Índice
Índice
Há quatro meses, quando a Assembleia da República discutiu um projeto de lei para abolição das corridas de touros em Portugal, o deputado André Silva argumentou que a “maioria dos deputados” estava a ceder aos “falaciosos interesses económicos” da indústria tauromáquica. O projeto, apresentado pelo partido Pessoas Animais Natureza (PAN), viria a ser rejeitado por CDS, PSD, PS e PCP – com o governo da Madeira a responder, em sede de audição parlamentar, que não se pronunciava por não existir na região qualquer prática tauromáquica. Contudo, a mensagem do PAN e do seu deputado único ficou bem registada: sendo a tauromaquia um “execrável divertimento” e uma “cultura de brutalidade e de sangue”, está também em decadência. “É muito menos relevante do que aquilo que os aficionados pretendem”, disse André Silva esta semana ao Observador. “Falam muito do valor de mercado da tauromaquia, mas não adiantam números”, acusa o deputado.
De facto, até mesmo o porta-voz da Prótoiro – Federação Portuguesa de Tauromaquia admite que “ninguém conhece” o impacto económico da tauromaquia em Portugal. Porém, Hélder Milheiro acredita que “a cadeia de valor é muito significativa” e que o setor “contribui com muitos milhões para a economia portuguesa”. Será assim?
A Prótoiro anunciou há alguns anos que ponderava fazer um estudo de impacto económico, mas ainda não avançou. Por enquanto, só o cruzamento de dados, alguns deles contraditórios, permite saber quanto vale a tourada em Portugal – quanto custa a venda de touros de lide, quanto ganham os promotores de touradas e as ganadarias, o que recebem os toureiros e que somas saem dos cofres do Estado.
Aficionados e setores anti-touradas apresentam os próprios dados e interpretam-nos de maneira muito diversa. O PAN diz que lhe cabe acima de tudo defender os animais e só está interessado em demonstrar a presumível irrelevância económica da tauromaquia porque precisa de responder à argumentação da indústria tauromáquica. Já a Prótoiro diz que se vê obrigada a enaltecer as estatísticas porque setores anti-touradas querem impor a narrativa da decadência.
Eurostat deixou de incluir touradas no setor cultural e criativo em 2012. Quantos fãs há?
Comecemos pelos números oficias. Devido a alterações de metodologia em 2012, o Instituto Nacional de Estatística (INE) deixou de publicar nas suas “Estatísticas da Cultura” quaisquer informações sobre espetáculos taurinos. Fonte oficial do INE explicou ao Observador que o Eurostat, o gabinete de estatística da União Europeia, deixou de considerar as touradas como modalidades do setor cultural e criativo e o organismo português passou a ter esse mesmo critério como referência. A título de exemplo, nos três últimos anos em que houve dados discriminados, as faenas tinham gerado receitas de bilheteira de 4,9 milhões de euros em 2010, de 3,9 milhões em 2009, e de 4 milhões em 2008. Valores à partida subvalorizados, no dizer de Hélder Milheiro. “Um bilhete em Portugal não custa menos de 25 euros e no ano passado tivemos 435 mil pessoas em espetáculos de praça. Muito por alto, diria que a receita bruta de bilheteira se situou em mais de 10 milhões de euros.”
À partida, os indicadores sugerem um declínio. No ano passado, realizaram-se 181 espetáculos taurinos em Portugal, com cerca de 378 mil espectadores, segundo a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), organismo tutelado pelo Ministério da Cultura. São considerados espetáculos taurinos as corridas de touros, mas também festivais ou novilhadas. Albufeira e Lisboa foram os concelhos com mais eventos destes, seguidos de Vila Franca de Xira e Évora. Ainda em 2017, a praça de touros mais popular foi o Campo Pequeno, em Lisboa, com cerca de 62 mil espectadores em 13 exibições (logo seguida da Praça de Toiros de Albufeira, com 25 mil espectadores em 26 exibições; e a Praça de Toiros Palha Blanco, em Vila Franca de Xira, com 20 mil pessoas em nove eventos).
