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Ana Mendes Godinho e Vieira da Silva, os ministros que "mandam" na Santa Casa há 8 anos. O ex-provedor Edmundo Martinho foi substituído por Ana Jorge
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Ana Mendes Godinho e Vieira da Silva, os ministros que "mandam" na Santa Casa há 8 anos. O ex-provedor Edmundo Martinho foi substituído por Ana Jorge

Ana Mendes Godinho e Vieira da Silva, os ministros que "mandam" na Santa Casa há 8 anos. O ex-provedor Edmundo Martinho foi substituído por Ana Jorge

Dos milhões do jogo aos prejuízos na saúde e negócios internacionais. O que está a abalar as finanças da Santa Casa

A Santa Casa está perder negócio no jogo e acumula prejuízos na saúde. Governo mandou auditar projetos internacionais e reavaliar contas. Ex-provedor diz que tutela aprovou estratégia e decisões.

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Parecia estar sentada em cima de um pote de dinheiro. Recuando a 2019, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tinha resultados positivos acumulados de 650 milhões de euros, lucros de 37,5 milhões de euros, depósitos bancários de mais de 200 milhões e mais de 600 imóveis. Um ano depois chegaram os prejuízos pesados de 53 milhões de euros que resultaram da combinação da perda de receitas do jogo com uma subida dos custos. As vendas brutas dos jogos, cuja exploração está atribuída à Santa Casa, caíram 17,6% (menos 592 milhões de euros) e a instituição teve mais gastos por causa da Covid-19.

Outros poderes. Para onde vão os milhões do jogo da Santa Casa?

A pandemia foi a principal causa, mas não é a única culpada. Os efeitos do confinamento que afastou as pessoas das ruas e da raspadinha contribuíram para acelerar a perda gradual de mercado para os concorrentes mais atrativos do jogo online. Ao mesmo tempo, trouxeram ao de cima prejuízos crónicos das unidades de saúde da Santa Casa que antes estavam disfarçados pela abundância de fundos do jogo. Os projetos para encontrar novas fontes de receita não estão a dar frutos, mas a Santa Casa não se coibiu de aumentar os custos ao assumir mais responsabilidades sem a respetiva contrapartida financeira.

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Os jogos sociais geram, em termos líquidos, mais de 800 milhões de euros por ano (o que corresponde a mais de dois milhões de euros por dia) e a Santa Casa recebe uma fatia que é a sua principal fonte de receita. Entre 2019 e 2020, essa fatia encolheu 20%, de 226 milhões para 180,5 milhões de euros. As receitas recuperaram em 2021, mas não voltaram ao nível de 2019 e a Santa Casa voltou a apresentar perdas — 20,18 milhões de euros — e a evidenciar fragilidades estruturais do modelo de negócio que já se anunciavam.

Esta semana, a instituição liderada por Ana Jorge indicou que está a “proceder a uma reavaliação profunda de toda a sua política de parcerias financeiras e patrocínios a entidades externas, por modo a criar mecanismos mais eficientes e sustentáveis”, com impacto nos apoios às federações desportivas.

A expansão da oferta de serviços a áreas como os cuidados integrados, a saúde oral e as demências, bem como a compra do Hospital da Cruz Vermelha (concretizada em 2020) e a aposta, infrutífera para já, na internacionalização são marcas da gestão do ex-provedor. Edmundo Martinho foi afastado este ano a meses de terminar o mandato — após sete anos como provedor da Santa Casa — por iniciativa da ministra da Solidariedade e Segurança Social, que justificou essa opção com o objetivo de facilitar a transição para uma nova equipa, liderada por Ana Jorge, antiga ministra da Saúde em governos do PS.

Ana Jorge já tinha estado na Santa Casa

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A ex-ministra socialista da Saúde, Ana Jorge, afastou-se da Santa Casa em 2021, durante o mandato de Edmundo Martinho quando este lhe comunicou que não ia liderar a estrutura de coordenação das quatro unidades de cuidados integrados. Ana Jorge tinha estado à frente do projeto para a unidade de cuidados paliativos Rainha Dona Leonor (Complexo Hospital da Estrela). Mas o então provedor considerou que não tinha o perfil adequado e propôs-lhe que ficasse no conselho consultivo para o setor da saúde, o que foi recusado. Ana Jorge acabou por ser escolhida pela ministra da Segurança Social para o cargo de provedora, que ocupou em maio.

