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Esta entrevista foi originalmente publicada a 1 de maio de 2019. Republicamos a conversa de Domingos Piedade com Rui Miguel Tovar por ocasião dos 30 anos da morte de Ayrton Senna
“Se calhar, a bola foi para o Ayrton”. As palavras de Roberto Baggio, a propósito do decisivo penálti falhado na final do Mundial-94 entre Brasil e Itália, explicam o sentimento de luto à escala planetária e prolongam o estatuto de lenda. Ayrton é Ayrton. Só há um, é o Senna e mais nenhum. Morre a 1 Maio de 1994, a meio do GP São Marino, ao volante de um Williams. Faz esta quarta-feira 25 anos. A perda é irreversível. Além dos três títulos de campeão mundial de Fórmula 1, junte-se-lhe um carisma XXL, uma vontade férrea de ganhar a todo o custo e, acima de tudo, uma habilidade automobílistica fora do normal.
Morreu Domingos Piedade, o “senhor Fórmula 1” que era amigo de Senna e lançou Schumacher
Quem o acompanha de perto é Domingos Piedade, voz eterna da F1 em Portugal e companheiro/amigo de Ayrton durante anos a fio. A caminho dos 75 anos, Domingos Caetano Ramos Piedade, nascido e criado na Mouraria (um mouro, na verdadeira acepção da palavra) desde 26 Dezembro 1944, brinda-nos com uma entrevista sempre a abrir. Que, curiosamente, até começa pela música. Basta aparecer-lhe com uma t-shirt dos Beatles à frente.
Beatles? Baaaaahh.
Então?
Uma vez, em 1960, disseram-me para ir a Inglaterra. Está um branco a tocar guitarra em Soho que é uma maravilha: toca e canta como o BB King. E eu para mim: ‘Para já, nem um black toca como BB King; quanto mais um branco’. Lá fui a Inglaterra, era só atravessar o Canal da Mancha. Estamos a falar de um tempo em que a música se ouvia nos clubes, não havia cá discotecas. Era tudo música ao vivo. Bom, lá entrei no clube e vi lá um gajo com um ar triste a tocar. Era mesmo uma maravilha. Era um fenómeno. Sabe quem era?
Nem ideia.
Eric Clapton. Como se diz na gíria automobilística, entrou a 100, saiu a 200. Que espetáculo. Divinal, digo-lhe.
E os Beatles?
Nessa altura ainda andavam em Hamburgo e ninguém lhes ligava nenhuma.
Alguma vez os viu ao vivo?
Nunca. Nem em Hamburgo nem em Mannheim, nem em Munique. Nada. Em 1972, conheci o George Harrison.
Conheceu-o mesmo, assim à grande?
Ahahah, à grande. Ele, sim, bom de música. Aquele ‘My Sweet Lord’ é poesia, pura poesia. Agora os Beatles, as letras deles são mais básicas: combinei às 5, só chegaste às 12. Epá, não, isso não.
Ahahahahah. Conheceu o George Harrison em que ocasião?
Através do Emerson Fittipaldi, o Majo.
Majo?
M-a-j-o. Um dia, ele pediu-me ajuda para organizar a vida dele. Respondi-lhe que a vida dele não era organizável. E dizia-lhe mesmo: ‘Já te levantas com meia hora de atraso; a partir daí, é sempre a acumular atrasos. Nem sei porque é que usas relógio, devias era andar com um calendário.’
E ele?
Passava-se, ahahahah. Chamava-me todos os nomes possíveis e imagináveis. Mas insistiu na ajuda e eu aceitei, claro. Era só um ano, concordámos. Entrei naquele mundo dos automóveis e aquilo é como as cerejas. Isto para dizer que conheci o George Harrison e ele era, de facto, um gajo à frente. Aquele álbum chamado Faster, de 1978, tinha sons de corrida de F1.
De onde é que conhecia o Emerson?
O Majo? Um dia, pedi permissão ao meu chefe para ir a Brands Hatch porque disseram-me que estava lá um brasileiro, futuro campeão mundial de F1. Quis ir vê-lo em ação. Quando o vi pela primeira vez, nem quis acreditar: era uma figura raquítica, magricela até dizer chega. E cabeludo. Aquilo era só cabelo. Trocámos umas palavras de circunstância. Ele morava em Norfolk, onde ninguém devia morar ahahahah, e comia fish and chips todos os dias. O gajo não sabia cozinhar e não tinha ainda dinheiro para pagar uma viagem à mãe. Outros tempos. Adiante. Em 1969, fui ver a estreia dele na F1, no GP Monza. No ano seguinte, vi-o ganhar a primeira corrida, nos EUA. Começámos a ficar entrosados e criou-se uma amizade boa. Fiquei com ele de 1973 até 1979.
