Há exatamente 266 anos e 3 dias, a terra tremeu em Lisboa como nunca antes. Os primeiros abalos foram tão intensos que edifícios inteiros colapsaram de um sopro. Incêndios alastraram pela cidade. O povo rumou para junto do rio, procurando refúgio. Em vez disso, surgiu um tsunami devastador que submergiu não só a Baixa, como terá galgado caminho até 250 metros rumo ao centro da cidade.
A zona ribeirinha foi de longe a mais afetada. O Paço da Ribeira, também conhecido por Palácio da Ribeira, foi totalmente destruído. Era o palácio real e a residência oficial dos reis e ficava onde está hoje o Terreiro do Paço. Os membros da família real escaparam (por estarem ausentes), mas o recheio não teve a mesma sorte.
“Tudo o que pertencia à Coroa e que tinha valor estava no Palácio da Ribeira”, explica o antiquário Mário Roque. E não seria pouca coisa, já que na véspera desse fatídico 1 de novembro de 1755 Lisboa era uma das cidades mais ricas do mundo. De um dia para o outro, a capital do império, porto de entrada na Europa de especiarias provenientes do Oriente, de marfim de África e de ouro do Brasil foi destruída — e com ela um acervo incalculável de obras de arte, ouro, prata e diamantes acumulado ao longo de dois séculos e meio de exploração marítima.
“O que era prataria, desapareceu tudo. A riqueza era tal que até havia peças de mobiliário em prata. Em termos de obras de arte seríamos seguramente das coroas europeias com maior quantidade e qualidade de peças. Tudo foi destruído.”
Bom, quase tudo, ressalva o antiquário: “Há algumas exceções. Como a de uma peça mongol composta por um relicário em cruz e duas galhetas em jade, com ouro e rubis — considerada um das principais peças de arte mongol a nível mundial — que não foi destruída porque D. João V a tinha oferecido ao abade de Alcobaça. Isto é, sobreviveu porque não estava no palácio”.
Como tudo o que estava no Paço da Ribeira ficou soterrado, houve necessidade por parte da coroa de adquirir um conjunto de peças para cerimónias solenes, como os banquetes ou batizados. “A preocupação principal era reconstruir Lisboa, mas também era importante repor a prata do solene aparato da coroa portuguesa”, considera. “Nos batizados ou casamentos havia sempre um espaço, muitas vezes na própria sala de banquete, em que a riqueza do Estado era demonstrada através da exposição dos objetos da Coroa”, diz, justificando a importância destas peças.
Está à venda peça “valiosíssima” da coroa portuguesa que o Estado considerou muito cara
Foi então, para repor a prata do solene aparato da coroa portuguesa, que D. José comprou um conjunto de 23 peças em prata dourada lavrada de produção portuguesa, alemã e italiana, dos séculos séculos XVI a XVIII, segundo aponta uma investigação de Maria do Rosário Jardim e Inês Líbano Monteiro, publicada em 2010 na Revista de Artes Decorativas. O conjunto é composto por 10 bacias e salvas lava-pés e lava-mãos, 10 travessas e três taças para batizados. Algumas, por pertencerem à aristocracia, exibiam o brasão da família — que a Coroa removeu no momento em que as adquiriu.
É um conjunto de peças que por pertencerem à Casa Real Portuguesa nunca poderiam ser alienadas, explica Mário Roque. “Este conjunto acompanhou a fuga da família real para o Brasil, em 1808. D. João VI regressa em 1821, mas deixa cinco ou seis peças com D. Pedro IV, que as utiliza em cerimónias solenes como o batizado da filha D. Maria II.”
Quando D. Pedro IV regressa a Portugal, em 1831, as peças que não podiam ser alienadas seguem para Londres, onde são depositadas no Banco de Inglaterra para, explica o antiquário, “servir de garantia a um empréstimo feito à Coroa para pagar as despesas da guerra civil. Mais tarde, já com D. Maria II enquanto rainha, as peças regressam a Portugal.”