A estratégia da mesa (órgão da Santa Casa correspondente à administração) liderada por Edmundo Martinho seguiu os passos do antecessor, Pedro Santana Lopes, e foi sendo validada pela tutela, segundo confirmou ao Observador o ex-provedor.

Na tutela da instituição durante o mandato de Edmundo Martinho estiveram dois ministros, José Vieira da Silva, que o nomeou provedor em 2016, e Ana Mendes Godinho, que estava em funções quando foram concretizados alguns dos negócios mais sensíveis, como a compra do deficitário hospital da Cruz Vermelha, mas sobretudo a expansão internacional através da Santa Casa Global, cujas operações — por ordem da atual ministra — estão a ser alvo de uma auditoria externa. Os projetos nos mercados dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), uma prioridade nos planos de expansão que, segundo informação recolhida pelo Observador, terá sido indicada por Ana Mendes Godinho, têm encalhado em dificuldades burocráticas e legais.

As dúvidas sobre os resultados da Santa Casa levaram a tutela a não aprovar pela primeira vez em muitos anos a prestação de contas da instituição relativa a 2021, que até hoje não é pública. Em 2022, repetiu-se o cenário de não homologação das últimas contas apresentadas pela mesa dirigida por Edmundo Martinho, apesar de a SCML ter regressado aos lucros, com 10,9 milhões de euros, uma recuperação que contou com a atualização do justo valor do vasto património imobiliário.

A ministra justificou a não aprovação das contas com a existência de grandes discrepâncias nas receitas e nas despesas, face aos anos anteriores, mas, segundo afirmou Edmundo Martinho ao Observador, nunca houve pedidos de esclarecimento por parte da tutela sobre as contas que não foram homologadas.

Questionado pelo Observador, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) não esclareceu a sua intervenção na estratégia e decisões da anterior gestão da Santa Casa, nem as dúvidas concretas sobre as contas que não aprovou.

Salientando que a SCML “tem uma missão fulcral de aumentar a capacidade e melhorar as respostas sociais, garantindo maior eficiência e melhorando a sustentabilidade financeira da instituição”, fonte oficial diz que, “na sequência da tomada de posse da nova mesa da SCML e da necessidade de promover uma avaliação aprofundada das contas e garantir a sustentabilidade financeira da instituição, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social determinou que a SCML procedesse à reavaliação dos relatórios de gestão e contas da SCML dos anos de 2021 e 2022 e a uma avaliação externa e independente à Santa Casa Global, no âmbito do processo de internacionalização de jogos”.

O Ministério aguarda a entrega das conclusões da avaliação externa e independente à Santa Casa Global e da reavaliação dos relatórios de gestão e contas da SCML dos anos de 2021 e 2022, sem indicar quem está a fazer essa reavaliação.

Conselho de auditoria alerta para esgotamento de saldos e pede mais fundamentação para projetos internacionais de risco

Desde 2018 que os estatutos da Santa Casa determinam a necessidade de autorização da tutela para a realização de investimentos estratégicos e estruturantes, como são os projetos internacionais e a compra do Hospital da Cruz Vermelha. A tutela é exercida em exclusivo pelo Ministério da Segurança Social, mas cabe ao Ministério das Finanças a nomeação do presidente do conselho de auditoria, que desde 2016 é o antigo inspetor-geral de Finanças Vítor Braz.

No parecer ao relatório e contas de 2022, o conselho de auditoria acende várias luzes vermelhas para travar ou inverter a marcha financeira da Santa Casa nos últimos anos. A pretexto de “breve reflexão sobre alguns dos principais desafios que a instituição enfrenta”, o parecer, a que o Observador teve acesso, defende que esses desafios “apresentam impacto negativo relevante nos resultados e que se prevê que continuarão a condicionar a sua missão e resultados”.

Sem ignorar os efeitos da pandemia no agravamento da saúde financeira da Santa Casa, o parecer avisa que a instituição “tem esgotado os saldos pretéritos e a sua atual receita provém, na sua maioria, da lotaria instantânea — a Raspadinha”. Contabilisticamente, a instituição tem um balanço ainda forte, mas nos últimos quatro anos assistiu-se a uma queda dos depósitos bancários de 200 milhões de euros em 2019, para 137 milhões em 2020, 83 milhões em 2021 e 43,2 milhões de euros em 2022.

O parecer alerta também para a infraestrutura — hospitais, escolas e imóveis de heranças — envelhecida e a precisar de reformas com encargos elevados, para o envelhecimento da população que fez disparar a procura por novos serviços até à falta de pessoal qualificado e à concorrência dos privados da saúde na contratação de quadros qualificados e na oferta de serviços.