Como é que ele era antes das corridas?
Era muito relax, dizia-me sempre ‘não afoba não’. É uma expressão muito brasileira. Como quem diz, não me atrapalha, sai do meu caminho, deixa-me sossegado. E eu deixava-o. Foi duas vezes campeão mundial.
E depois do Emerson?
A minha vida deu voltas e mais voltas. Boas voltas. Por exemplo. Em 1984, no meu primeiro ano na AMG, levei o meu carro para safety car num GP. A partir daí, os safety car fizeram sempre parte da F1. Assinámos um contrato em 1985. Hoje vale uns 15 milhões de euros por ano. Na altura, era zero. Hoje há um condutor oficial do safety car, é o Bernd Maylander.
E o Ayrton?
Conheci primeiro o pai Milton. Ele tinha 20 mil cabeças de gado e contava-as a partir de um avião à volta da propriedade. Que figura. Tinha umas propriedades em Goiania e Mato Grosso, era uma coisa do outro mundo. A fazenda de Dois Lagos era 100% autónoma: tinha eletricidade, água, leite, peixe, carne, pão. Nunca vi uma coisa assim. Tinha um heliporto, um lago para fazer jet ski, uma pista de kart, uma piscina olímpica.
Parecia o Hacienda Napoli, do Escobar.
Essa é boa. Nos anos 80, a minha secretária na AMG passa-me uma chamada. ‘É em castelhano’, diz ela. Muy bien, atendi. Do outro lado, um senhor a dizer que tinha um pistyon furado num C36, o primeiro carro que fizemos na AMG. E eu ‘Está a ligar-me de onde?’. E ele, da Colômbia. E eu, ‘mas não vendi nenhum C36 para a Colômbia’. E ele, ‘comprámos em Miami’. E eu, problema vosso. E ele, ‘oye Domingo, no creo que Pablito se quede contento com eso. Pablito?’ Era da parte do Pablo Escobar.
Booooom.
Disse-lhe ‘não se preocupe, vou já tratar disso’. Tínhamos uns 100 funcionários e enviei três com as peças necessárias para dar a volta ao assunto. Alertei-lhe para o preço e ele ‘no te preocupes’. Os três funcionários fizeram Frankfurt-Bogotá-Medellín. Chegaram a Medellín e nunca mais tivemos informações deles. Um dia, dois, três, quatro. Ao 5.º, lá ligaram. Não sabemos bem onde estamos, diziam-me eles. ‘E os carros?’, perguntei-lhes. ‘Os carros estão aqui e já fizemos tudo.; queremos ir embora, só que eles perguntam se estamos insatisfeitos’. Resumindo, ficaram lá dez dias como prémio pela reparação.
Escobar. Conhece outras figuras assim?
Conheci muita gente rica. O príncipe do Brunei, por exemplo. Vendíamos carros para o Brunei, via Singapura, e aquilo era um mundo à porta. O príncipe convidava todos os artistas de renome para dar espetáculos ao vivo no seu palácio e eu lá dentro a assistir a tudo.
Quem, por exemplo?
Quem? Elton John, Bryan Adams, Barry White, Tina Turner, Seal, Gipsy Kings, Rod Stewart, Michael Jackson, Sting, Steve Wonder, you name it. No primeiro dia, o príncipe dava o seu show no palácio aos amigos mais próximos e familiares. No dia seguinte, apresentava o mesmo show aos locals. Eu ia sempre aos dois eventos.
E mais, e mais?
O Rei.
O de Espanha?
Juan Carlos, em pessoa. Na primeira vez que se dirigiu a mim, falou-me em português. Um dia, o Bernie [Ecclestone] veio ter comigo e disse-me que o rei queria dois safety car. Fi-los à medida dele. Era um condutor fantástico. Conduzia muito bem mesmo. Nunca mais me esqueço desta história: um belo dia, pedi à minha secretária para não me passar chamadas, fosse quem fosse. De repente, vejo-a à porta com uma cara de outro mundo. Então, perguntei-lhe. E ela contou-me o diálogo: ‘Quem tem está ao telefone? The king of Spain’. Ahahahahah.
Que figura.
Mesmo.
E o Bernie?
Eu e o Emerson fomos ao Japão em 1973, ainda não havia lá um GP. Era uma cena de promoção e lá fomos. Quando chegámos ao circuito perto do monte Fuji, estavam 20 mil gajos à espera do Emerson. Em 1975, já com o Bernie a organizar, fomos lá fazer uma apresentação porque o primeiro GP Japão ia ser no ano seguinte. O Bernie levou seis carros e seis pilotos. A ideia era chegar lá e dar umas voltinhas. Estavam mais de 50 mil e o Bernie lembrou-se de fazer uma corrida entre os seis. Foi a loucura, não é? Está a ver seis pilotos de férias a curtir o momento, o circuito novo, a fazer ultrapassagens e tal. Loucura completa.