Em 2007, por exemplo, os números reportados pela IGAC situavam-se muito acima dos atuais: 307 espetáculos e cerca de 620 mil pessoas, com o Campo Pequeno a liderar: 112 mil pessoas em 23 touradas. Tem-se verificado um “decréscimo contínuo de espetáculos tauromáquicos”, segundo a IGAC, mas num dos relatórios registou uma nuance: de 2016 para 2017 houve um aumento de 15.895 espectadores, 4,39%, “o que não acontecia desde 2010”.
O porta-voz da Federação Portuguesa de Tauromaquia não confia nestes dados e considera-os aquém da realidade. Recomenda, por isso, a estatística da própria organização, segundo a qual, em 2017, houve 205 espetáculos de praça (e não 181) a que acorreram 450 mil espectadores (e não 378 mil). “Se a isto juntarmos as tauromaquias populares, estaremos a falar de três milhões de pessoas por ano”, estima.
“Os números da IGAC não fazem o retrato da tauromaquia em Portugal, são um retrato administrativo”, sublinha Hélder Milheiro. “A IGAC nomeia veterinários e diretores de corrida, que aplicam o Regulamento do Espetáculo Tauromáquico. Logo, só contabilizam os eventos para os quais nomeiam delegados. Há outras duas distorções. Por um lado, a IGAC só tem autoridade sobre eventos em Portugal continental, sendo que nos Açores há uns 10 espetáculos por ano. Por outro, há espetáculos de recrutadores, uma forma de tauromaquia que acontece nas praças e que não está definida no Regulamento do Espetáculo Tauromáquico, logo, também não aparece na estatística da IGAC.”
A Prótoiro classifica como espetáculos taurinos todos os eventos formais em praça onde seja lidada pelo menos uma rês brava (e ainda assim diz deixar de fora as chamadas tauromaquias populares: largadas de toiros do Colete Encarnado em Vila Franca de Xira, a Vaca das Cordas em Ponte de Lima ou as Touradas à Corda dos Açores).
Mais uma vez, o PAN discorda. “Os dados da IGAC estão absolutamente empolados”, diz o deputado André Silva, baseando-se na discrepância que existiu no passado entre os números do organismo inspetivo e os do INE, quando ambos compilavam dados sobre corridas de touros (a divergência poderia estar no facto de o INE considerar apenas touradas em praças fixas e a IGAC incluir também praças ambulantes). Por isso mesmo, o deputado avança a novidade: ainda este ano, irá apresentar na Assembleia da República um diploma que obrigue o INE a fazer novamente a contabilização do setor tauromáquico.
IVA. “Pelo menos queremos dar passos para asfixiar a tauromaquia”
O valor da indústria taurina voltou à agenda nos últimos dias, depois de a nova ministra da Cultura ter dito no Parlamento que é “uma questão de civilização” manter a 13% o IVA dos bilhetes de acesso a exibições tauromáquicas, em vez de o reduzir para 6%, tal como prevê a proposta do Orçamento do Estado para outros espetáculos culturais. A afirmação gerou revolta entre aficionados, incluindo dirigentes do partido que apoia o governo. O histórico do PS Manuel Alegre publicou uma carta aberta dirigida ao primeiro-ministro, António Costa, a classificar as críticas à tourada como um “fanatismo do politicamente correto” que “cheira a totalitarismo”. O primeiro-ministro respondeu-lhe este domingo, também em carta aberta, garantindo que não é um mata-toureiros e defendendo a liberdade de cada município em relação às touradas. Diz que se sente chocado com a transmissão desses espectáculos na RTP, mas frisa que nada fará para as proibir.
Durante a semana, a ministra Graça Fonseca tinha voltado a ouvir críticas numa audição na Assembleia da República. A deputada centrista Teresa Caeiro acusou-a de “usar o fisco como forma de discriminação de uma atividade legítima”, o que configura “censura”. “Não podemos fazer uma ditadura do gosto através da fiscalidade”, sublinhou. O deputado açoriano António Ventura, do PSD, sustentou que as declarações da ministra “ofenderam clara e profundamente o povo e as tradições tauromáquicas da ilha Terceira”, onde está “a população mais taurina do mundo”. Graça Fonseca suavizou o que tinha dito, mas manteve o essencial.