Mas é a forma como o processo de internacionalização tem sido gerido que o conselho de auditoria mais questiona, alertando para a necessidade de uma “profunda avaliação de aspetos estruturantes de cada país” e da “solidez e grau de implantação de parcerias, níveis de transparência dos processos de decisão, atividade regulatória, estabilidade política, índices de segurança e corrupção, maxime, nos PALOP e América Latina”.

É um recado direto à aventura internacional da Santa Casa. Justificada com a necessidade de diversificar fontes de receitas, tirando partido do know-how centenário da instituição, as operações em Moçambique, Angola, Peru e Brasil já consumiram mais de 20 milhões de euros em recursos financeiros — cinco milhões de euros em capital e 18 milhões de euros em prestações acessórias até 2022, segundo as demonstrações financeiras de 2021 e 2022 consultadas pelo Observador no Tribunal de Contas. Sem produzir receitas, e muito menos resultados. No ano passado foi criada uma provisão de cinco milhões de euros para cobrir as perdas.

Para o conselho de auditoria, o processo de internacionalização foi um “esforço muito significativo para a robustez da Santa Casa Global (SCG)”, considerando que “esses investimentos encerram risco e impõem adequada fundamentação por parte da SCG e serem acompanhados de exigentes e prévios processos de due diligence na instrução das respetivas decisões por parte da SCML”, o que não terá acontecido.

Negócio da Cruz Vermelha

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A proposta para a Santa Casa comprar o hospital foi feita pela direção da Cruz Vermelha, então liderada pelo ex-diretor-geral de Saúde, Francisco George. A Cruz Vermelha não tinha vocação, nem recursos financeiros para investir e manter competitivo o histórico hospital face à concorrência agressiva dos grupos privados da saúde. A aquisição foi justificada com o objetivo de manter o hospital no setor social e foi validada pela tutela. Mas o plano inicial de comprar todo o capital do Hospital da Cruz Vermelha encalhou nas dificuldades orçamentais que a Santa Casa começou a sentir em 2020, por causa da pandemia. Ficou com os 50% da unidade e manteve como parceiro financeiro a Parpública. Até 2022, os dois acionistas reforçaram os capitais próprios do hospital em 14,6 milhões de euros, mas estes estavam reduzidos a 1,9 milhões no final do ano. Por outro lado, o hospital tem nova equipa diretiva e tem feito um esforço de revitalização com investimentos, como a nova unidade de diálise.

Outro foco das preocupações são os prejuízos avultados nas unidade de saúde da Santa Casa às quais se juntou o Hospital da Cruz Vermelha — as perdas somaram 25 milhões de euros, mais 7,5 milhões de prestações acessórias colocados nesta unidade. Aliás, o histórico de resultados na gestão de unidades de saúde pela Santa Casa tem sido fortemente negativo nos últimos anos.

O Hospital Ortopédico de Sant’Ana (Parede), o Centro de Reabilitação de Alcoitão e a Escola Superior de Alcoitão têm tido prejuízos nos últimos anos — as duas primeiras na casa dos oito milhões de euros por ano. Basta olhar para os principais indicadores financeiros para perceber porquê: as receitas são muitos inferiores aos custos. Só os custos com pessoal superam os proveitos, um desequilíbrio estrutural que no passado era mascarado pela circunstância de, por exemplo, Alcoitão ser financiado pelo Totobola, cujas receitas hoje são residuais.

O maior investimento na área da saúde foi a unidade de cuidados continuados que nasceu do antigo hospital militar da Estrela, projeto que mobilizou 30 milhões de euros, incluindo a aquisição do edifício ao Ministério da Defesa, e que está a funcionar há cerca de um ano.

Há também novos projetos para o apoio à terceira idade, a residência sénior em Monsanto, e para as áreas de demência e saúde oral. Aliás, a Santa Casa mobilizou investimentos de 24 milhões de euros em 2019 e 2020 para a área da saúde. Isto apesar de, como assinala o conselho de auditoria, enfrentar “dificuldades na gestão individual destas unidades e necessidades do seu refinanciamento”. “Globalmente”, resume o parecer, “esses desafios têm vindo a aumentar significativamente os gastos e a condicionar as capacidade de resposta da SCML na realização da sua missão”.

