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É uma das prioridades imediatas do novo Governo de Luís Montenegro. O Plano de Emergência para a Saúde, a apresentar nos primeiros 60 dias do novo executivo — isto é, até final de maio — tem um grande objetivo: aumentar o acesso dos utentes aos cuidados de saúde, como adiantou a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, logo após o final da cerimónia da tomada de posse.
Embora não se conheçam ainda ao detalhe as medidas do Plano, que será executado até final de 2025, Luís Montenegro revelou, em janeiro, os três eixos em que a estratégia vai assentar: atribuição de um voucher para consultas de especialidade hospitalar, sempre que o tempo máximo de referência seja ultrapassado; atribuição de um médico de família a todos os portugueses, recorrendo aos setores privado e social; e criação de um sistema de incentivos para os profissionais que trabalham nos serviços de urgência, alargando também a resposta dos centros de saúde à doença aguda.
O objetivo principal é aumentar o acesso aos cuidados de saúde. “Vamos ter medidas concretas, mais acesso“, disse Ana Paula Martins, esta terça-feira, aos jornalistas, à saída do Palácio Nacional da Ajuda, numa curta declaração onde sublinhou como positiva a “expectativa que existe em relação ao Plano de Emergência”.
Já esta quarta-feira, na Rádio Observador, o deputado do PSD e ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, frisava a mesma ideia, destacando a cooperação com os setores privado e social, que vai ser a grande marca distintiva da nova estratégia para a Saúde. “O que o Governo quer é que os portugueses tenham um acesso mais rápido aos cuidados de saúde, que os tempos de resposta garantidos sejam cumpridos. Quando não temos capacidade suficiente para dar resposta no tempo clinicamente aceitável, temos de recorrer ao setor privado e social“, destacou o médico recém-eleito para o Parlamento, acrescentando que a forma como o encaminhamento para fora do SNS vai ser concretizado é “um dos segredos” do plano de Emergência.
No programa eleitoral, a Aliança Democrática dividia o plano em 22 medidas. O Observador analisou com maior detalhe nove delas, com a ajuda dois ex-ministros da Saúde (Adalberto Campos Fernandes, do primeiro Governo de António Costa, e Luís Filipe Pereira, dos governos de Durão Barroso e Santana Lopes), agrupando o nível de dificuldade da sua execução em três níveis: alto, médio e baixo.
Grau de dificuldade: Alto
Criar equipas dedicadas nas urgências e atribuir incentivos
É cada vez mais difícil fixar médicos e profissionais de saúde nas urgências hospitalares, uma área delicada e muito mediatizada. O governo do Partido Socialista, que cessou funções no início deste mês, avançou com a criação de equipas dedicadas nos cinco maiores hospitais do país (Santa Maria, São João, São José, Santo António e Coimbra), de modo a dar maior estabilidade às equipas, melhorar a prestação de cuidados e fixar profissionais.
Mas a adesão dos médicos tem sido reduzida, apesar dos aumentos salariais (que vão dos 40% aos 100%) aprovados na fase final da anterior legislatura, como disseram em março vários responsáveis hospitalares ao Observador. A contribuir para a baixa adesão ao modelo está o fim da atividade em enfermaria para os médicos que aceitem integrar estas equipas e a elevada exigência do trabalho na urgência.
“A gestão de recursos humanos é decisiva. E durante muitos anos não tivemos uma política de planeamento”, diz ao Observador o ex-ministro da Saúde Luís Filipe Pereira, que considera difícil inverter o estado das urgências num curto período. Assim, é expectável que a Ana Paula Martins tenha dificuldade em atrair médicos para equipas dedicadas nas urgências. E não basta acenar aos médicos com grandes incentivos salariais, como se vê — as condições de trabalho são cada vez mais valorizadas.
Consultas de doença aguda em tempo útil nos centros de saúde
Um dos fatores que explicam o elevado e persistente recurso às urgências hospitalares é a falta de consultas de doença aguda nos cuidados de saúde primários, céleres e em horários compatíveis com as necessidades da população. “Acabaram os serviços de atendimento permanente (SAP). Não defendo que se volte a esse modelo, mas tem de haver uma aproximação da resposta”, defende o ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, sublinhando que os “cuidados de proximidade não podem fechar às 18h, e têm de trabalhar aos fins de semana”. “Pais que trabalham durante o dia e que têm de levar uma criança com febre ao médico, têm de ter a possibilidade de ir ao centro de saúde, da sua zona, pelo menos até às 22h”, realça o ex-ministro, vincando que os centros de saúde não podem ter um horário de funcionamento administrativo.