O IVA nos bilhetes das touradas, segundo o PAN, deveria até estar na taxa máxima, de 23%. Ainda assim, André Silva apoia os 13% previstos para o próximo ano. Questionado pelo Observador sobre a aparente contradição de apoiar um aumento de receita fiscal através de uma atividade que classifica como tortura de animais, o deputado responde não existir qualquer contradição, porque o objetivo final é outro. “Se ainda não conseguimos acabar com a transmissão de touradas na televisão, que as crianças fossem afastadas das praças, que o Estado deixasse de apoiar o setor ou que, simplesmente, a tourada fosse abolida, pelo menos queremos dar passos para asfixiar a tauromaquia. Aumentar impostos é uma boa forma de o conseguir.”
Os aficionados não se conformam. Argumentam que a lide de reses bravas é parte integrante do património da cultura popular portuguesa, como aliás aparece escrito no Regulamento do Espetáculo Tauromáquico, aprovado pelo governo de Pedro Passos Coelho e publicado há apenas quatro anos. Trata-se de um “espetáculo de natureza artística”, classifica a IGAC. No relatório de 2017 sobre a atividade tauromáquica, este organismo escreve até que as touradas têm, em várias regiões, “particular relevo ao nível artístico-cultural e na afirmação das respetivas economias locais”.
“O princípio do acesso dos cidadãos à cultura não autoriza que se discrimine em função do tipo de espetáculos a que as pessoas assistem”, acrescenta Hélder Milheiro. “Queremos igualdade de tratamento perante o IVA, como os outros agentes da cultura.”
Empresários promotores das touradas pagam 3.500 euros por touro. Um negócio de 5 milhões
A abertura da época taurina em Portugal inicia-se oficialmente a 1 de fevereiro e termina a 1 de novembro. Todas as touradas têm um promotor, empresário que organiza e produz o espetáculo. Normalmente, as entidades proprietárias das praças arrendam a exploração a um empresário por períodos de três anos, mas também há promotores proprietários de praças, como é o caso de Fernando dos Santos, conhecido toureiro dos anos 60 e 70: é fundador e proprietário da Praça de Toiros de Albufeira desde 1982 e explora também a praça da Nazaré.
Em relação à criação dos animais, verificamos que em 31 de dezembro de 2017 havia nas ganadarias de Portugal continental e dos Açores 9.783 machos da raça brava de lide (os touros de arena), segundo dados do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, departamento do Ministério da Agricultura que gere financiamentos do Estado e da União Europeia. Os animais encontram-se distribuídos por 88 ganadarias em cerca de 70 mil hectares de montado e lezíria, de acordo com a Associação Portuguesa de Criadores de Touros de Lide. As três ganadarias mais requisitadas costumam ser a Pinto Barreiros, a Carlos Falé Filipe e a Casa Prudêncio, embora as ganadarias espanholas também atuem no mercado português, como é o caso da Nuñez de Tarifa. Além disso, os criadores portugueses também exportam para Espanha e França.
Por norma, os empresários promotores de touradas pagam cerca de 3.500 euros por cada touro, diz a Associação Portuguesa de Criadores de Touros de Lide. Se em 2017 foram lidados 1.394 animais de explorações portuguesas (1099 no nosso país e 295 em Espanha e França), o negócio terá rondado 5 milhões de euros.
André Silva, do PAN, afirma que, em média, há apenas três trabalhadores em cada ganadaria que produz a raça brava de lide, o que constitui “uma realidade laboral residual”. “Se tivéssemos que acabar com a tauromaquia já amanhã, certamente haveria uma linha de apoio à requalificação profissional das pessoas hoje envolvidas nestas atividades.”
“Cachet”: há toureiros a cobrar 50 mil euros por noite
Para montar uma faena, um empresário tem de alugar toiros a ganadeiros, contratar os artistas cabeças-de-cartaz (cavaleiros, bandarilheiros e matadores), grupos de forcados (que são todos amadores e recebem cerca de 1.500 euros por grupo) e uma banda.
A roupa dos artistas e a dos forcados, a expensas dos próprios, tem preços muito díspares. O “traje de luces” pode ser bordado a ouro ou a prata e por isso alcança seis mil euros, enquanto os forcados usam conjuntos que custam cerca de 250 euros.