Protocolo para criar unidade de cuidados continuados na Estrela assinado ainda por Pedro Santana Lopes em 2016 em

INÁCIO ROSA/LUSA

O parecer deixa recomendações para reforçar as funções de auditoria interna, para ponderar a “definição de uma estratégia sustentada para os investimentos e decisões prioritárias no setor da saúde e para reforço da fundação e due diligence no domínio de internacionalização e da atividade da Santa Casa Global. O documento assinala a redução de meios humanos em funções de auditoria e aconselha o reforço de competências técnicas em várias disciplinas.

Santa Casa está a reavaliar contas e já arrancou auditoria externa ao negócio de internacionalização

Não obstante os vários alertas, o conselho de auditoria emitiu em março um parecer favorável às contas que foram visadas pelo auditor (DFK & Associados) sem reservas, nem ênfases. Pelo menos no que toca à versão preliminar, a que o Observador teve acesso, e na qual os órgãos de controlo financeiro da instituição não sinalizam qualquer suspeita ou alerta para matérias irregulares. Fica por esclarecer porque não foram ainda aprovadas as contas de 2021 e de 2022 da Santa Casa, sendo que a tutela não pediu esclarecimentos à então administração.

Ao Observador, o Ministério da Solidariedade e Segurança Social tinha explicado numa resposta anterior que a “reavaliação” dos relatórios de 2021 e 2022 pedida à nova mesa da instituição, após uma “avaliação profunda” de todas as rubricas, é um processo autónomo da auditoria independente à Santa Casa Global. Ou seja, o Ministério não vai necessariamente esperar pela auditoria para decidir sobre os relatórios de 2021 e 2022 que continuam sob segredo.

Em resposta ao Observador, a Santa Casa indica que os processos de auditoria à Santa Casa Global e a reavaliação dos relatórios e contas da Santa Casa de 2021 e 2022 “continuam em curso, de acordo com o cronograma delineado, prevendo-se que em breve possam estar concluídos”.

A Santa Casa já tinha confirmado ao Observador que desencadeou o processo para a realização da autoria externa, adjudicada à BDO, e está, como instruído pela tutela, a “proceder a um levantamento exaustivo da situação financeira da instituição e das suas várias áreas de atividade”. No habitual espaço de comentário na SIC, Luís Marques Mendes chegou a dizer que em causa estão “indícios de ilegalidade” de eventuais negócios internacionais “ruinosos” , que levaram a ministra a recusar homologar as contas.

Mas, em abril, no Parlamento, Ana Mendes Godinho rejeitou ter alguma “suspeição” em relação às contas e justificou a não aprovação dos relatórios relativos a 2021 e 2022 com a “grande variação” verificada na receita e na despesa, que implicou “uma avaliação e uma análise profunda das contas” que, segundo dizia, era necessária para garantir que o futuro da instituição não ficaria hipotecado — e para que se entendesse “com profundidade” os “efeitos e as causas da redução da receita e do aumento da despesa”. Concretamente sobre as contas de 2022, que na altura ainda tinham sido apresentadas há pouco tempo, Mendes Godinho rejeitou fazer uma homologação à pressa. “Não homologo nada de cruz. [As contas] têm de ser bem analisadas e avaliadas”, disse.

A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho (D), ladeada pelo secretário de Estado do Trabalho, Miguel Fontes (E), fala durante a sua audição perante a Comissão de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, na Assembleia da República, em Lisboa, 07 de março de 2023. ANDRÉ KOSTERS/LUSA
"Não homologo nada de cruz. [As contas da Santa Casa] têm de ser bem analisadas e avaliadas".

Já então, Ana Mendes Godinho admitia que a pandemia tinha tido um impacto brutal nas contas da Santa Casa. A Covid-19 tirou os apostadores da rua que não voltaram aos pontos de venda da mesma forma, muito por culpa dos sites de apostas online, que parecem ter vindo para ficar.

Mudar estatutos para ter gestão mais profissional no jogo

Mas, segundo as fontes ouvidas pelo Observador, os problemas da Santa Casa não são apenas financeiros. Perante a expansão, diversificação de atividades e crescente complexidade dos negócios — que até envolveu investimento em criptoativos (NFT de relíquias e obras de arte do Museu de São Roque), sem resultados conhecidos — o modelo de gestão não será o mais ajustado e há vulnerabilidades no controlo interno.

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A anterior administração propôs mudanças nos estatutos da Santa Casa no sentido de uma maior profissionalização das funções de gestão do jogo para responder à concorrência online e de uma flexibilização das regras de contratação. Mas, ao Observador, nem a tutela nem a Santa Casa confirmam se vão avançar nesse sentido.