O problema é que, para alargar os horários de funcionamento, como propõe o plano de emergência da AD, são necessários médicos. E é conhecida a carência de especialistas em Medicina Geral e Familiar (vulgarmente designados médicos de família) em Portugal, particularmente nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve, que são também aquelas onde existe uma maior pressão sobre as urgências hospitalares.
“Não é fácil fazê-lo, temos um problema de recursos”, antecipa Luís Filipe Pereira. Muitos médicos de família não estão disponíveis para alargar o horário de trabalho diário para lá das oito horas, e a contratação de tarefeiros é difícil e reveste-se de uma particular incerteza (não são raros os casos em que os médicos prestadores de serviço contratados acabam por não se apresentar nos centros de saúde, por terem recebido uma oferta melhor, e sem que haja qualquer penalização).
Na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde (segundo os dados do portal dos Cuidados de Saúde Primários) existem 350 centros de saúde, apenas 25 funcionam ao sábado e ao domingo. E, durante a semana, com horário alargado — a partir das 20 horas — só funcionam 42 centros de saúde em todo o país e apenas durante o período de inverno.
Uma resposta, curta, que o plano de emergência para a saúde quer reforçar.
Abrir USF modelo C em Lisboa e Porto
É um dos temas mais polémicos na área dos cuidados primários. As USF modelo C são uma espécie de PPP dos centros de saúde, em que a gestão é entregue aos setores privado e social, o que permite uma autonomia total na contratação de recursos humanos, por exemplo. O ex-ministro da Saúde Manuel Pizarro rejeitou avançar com o modelo, argumentando que a solução para a falta de médicos de família não passaria por aí e prevendo que a medida acabaria por levar a uma transferência de médicos do SNS para estas unidades.
A verdade é que as USF modelo C colhem a simpatia de vários setores e poderão mesmo ser uma realidade nos próximos anos, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Numa primeira fase, devem ser implementados projetos-piloto. No entanto, a ministra da Saúde avisa para as dificuldades. “É preciso perceber que esta é uma medida muito exigente e muito difícil de concretizar”, realçava Ana Paula Martins.
Criar a especialidade de Medicina de Urgência e Emergência
Esta é uma medida que divide a própria comunidade médica, particularmente os internistas — os especialistas que constituem a base das urgências hospitalares. O novo governo vê com bons olhos a criação da especialidade, que pode melhorar a qualidade do trabalho médico nesta área. No programa eleitoral, a AD sublinha que a medida terá de ser tomada em conjunto com a Ordem dos Médicos. Mas isso poderá não ser suficiente.
Em dezembro de 2022, a Assembleia de Representantes da Ordem (uma espécie de parlamento interno) chumbou a criação da especialidade, por larga margem (51 votos contra, 21 a favor e três abstenções) apesar de o à época bastonário, Miguel Guimarães, se ter mostrado favorável à ideia.
Mesmo que a entidade agora liderada por Carlos Cortes e o Governo cheguem a acordo para voltar a colocar a ideia a votação dos representantes dos médicos, nada garante que a criação da especialidade seja aprovada. Aliás, a dimensão do chumbo, há pouco mais de um ano, indicia que será muito difícil tal acontecer num futuro próximo.
Grau de dificuldade: Médio
Voucher consulta de especialidade
É das medidas mais emblemáticas e um eixo central do novo Plano de Emergência. À semelhança do que já acontece com as cirurgias, a ideia é atribuir um voucher — para utilizar nos setores privado ou social — assim que seja atingido o tempo médio de referência para a realização de uma consulta de especialidade hospitalar sem que a mesma tenha ocorrido. Caberá ao utente escolher onde quer ser tratado.
No ano passado, o Observador fazia um retrato pouco animador do cumprimento dos Tempos Máximos de Resposta Garantidos para as 25 especialidades hospitalares mais importantes. Em mais de 60% das especialidades, o tempo de referência era excedido para consultas de prioridade normal. Havia casos em que os 120 dias (ou quatro meses) de referência eram largamente ultrapassados, com esperas superiores a dois e até a três anos. A demora excessiva nos acessos a consultas de especialidade não é uma novidade, mas tem vindo a agravar-se nos últimos anos e será agora um dos alvos do governo, através da cooperação com os setores privado e social.