Insisto neste ponto, e o Ayrton?
Comecei a acompanhá-lo em 1981, tinha ele 21 anos e seis meses,. A primeira vez que estive mesmo com ele foi no GP Estoril, para o Mundial de kart. Correu e perdeu o campeonato. Acredite, a grande mágoa do Ayrton é não ter sido campeão mundial de kart. Quando ele ganhou o terceiro Mundial de F1, ele chegou mesmo a dizer-me que trocava um Mundial de F1 por um de kart. Está tudo dito ou não?
…
Se não está, conto-lhe esta história fantástica. Um dia, um jornalista italiano estava a fazer um trabalho com a maioria dos pilotos de F1 sobre os respetivos ídolos. Ele chegou à fala com o Fangio, com este, com aquele e chegou a vez do Ayrton.
E então?
O Ayrton disse-lhe que o ídolo dele era o Mike Wilson. E o jornalista italiano questionou-o como se não tivesse entendido o nome. E o Ayrton insistiu, Mike Wilson. O italiano continuou especado a olhar para ele e o Ayrton foi obrigado a explicar-se: Mike Wilson, seis vezes campeão mundial de kart. Você escreve sobre automobilismo e não conhece o Mike Wilson? Devia deixar a carreira. Eheheh, assim mesmo.
Como é que o Ayrton entra na F1?
Olha, essa é boa. O pai do Ayrton sempre disse: ‘enquanto eu for vivo, ele não vai correr na Europa.’ E a verdade é que o Ayrton só chegou à Europa aos 21 anos. A história é deliciosa, na Formula Ford. A uma semana do início do campeonato, o Ayrton chegou ao circuito e pediu um lugar. Na equipa do Ralph Firman, a Van Diemen. Que já tinha um gajo todo armado em campeão, um mexicano chamado Enrique Mansilla, patrocinado pela Marlboro. O Ayrton chegou-se ao pé do Firman e perguntou-lhe por um lugar na equipa, ao que o Ralph respondeu-lhe com o Enrique mais um outro que não me lembro do nome. Ai o Ayrton foi engraçado e perguntou-lhe quanto custava um lugar. A resposta foi 50 mil libras. O Ayrton não tinha esse dinheiro e sabia de antemão que o seu pai não ia ajudá-lo de maneira nenhuma. Posto isto, o Ayrton pediu um teste ali, naquela hora. O Ralph perguntou-lhe da experiência e ele foi sério, nenhuma. E era mesmo, o Ayrton nunca tinha conduzido aqueles carros. Nem naquele circuito. Ele tinha acabado de chegar à Europa! E o Ayrton propôs o seguinte: se for mais rápido que o Mansilla, o lugar custa 40 mil. Se der meio segundo de avanço, é 20 mil. Quer dizer, era um salto para a piscina sem saber se havia água lá em baixo. O Ralph deixou e o Ayrton deu meio segundo à segunda volta.
Espetáculo.
A primeira corrida não lhe correu bem, mas o resto foi um festival. Depois subiu para a F3 e ganhou 14 corridas. A seguir, F1.
Craque na chuva.
Pormenor engraçado, dito pelo próprio Ayrton: ‘Ando bem na chuva porque o Armando insistiu comigo; sempre que chovia, íamos testar o carro para Interlagos’. O Armando foi um amigo de sempre do Ayrton. E, sim, o Ayrton era craque na chuva. Do melhor que vi. Dava espetáculo, sempre. Ele fazia-me cada uma.
Então?
Duas semanas antes de morrer, ele ligou-me. É uma das historias mais giras da minha vida. Queria saber como ia ser o meu fim-de-semana e disse-lhe que tinha uma reunião com o presidente da Mercedes, em São Paulo, na quinta-feira. Uma outra na sexta-feira e embarcava ainda nesse dia para Lisboa. Muito bem. Na quinta, chego a São Paulo às seis da manhã e vou para o hotel. A reunião era só ao meio-dia, em São Bernardo. Meia hora depois de fazer o check-in, recebo uma chamada no quarto de hotel a dizer que essa reunião tinha sido adiada porque o presidente da Mercedes tinha sido desviado para Brasília e só voltava na 2.ª ou 3.ª feira. Fazer o quê? Ainda por cima, a história foi tão bem contada que nem podia mandá-lo para um sítio, ahahahah. Uma hora depois, na entrada do hotel, chega um Audi e sai de lá o Ayrton. Pergunta-me ‘Você passa o fim-de-semana comigo em Dois Lagos? Quero estar com você antes de começar o Mundial.’ Quando chego a Dois Lagos, dou de caras com o presidente da Mercedes.