O Ministério da Solidariedade e Segurança Social não respondeu a esta questão do Observador, enquanto a Santa Casa não fecha a porta a essa revisão, mas também não confirma que vai fazê-la: o assunto vai ser estudado, diz. “Ainda sobre a possível revisão dos estatutos da Santa Casa, é uma matéria que terá de ser estudada pela nova administração, dentro do quadro da missão e das necessidades da instituição, numa sociedade com realidades cada vez mais complexas e exigentes”, refere.

Por outro lado, a política de nomeações deixa a porta aberta à governamentalização na escolha dos provedores. Santana Lopes foi nomeado pelo Governo PSD/CDS, Edmundo Martinho (ligado ao PS e ex-presidente do Instituto da Segurança Social com Vieira da Silva) foi nomeado em 2016 pelo então ministro da Solidariedade Social. Ana Jorge, ex-ministra socialista da Saúde, foi agora escolhida por Ana Mendes Godinho depois de o histórico dirigente socialista João Soares ter sido hipótese.

Como a ameaça do jogo online levou ao ‘buraco’ da Santa Casa Global

Segundo dados divulgados pelo ex-provedor Edmundo Martinho, entre 2019 e 2022, a instituição perdeu 1.500 milhões de euros de receitas de jogo. Em sentido contrário, os custos subiram (internamente), mas também por causa da prestação de serviços sociais cuja procura cresceu durante a pandemia. Numa audição no Parlamento em julho de 2022, o então provedor admitia que só este ano seria possível regressar ao patamar de proveitos de 2019. Com a pandemia, não foram só as receitas a sair afetadas. Os custos subiram com um “aumento das solicitações” de ajuda e dos apoios, intensificados mais tarde com os pedidos de auxílio a requerentes de asilo e refugiados.

Já antes da Covid-19 era “previsível” que as receitas dos jogos pudessem vir a sofrer “alguma erosão progressiva” por força da entrada em cena das plataformas de jogos online. Uma tendência, não exclusiva de Portugal, mas particularmente preocupante tendo em conta a elevada dependência das receitas do jogo pela Santa Casa, reconheceu Edmundo Martinho, no Parlamento. Por exemplo, o Placard, que era um jogo central nas receitas até à pandemia, viu uma transferência massiva de apostadores para plataformas digitais que, perante ofertas mais dinâmicas, não estão a regressar.

Desde a pré-pandemia que a Santa Casa equacionava “a possibilidade de potenciar o know-how” no domínio do jogo e a hipótese escolhida foi o alargamento da operação do jogo para o estrangeiro, em particular países de língua portuguesa. Mas o percurso tem sido atribulado.

Segundo o Público, em Angola, inconformidades no concurso fizeram cair por terra a candidatura para a concessão dos Jogos Sociais do Estado (JSE) com um parceiro local, a Topjogos. No Brasil, a Santa Casa Global adquiriu uma participação financeira numa empresa que opera a lotaria no Estado do Rio de Janeiro, e que teria sido escolhida para, em exclusividade e em consórcio com a entidade pública do banco de Brasília, explorar e operar os jogos naquela região. Este contrato foi suspenso pelo Tribunal de Contas do Estado de Brasília que pediu informação fundamentada sobre o plano de negócios. O retrocesso pode ser temporário, mas ainda não foi ultrapassado. Já em Moçambique, a Santa Casa Global passou a gerir a Sojogo, a entidade que gere os jogos sociais no país; no Peru, investiu numa empresa que desenvolve a plataforma do operador de lotarias.

A estratégia de internacionalização "é um processo que não produz efeitos imediatos".

Na tal audição de julho de 2022, no Parlamento, Edmundo Martinho avisou que a estratégia de internacionalização demoraria tempo a mostrar retorno. “É um processo que não produz efeitos imediatos”, afirmou. A convicção de Edmundo Martinho era que poderia tornar-se numa fonte de estabilidade financeira, que as geografias para onde a Santa Casa se expandia tinham “enorme potencial” e que um retorno “muito significativo” chegaria no prazo de até três anos.

Os perigos da Raspadinha, imóveis dispersos e a herança “incómoda” dos 1.400 jazigos

Ainda que a Santa Casa consiga recuperar o nível de receitas que tinha em 2019, as ameaças à solidez financeira futura da instituição não desaparecem. No parecer às contas de 2020, o conselho da auditoria sinalizava que a lotaria instantânea (Raspadinha) representava quase metade das receitas e aconselhava à redução do seu peso e à promoção das restantes fontes de receita, “atentos os aspetos sociais que essa lotaria suscita, designadamente a propensão para este tipo de jogos por parte das classes sociais mais desfavorecidas”.

