telas juntaram-se rapidamente objetos de louça pintados à mão e, em 2019, as suas ilustrações cheias de cor e de humor deixaram de ser um segredo, com a primeira colaboração com a Anthropologie, referência na área da decoração. Seguiram-se outros pontos de revenda de peso como o Harrods e a cadeia Selfridges. Uma produção cada vez maior que fez a artista de 35 anos rumar a Lisboa há um ano e meio.
“Vim para Portugal à procura de sol e de um parceiro para produzir os meus objetos”, conta Laetitia, referindo-se aos castiçais com girafas e elefantes, aos pratos com frases divertidas, às travessas com uma figura feminina nua – personagem recorrente e que ganha o nome de Eva quando acompanhada da maçã e da serpente – e a uma série de outros objetos de mesa. Esse parceiro é agora uma fábrica na Nazaré, que reproduz as peças e as pinta à mão a partir de um primeiro desenho e de um molde desenvolvido pela designer.
Com “inspiração na natureza e influência de várias viagens”, a maioria desses desenhos nasce agora no estúdio que Laetitia montou em casa, num segundo andar luminoso com moodboards nas paredes, lápis pastel de todas as cores e amostras de tecidos – um vestígio de outra marca, chamada Pangea, fundada com uma amiga.
Criar os seus próprios azulejos é um dos sonhos para o futuro, e para isso “Portugal é o sítio perfeito”. Outro está só à distância do quintal e passa por instalar um forno cerâmico na garagem e “voltar ao lado mais de artista e fazer objetos únicos”.
Haley Bernier
Heir Ceramics
Unindo dois mundos aparentemente opostos, Haley Bernier transforma embalagens descartáveis em objetos de cerâmica que foram feitos para durar. Um saco do Pingo Doce deu a forma para um vaso, uma embalagem de granola virou jarra e há copos brancos amachucados que parecem de plástico mas são faiança.
“Gosto de encontrar beleza em coisas inesperadas e de brincar com as expectativas que temos dos objetos”, explica a ceramista de 36 anos no estúdio que partilha com outros criativos na Fábrica Moderna, em Marvila. Natural dos Estados Unidos da América, Haley veio para Lisboa há sete anos, depois de o companheiro ter recebido uma oferta de trabalho na área das energias renováveis, e foi cá que começou a olhar de outra maneira para o que normalmente deitamos fora.
Com uma formação em Fine Arts na bagagem, mas sem ter ainda ideia do que poderia fazer em Portugal, foi no mestrado em Design de Produto da IADE, em Santos, que descobriu a técnica que usa hoje na sua marca Heir Ceramics, chamada slip casting. “É uma técnica de cerâmica em que criamos os nossos moldes em gesso a partir de objetos já existentes”, explica a ceramista, que se lembrou de usar as embalagens do supermercado e acabou por fazer a sua tese sobre isso. “Interessou-me o contraste entre os materiais e também o facto de estar a pegar num método industrial para criar algo que não é perfeito nem standard.”
Todos os moldes são feitos pela ceramista e enchidos à mão com a barbotina líquida que há-de secar na forma pretendida. “Lasagna” é uma travessa que nasceu das embalagens prateadas das lasanhas pré-cozinhas, “ensalada” uma taça feita a partir de um recipiente que um amigo trouxe do México, e “leite” uma garrafa que podia ser um pacote de leite Vigor amachucado, com uma tampa de cortiça. Todas as peças têm uma função e exibem orgulhosamente as suas imperfeições. Já o acabamento é quase sempre branco brilhante, mas há novas cores mate a caminho.
Anne Öhrling Dersén
I’m Not Messy I’m Creative
Alguém comparou o universo de Anne Öhrling Dersén aos desenhos animados do canal Nickelodeon dos anos 90 e ainda hoje essa é uma das definições preferidas da ceramista. Sob o nome artístico I’m Not Messy I’m Creative (não sou desarrumada, sou criativa), Anne transforma as suas personagens e traços irrequietos em originais peças de cerâmica.
“Gosto de movimento, de formas muito curvas, de tornar rígidos materiais que não o são”, diz a ceramista sueca de 38 anos, que até o logotipo desenhou a tremer. Um bom exemplo é a jarra “Heart Drip”, com a forma de um coração a derreter, ou o candelabro “Slime”, que parece realmente feito da mistura verde e viscosa com que brincam as crianças. Mas há mais, incluindo canecas ondulantes com pegas exageradas e jarros inspirados “naquelas mãos gelatinosas que atirávamos contra a parede quando éramos miúdos”.
A cerâmica é o parque de diversões de Anne, que confessa mesmo ter dois trabalhos, “um para pagar as contas, e este, que é o divertido”. Desde que encontrou o seu próprio estúdio, numa sala branca com a melhor luz do Campolide Atlético Clube, a ceramista dá também aulas de hand building, a iniciantes e não só.
Natural da Suécia, Dersén estudou artes em Amesterdão, cidade onde começou também a aprender as voltas da cerâmica com um amigo. Em 2017, veio para Lisboa porque já tinha ouvido falar na tradição portuguesa dos azulejos e instalou-se no estúdio Olho, de Cécile Mestelan, e mais tarde no Páteo Alfacinha. Agora que está sozinha no seu próprio ateliê “a renda triplicou”, mas também o entusiasmo para pegar no grés e “brincar com as formas e com a gravidade”. Ao que sai do forno, a ceramista gosta de chamar “esculturas funcionais”, já que têm quase sempre uma utilidade. Mesmo aquilo que parece uma grande concha é, na verdade, um candeeiro de mesa cuja lâmpada se acende como uma pérola.
Este artigo foi publicado originalmente na revista Observador Lifetyle n.º20, lançada em julho de 2023.