Esta coleção vai estar exposta no futuro Museu do Tesouro Real, na ala nova do Palácio Nacional da Ajuda (previsto inaugurar neste mês de novembro, mas atrasos nas obras empurraram a inauguração para data indefinida). E por “esta coleção” referimo-nos às 22 peças que pertencem ao Estado, pois há uma que está em mãos privadas pelo menos desde 1891 — “que se saiba”, aponta o colecionador. “Esta peça, uma bacia de prata dourada que serviria para lavar as mãos, é mostrada numa exposição ornamental portuguesa e espanhola que houve em Lisboa em 1882. E aparece em várias exposições anteriores, ou seja, conhece-se o trajeto e sabe-se que o último registo desta bacia na Coroa data de 1892.”
Sabe-se que em 1891 a peça — manuelina, criada em por volta de 1500 — já pertence a particulares porque nesse ano é fotografada na sala de jantar do Marquês da Foz. “Há um hiato de nove anos. A foto consta do álbum de fotografias do Palácio Foz [Restauradores, Lisboa]. Pensa-se que terá sido nessa altura que se fez a transação, embora não se saiba se foi no tempo do D. Carlos ou do D. Luís.”
“Os objetos da Coroa não podiam ser alienados a não ser que estivessem deteriorados. E esta tem uma pequena fissura”
Não é por acaso que Mário Roque conhece a história da salva de prata ao detalhe — é porque a peça mora atualmente na São Roque Antiguidades e Galeria de Arte, da qual é o dono. O colecionador levou a salva à 25.ª edição da feira de antiguidades LAAF (Lisbon Art and Antiques Fair), em setembro deste ano, onde foi premiada como a melhor peça em exibição.
Médico de vocação e antiquário por paixão, Mário despertou para as antiguidades por causa da mãe, também colecionadora. Desde miúdo que ia com ela aos antiquários e foi assim, a ver milhares de peças ao longo dos anos, a ganhar experiência, que aprendeu a topar o valor de uma peça.
De gosto eclético, tanto coleciona arte contemporânea quanto lhe interessam peças com foco na arte colonial portuguesa e de fusão. Alguém que entre na loja situada na Rua de São Bento, em Lisboa, pode ser recebido por urinóis de cerâmica com croché de Joana Vasconcelos ao lado de um quadro de José Malhoa (1855-1933) ou encontrar peças da ceramista portuguesa Bela Silva (n.1966) em “pas de deux” com faiança portuguesa do século XVII.
O atual dono desconhece, porém, o que levou a bacia a sair do domínio da Coroa. “Há teorias. Uma das mais fortes tem como premissa uma lei que diz que os objetos da Coroa não podiam ser alienados a não ser que estivessem deteriorados. E esta tem uma pequena fissura”.
A fissura em questão mede à volta de 7 cm e é visível numa foto tirada em 1866 por Charles Thurston Thompson e que pertence ao espólio do Victoria and Albert Museum, em Londres (que lhe atribuiu o século XV como data de origem). Ou seja, a teoria não está desprovida de fundamento.
E ganha mais força com a história dos castiçais da Baixela Germain, um serviço de mesa com mais de mil peças em prata fundida, repuxada, gravada e cinzelada encomendado por D. José I à oficina de François-Thomas Germain, nas Galerias do Louvre, em Paris. “Os castiçais estavam estragados, por isso, no tempo de D. Carlos, foram levados à casa Leitão & Irmão Joalheiros para serem derretidos. O que é facto é que em vez de serem derretidos acabaram por serem comprados pelo Marquês da Foz, que soube do seu paradeiro e se antecipou.”
Outra opção é ter sido uma venda direta. Embora estas peças não pudessem ser alienadas, há registo de vendas envolvidas em situações de pouca clareza quanto à natureza da peça, se se tratava de um objeto da coroa ou não. “O que é estranho aqui”, diz, “é que se num jantar desaparecesse uma colher, isso ficaria registado. Mas aqui não há registo de nada. Terá sido por acordo entre o Rei e o Marquês da Foz.”
Sabe-se que logo a seguir o Marquês da Foz declara falência e a peça vai parar a um leilão da Christie’s, no Reino Unido. Mário Roque contactou a leiloeira para descobrir quem foi o comprador, de modo a conhecer melhor o trajeto da salva até chegar às suas mãos, mas a única informação que recolheu foi um nome: Mister Cooper.