Outra das áreas que merece atenção é o vasto património imobiliário, cuja parte mais valiosa está afeta à operação, não sendo por isso explorável. A carteira de imóveis é composta de muitas propriedades urbanas dispersas e de dimensão pouco comercial que resultam das heranças recebidas e que são difíceis de rentabilizar e que representam encargos de manutenção. Isto para além dos famosos jazigos — são 1.400 — que não podem ser vendidos e que custam 600 a 700 mil euros por ano a manter.

Alguns destes imóveis podem ser rentabilizados com projetos de habitação, mas isso exige investimento e a Santa Casa não tem capacidade financeira neste contexto para o fazer sem recorrer à banca, o que levou a travar alguns projetos. Foi feito um levantamento da listagem de frações a vender em 2022 e foram realizadas algumas transações com autarquias tendo como destino a habitação. Mas há imóveis que não podem ser vendidos porque foram doados com um fim que tem de ser mantido.

Entre os ativos da instituição estão ainda equipamentos envelhecidos e precisam de atualizações e renovações que irão ter custos avultados, caso a opção seja mantê-los. A valorização contabilística dos imóveis e a influência que tem nos resultados e nas contas — em 2022 os lucros apurados tiveram o contributo da atualização do justo valor dos imóveis — não garante, por si só, que a exploração dos imóveis seja rentável para a Santa Casa.

Os tempos não estão fáceis para a Santa Casa e a nova direção já está a tomar medidas. Segundo a Lusa, avisou várias federações desportivas que se prepara para fazer cortes no plano de patrocínios, uma informação que chega a menos de um ano dos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Esta revisão aplica-se a outras áreas apoiadas pela Santa Casa, incluindo a cultura.

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa avisa federações para cortes no apoio ao desporto

A decisão é justificada pela “conjuntura económico-social que se vive”, que imputou à Santa Casa “novas exigências sociais e financeiras” no que toca ao “apoio das populações mais vulneráveis”, cuja necessidade tem crescido. A instituição reconhece que passa por uma situação orçamental mais delicada.

O impacto financeiro associado a esta nova realidade obrigou a SCML a reequacionar projetos e reforçar respostas face a uma procura crescente dos serviços que a Misericórdia de Lisboa presta. Acompanhada por uma significativa perda das receitas provenientes dos jogos sociais do Estado, a atual situação orçamental que a instituição atravessa não pode ser ignorada”, lê-se numa das cartas enviadas a federações olímpicas, citada pela Lusa, em que a provedora Ana Jorge não exclui uma “eventual reavaliação futura”, caso “as premissas se alterem”.

Em 2020, a Santa Casa apoiou cerca de 20 federações desportivas e seleções, com uma parte das verbas a resultar da distribuição prevista na lei de 3,5% das receitas dos jogos sociais. O futebol foi a modalidade mais financiada com mais de 15 milhões de euros. Esta distribuição de verbas prevista na lei não vai sofrer alterações. Aquilo em que a Santa Casa vai mexer é nos patrocínios e nas parcerias financeiras. Em 2020 (último ano com contas publicadas), as parcerias totalizaram 4 milhões de euros.

O Governo não está satisfeito com a decisão, que apelida como “preocupante”. Na rede social X (antigo Twitter), o secretário de Estado do Deporto, João Paulo Correia, defendeu que os cortes planeados trazem “maiores impactos ao setor”, a menos de um ano dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, e revela que já pediu uma reunião urgente à nova provedora. Em declarações à RTP3, defendeu que as justificações dadas pela Santa Casa não são “suficientes” e admite que em causa estejam centenas de milhares de euros.

Ao Observador, a Santa Casa confirma que vai rever o apoio financeiro “a diferentes instituições e entidades”, incluindo “dos Jogos Santa Casa às federações desportivas nacionais, ao Comité Olímpico de Portugal (COP) e ao Comité Paralímpico de Portugal (CPP)”, mas acrescenta que esta decisão “não coloca em causa o projeto olímpico para 2024”. A instituição diz que quer criar um “modelo de parceria mais equilibrado e criterioso” no apoio ao desporto nacional, mas também noutras áreas. A decisão é explicada com os “grandes desafios económico-sociais” e aos “constrangimentos financeiros”, fruto da diminuição da receita com os jogos sociais e o aumento dos pedidos de apoio.

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