Ahahaha.
Ele era malandro, gostava de fazer partidas. Dessa vez, até conheci a Adriane Galisteu. E fizemos motocrosse. Sabe como é que ele andava? Descalço. A sério, ele fazia motocross barefoot. Ele tinha imenso jeito para desporto.
E futebol?
Não tinha jeito nenhum, ahahah.
E era de que clube?
Corintiano até à sétima casa. Aí é de família: o pai era corintiano, o tio também, o avô e tal. Era tradição. O Emerson, por exemplo, já era do Palmeiras. Porquê? O pai, conhecido radialista de F1, era de Reggio Calabria, Itália. Como o Palmeiras é o clube da comunidade italiana. Está tudo ligado.
Com o Ayrton, amizade para sempre?
Nem sempre. Em 1985, 1986 e 1987, não nos falámos. Quer dizer, dizíamos bom dia, boa tarde e pronto. Não havia cá almoços juntos, jantares juntos e essas coisas.
Porquê?
Só para ver a peça que o Ayrton era. Eu ajudava o Michele Alboreto desde 1981. Em 1985, no GP Mónaco, era full time manager do Michele e dava uma mãozinha ao Ayrton, se ele precisasse. No dia de treinos, o Michele ainda tinha um jogo de pneus e o Ayrton já tinha feito o treino, só que estava a fazer a última volta. Disseram-lhe para sair. Ouviu-se na rádio o ‘stay out’ e ele sai devagar, devagarinho. Atrapalhou a entrada na boxe do Michele com menos de um minuto para acabar o treino. Beeeeeeem, o Michele ficou furioso e invadiu uma reunião do Ayrton a ameaçá-lo. Quando ele saiu de cena, o Ayrton perguntou-me ‘Ele tem razão, ò portuga?’
E o Domingos?
Disse que o Michele tinha razão.
E o Ayrton?
‘Você se decide: ou é amigo dele ou meu amigo.’ E eu disse-lhe que era amigo do Michele há mais tempo. Pronto, foi o suficiente para não nos darmos durante três anos.
Se era assim com o Alboreto, imagino com o Piquet.
Eischhhhh, aquilo com o Piquet era um cu de boi de todo o tamanho. Mas o Piquet era porreiro, engraçado. O apelido Piquet é da mãe. O do pai é Sottomayor, só que o pai queria que o Nelson jogasse ténis e ele só via carros à frente. Ainda me lembro do Nelson aqui em Portugal, quando passou uma temporada na minha casa do Estoril, com a minha mãe. Ela estava sempre preocupada: ‘o menino está tão magrinho’. Quando se foi embora, a minha mãe deu-lhe uma medalha da Nossa Senhora de Fátima e o Nelson andava sempre com essa medalha.
E a relação com o Prost?
Outro cu de boi.
Que tal o Prost?
Você tem de ver uma coisa, o Prost nunca teve um acidente na vida. Nem uma unha partida, nada. Era um piloto de corrida, não era um kamikaze. É um gajo muito giro de conviver. Muito perspicaz e altamente inteligente. Quando o conheci, só se via o nariz.
Ahahahahah. E o Mansell?
O Nigel era um fenómeno. Quando o vi a primeira vez, pensei ‘este gajo não sabe conduzir e não vai saber’. E era um fenómeno porque ele não é um super-dotado, mas tinha cá um coração. E uns tomates. Fazia coisas cheias de coragem. Diziam-lhe assim ‘aquela curva ali é para fazer no máximo a 80 km/h’. E ele ia lá e fazia a 85. Assumia o risco assim do nada. Passou a ser um piloto extremamente rápido com a suspensão ativa. Àquilo, às vezes, funcionava, outras nem por isso. Se não funcionava, dava uma solhas valentes. Mas ele insistia, queria lá saber das solhas. E não se esqueças disto: o Nigel foi para os EUA e ganhou lá. Ele corria na oval e endireitava o carro quando ele fugia. Só conheci três gajos com essa mania ‘I don’t give a shit’: o Gilles Villeneuve, o Juan Pablo Montoya e o Nigel.
O Mansell tinha casa em Portugal, não era?
Sim, para jogar golfe. Quem gostava realmente de Portugal era o Ayrton. Tinha cá muitos amigos, tinha a casa em Faro. Ele gostava mesmo disto aqui. E já cá não está.