Esta é, no entanto, uma medida transitória, para implementar enquanto não existir uma resposta suficientemente robusta no SNS. É o próprio programa da AD que admite que, no SNS, o cumprimento dos tempos de espera não vai ser regularizado tão cedo. O programa eleitoral estabelece apenas o final de 2027 como meta para assegurar que os Tempos Máximos de Resposta Garantidos são cumpridos para os doentes oncológicos. Em relação aos restantes, não se vislumbra qualquer referência.
No entanto, a medida pode enfrentar algumas dificuldades. Desde logo, porque o número de consultas é muito superior ao de cirurgias, o que iria obrigar à emissão de muito mais vouchers. “Esse pode ser um problema”, diz Luís Filipe Pereira. Para além disso, não é certo que os setores privado e social tenham capacidade para receber todos os utentes que não conseguem uma consulta no SNS em tempo útil. “Temos de ver se existem médicos disponíveis, mas não me parece de difícil execução”, diz o economista, que assumiu a pasta da saúde nos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes.
Se no setor social a capacidade instalada é muito superior àquela que está atualmente contratualizada — havendo capacidade de aumentar a resposta aos utentes do SNS —, no privado a questão é mais delicada. O aumento da procura pelas clínicas e hospitais privados nos últimos anos criaram também listas de espera e não há muita capacidade por aproveitar.
Acresce ainda a incerteza quanto à taxa de utilização dos vouchers. É que a esmagadora maioria dos utentes que recebem vales-cirurgia não os utiliza — cerca de 80% —, o que poderá acontecer também com as consultas. “Há que melhorar o circuito, a relação de confiança [entre o cidadão e o SNS] e a proximidade”, alerta Adalberto Campos Fernandes, sublinhando que muitas vezes os doentes não usam o vale-cirurgia porque as opções propostas fora do SNS ficam muito longe da sua área de residência.
Médico de família para todos (recorrendo aos setores privado e social)
Com 1,5 milhões de portugueses sem médico de família (cerca de mais 400 mil do que quando António Costa chegou a São Bento, em 2015, com a ideia da cobertura universal como uma das bandeiras de campanha), o aumento da resposta a este nível é uma das prioridades do novo Governo, sublinhado por diversas vezes por Luís Montenegro. A medida passa pela “atribuição de um enfermeiro e um médico de família a todos os portugueses, recorrendo, para isso, aos profissionais do SNS aposentados que estejam interessados e também à capacidade do setor privado e social”, disse o recém-eleito primeiro-ministro, ainda na pré-campanha para as legislativas, numa convenção da Aliança Democrática, em Janeiro.
Numa entrevista ao jornal especializado Health News, a agora ministra da Saúde assumiu o mesmo compromisso. “O nosso programa passa desde logo pela atribuição de médico e equipa de saúde familiar a todos os cidadãos”, assumiu Ana Paula Martins, sublinhando que a falta de resposta em determinadas zonas do país é “uma questão que coloca em causa a confiança no sistema”.
A responsável máxima pela pasta da Saúde detalhava nessa entrevista que o objetivo é estabelecer um acordo com os médicos que trabalham nos setores privado e social, ainda que admitisse que essa medida possa não ser considerada uma atribuição de médico de família. “Dir-me-á que isso não é uma equipa de saúde familiar. É verdade, mas é melhor ter um médico de família ou um médico assistente para fazer o acompanhamento em proximidade”, vincava Ana Paula Martins.
Segundo as estimativas da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, já há entre 1000 e 1500 médicos de família a trabalhar fora do SNS, nomeadamente em hospitais e clínicas do setor privado, nas misericórdias ou em clínicas próprias. “Se não encontrarmos médico para a totalidade dos utentes sem médico, pelo menos encontramos para uma parte e já é um avanço”, diz Luís Filipe Pereira, que considera que esta área “foi conduzida a uma situação muito degradada nos últimos anos”.
Mas a verdade é que o Governo de António Costa não aproveitou a capacidade instalada no exterior, nomeadamente no setor social, para aumentar o acesso às consultas. Todos os anos, as Misericórdias realizam cerca de 100 mil consultas, ao abrigo da cooperação com o SNS, mas teriam capacidade para garantir cinco vezes mais: 550 mil.