Nos anos 1970 ou 1980, a peça reaparece num antiquário em França e é vendida a um colecionador português — Roque diz não estar autorizado a revelar a identidade — com quem permanece até há cerca de ano e meio, quando é vendida a um colecionador espanhol. Mas nunca chega a sair de Portugal.
“Foram meses de negociação, o espanhol queria muito tê-la na sua coleção, mas consegui sensibilizá-lo a vender-ma”, recorda. “Disse-lhe que sendo uma peça da coroa, o Estado nunca permitiria que ela saísse. Alertei-o logo para esse problema, pelo que o espanhol não chegou sequer a requerer o pedido de exportação”.
O que é que Mário Roque viu na peça? “Reconheci a importância patrimonial de um objeto que pertenceu à Coroa e por isso faz parte da nossa história. Não faria sentido nenhum esta peça sair para o estrangeiro. Acho que nós, antiquários, também temos de salvaguardar o nosso património — não estamos aqui só para comprar e vender. Na altura ainda nem pensava na questão do Museu do Tesouro Real.”
Enquanto as negociações continuarem, a peça não será colocada à venda
O primeiro museu nacional a ser criado de raiz desde os anos 80 vai ter lugar na nova ala poente do Palácio Nacional da Ajuda. Quando inaugurar — neste momento ainda em data incerta — vai acolher na sua caixa forte quase 1.000 peças, entre joias, ouro, diamantes e outros tesouros nacionais. Como escrevemos alguns parágrafos acima, 22 das 23 peças do conjunto em prata dourada lavrada de produção portuguesa, alemã e italiana, dos séculos séculos XVI a XVIII, com que a Coroa substituiu as pratas do solene aparato destruídas no terremoto vão integrar este espólio e vão assim, pela primeira vez em muito tempo, voltar a estar reunidas (neste momento estão distribuídas entre o Palácio da Pena e o da Ajuda).
Mário Roque gostava que a salva voltasse a estar na companhia das outras pratas do aparato. No início da pandemia fez uma proposta ao Ministério da Cultura para a aquisição da peça. “Fui contactado pelo gabinete da senhora ministra que me disse que queria agendar uma reunião comigo e com o diretor do Palácio Nacional da Ajuda. Estou a aguardar.”
Enquanto as negociações estiverem a decorrer, não pondera colocar a peça à venda. E por o negócio estar em aberto, também não revela quanto pediu pela bacia de prata, nem por quanto a comprou ao colecionador espanhol. Diz contudo que a sua importância será “seguramente maior” do que a da tiara de diamantes e safiras de D. Maria II, que apareceu à venda num leilão da Christie’s em maio de 2021, onde foi rematada por um comprador estrangeiro por mais de 1,3 milhões de euros. “Era uma peça privada de D. Maria II, que ela usava, e por isso pôde ser vendida. Enquanto a salva não, era um objeto da coroa, inalienável e o único que falta na coleção. São coisas muito diferentes que não podem ser comparadas”, afiança.
Se a importância da salva é superior à da tiara, pode-se deduzir que o valor em cima da mesa de negociações seja superior a 1,3 milhões de euros? Mário Roque não confirma nem desmente, mas em setembro, a Direção-Geral do Património Cultural — o organismo tutelado pelo Ministério da Cultura e responsável pela gestão do património português e de museus, palácios e monumentos públicos — confirmou ao Observador ter recebido uma proposta da São Roque Antiguidades e Galeria de Arte, que considerou excessiva, por ascender, alegadamente, a 1,5 milhões de euros. “Como estamos em negociações não comento o valor, até porque não fui quem fez as declarações”, comenta o antiquário.
Venha ou não a contar com a sua bacia de prata com 500 anos, a importância de um Museu do Tesouro Real é inegável para Mário Roque. “Em primeiro lugar, vai reagrupar tudo o que pertenceu à Coroa e que tem estado espalhado por diferentes museus. O que é importante não só para nós, portugueses, mas também para os estrangeiros terem noção da importância que teve a nossa Coroa. Ainda que isto seja só uma parte ínfima do que tínhamos antes do terramoto, continua a ser muito mais do que a maioria das coroas estrangeiras tem.”