Os artistas são contratados através de agentes (os apoderados), não existindo em Portugal um só apoderado que represente muitos artistas. Por vezes, até são os promotores acumulam a função de apoderados. As taxas obrigatórias de licenciamento, pagas à IGAC, têm o valor-base de 1.100 euros e incluem a nomeação de um diretor de corrida e de um veterinário. E há ainda custos com direitos de autor e policiamento. Só em logística, sem contar com cabeças-de-cartaz, uma praça de primeira categoria, como é o caso do Campo Pequeno, pode gastar 30 a 40 mil euros por tourada.
Quanto recebe um cavaleiro ou um matador é informação quase sempre reservada, mas dois empresários disseram ao Observador que o “cachet” pode ir de quatro mil euros por corrida, no caso do cavaleiro português Luís Rouxinol, até 50 mil, no caso do luso-espanhol Diego Ventura, considerado um dos melhores do mundo.
“Cada corrida é uma corrida”, contextualiza Hélder Milheiro. “A tauromaquia é uma arte performativa e não aceita repetição de equipas e por isso cada empresário adequa cada corrida ao público da zona e à praça. Ninguém vai ver três corridas com os mesmos cavaleiros.”
Quanto às transmissões televisivas de corridas de touros, são cerca de quatro por ano, na RTP e na TVI, e obrigam as estações a pagar cinco mil euros de direitos de imagem aos toureiros, montante que historicamente é cedido ao Fundo de Assistência dos Toureiros Portugueses, criado em 1952. (Outras fontes dizem que são 12 mil euros.) Segundo Nuno Pardal, presidente do fundo e da Associação Nacional de Toureiros (que até há poucos anos geria o fundo, antes de este se tornar uma entidade jurídica autónoma), trata-se de um sistema mutualista de apoio social para toureiros e as suas famílias, em caso de acidentes em praça, em treino ou como complemento de reforma.
Numa noite de casa cheia, com um cartel de nomeada, um empresário pode fazer até 180 mil euros, tratando-se de uma praça principal. No caso do Campo Pequeno, primeira praça portuguesa, com 6.668 lugares e uma taxa média de ocupação de 80%, houve 12 corridas este ano.
Estado apoiou com 1 milhão, associações protestam
Outro aspeto controverso é o do dinheiro público atribuído às atividades tauromáquicas. De acordo com a associação Animal, entre 2009 e 2017, milhões de euros foram atribuídos pelas autarquias e pelo governo regional dos Açores, razão por que esta organização de defesa de direitos dos animais tem a correr uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos para forçar a Assembleia da República a pôr fim a estas transferências. Quase 16 mil assinaturas foram recolhidas até ao momento.
Hélder Milheiro contrapõe que “apoios públicos do estado central e da União Europeia são zero”. “O Ministério da Cultura tem obrigação constitucional de financiar todas as áreas culturais, como é o caso da tauromaquia, mas nem nós nem o circo tradicional recebemos um cêntimo, nunca recebemos, que eu saiba. Tivemos uma reunião com o gabinete do anterior ministro da Cultura [Castro Mendes] e falámos da necessidade de criar apoios à tauromaquia. Simplesmente, temos conseguido viver da bilheteira, o que não se passa com a maior parte das áreas culturais financiadas”.
Que haja dinheiro para a tauromaquia por parte de autarquias e do governo dos Açores, Hélder Milheiro não contesta. De resto, há poucas semanas o jornal “Público” investigou contratos firmados entre 2009 e 2017 e disponíveis no portal da contratação pública, em base.gov.pt, tendo concluído que os gastos do poder local nesta área ultrapassaram um milhão de euros, com Estremoz e a Azambuja no topo – gastos com aquisição de bilhetes, aluguer de animais ou requalificação e manutenção de praças de touros. “Número absolutamente irrisório”, comenta Hélder Milheiro. “E não podemos esquecer que as touradas geram um impacto económico forte nos municípios, com festas populares que movem centenas de milhares de pessoas.”
Rui Bento, diretor de atividades tauromáquicas do Campo Pequeno, afasta a ideia de declínio. Entende que a festa brava em Portugal “está claramente em fase de crescimento” e garante: “Pode ter havido uma redução de espetáculos nos últimos anos, mas a qualidade tem aumentado”. Quanto às polémicas palavras da ministra Graça Fonseca, diz que foram uma “estocada democrática”.