É essa capacidade não aproveitada que o novo governo quer agora usar, de forma a garantir o acesso dos utentes sem médico aos cuidados. “O setor social é um aliado estratégico. Não é possível colocar em marcha o plano de emergência sem o setor social”, diz Adalberto Campos Fernandes, criticando a “barreira psicológica” que ainda existe e que impede o aprofundamento da colaboração do setor público com os restantes setores. “Há um conjunto de alegados defensores do SNS que acham que mais vale ter pessoas sem tratamento do que permitir a colaboração com outros setores. Isto é inaceitável”, diz o médico, especialista em Saúde Pública.
Plano de motivação para os profissionais
Este plano vai incidir sobre as carreiras dos médicos, enfermeiros, farmacêuticos, administradores, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e técnicos auxiliares de saúde e deve passar por incentivos laborais, desenvolvimento de carreiras, flexibilidade de horários de trabalho e diferenciação profissional. O objetivo do governo é ir além dos atuais incentivos financeiros, que, por si só, têm cada vez menos eficácia na fixação e atração de profissionais e apostar noutras áreas (relacionadas com as condições de trabalho e apoio direto), que são cada vez mais valorizadas.
“O plano de motivação não é só por via da remuneração, mas também por via das componentes sociais, como é o caso de creches para os filhos dos profissionais de saúde, do apoio às rendas e da flexibilidade laboral”, detalhava a agora ministra da Saúde, na entrevista que concedeu à Health News. “Temos de apostar na rede de mobilidade e no apoio da rede de creches. Muitos destes profissionais são jovens, pais e mães, que precisam de ter apoio a este nível”, acrescentava Ana Paula Martins.
Um plano de motivação com esta abrangência não será fácil de elaborar e pode demorar algum tempo a colocar em marcha, embora dependa essencialmente da vontade política do governo, consideram os ex-ministros ouvidos pelo Observador.
Grau de dificuldade: Baixo
Contratar médicos de família reformados
Esta é uma das medidas de execução mais simples. Desde 2016 que os médicos de família podem acumular a pensão com 75% do salário que recebiam quando se reformaram, continuando, desta forma, a realizar consultas no SNS. E a verdade é que a adesão tem sido significativa. Nos últimos anos, a proporção de médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar que se reformaram, quando reuniam condições para o fazer, oscilou entre os 36% e os 41%, o que significa que os restantes aceitaram continuar a trabalhar no SNS.
Assim, uma parte significativa dos médicos opta por não terminar a carreira aos 67 anos, prolongando-a até aos 70 anos, o limite legal para a Função Pública. Nos próximos três anos, o Ministério da Saúde estima que a taxa de aposentações se mantenha nos 50%, voltando ao patamar dos 40% a partir de 2027.
Aumentar o número USF tipo B
Neste ponto, o novo Governo tem a tarefa mais facilitada. Desde o início de 2024, mais de 220 centros de saúde e Unidades de Saúde Familiares (USF) tipo A transformaram-se em USF tipo B, um modelo de que atribui incentivos aos profissionais, premiando o desempenho, com o objetivo de reforçar a eficácia, a eficiência e a acessibilidade dos cidadãos.
A passagem para o modelo B depende da candidatura dos centros de saúde e os pedidos não têm faltado ao longo dos últimos anos. Acontece que, até 2024, eram estabelecidas quotas anuais, que limitavam o número de novas USF modelo B a 20 ou 30 por ano. Neste momento, já estão em funcionamento 648 USF modelo B, cerca de metade do total de centros de saúde (de todas as tipologias) que existem em Portugal.
Se o novo Governo eliminar as quotas que vigoraram até ao ano passado e passar a autorizar a transição para USF modelo B de todas as unidades que cumpram os requisitos, aumentar o número de centros de saúde desta tipologia não será difícil.
Da rede de urgências hospitalares ao reforço do apoio domiciliário: outras medidas de emergência
O plano de emergência, que consta de forma sumária no programa eleitoral da AD, contempla ainda outras medidas: o alargamento do âmbito e da cobertura do programa Cheque-Dentista; o reforço das Equipas de Apoio Domiciliário; o alargamento das consultas de psicologia e nutrição nos centros de saúde; a redefinição da rede de urgências hospitalares; a criação do Gestor do Doente Crónico nas urgências; a criação de Centros de Responsabilidade Integrados de segunda geração; a criação de novos incentivos no programa SIGIC ou a organização de uma resposta pública no SNS com vista ao aumento da natalidade e maior acesso às técnicas de Procriação Medicamente Assistida.