Está à venda desde há uma semana em Lisboa uma peça considerada “valiosíssima” que terá pertencido à família real portuguesa a seguir ao Terramoto de 1755 e que o antiquário que agora a comercializa garante ter sido utilizada no batismo da futura rainha D. Maria II (1819-1853).

Esta bacia de águas-às-mãos consiste numa salva de prata dourada utilizada em cerimónias reais e mandada fazer por volta de 1500 por uma família nobre portuguesa que se desconhece, de acordo com o antiquário. Faz parte do Tesouro Real do Estado português, mas está desirmanada e para regressar ao acervo original terá de ser comprada através do Ministério da Cultura, que considera o preço excessivo.

A salva tem sido um dos objetos mais cobiçados de quantos aparecem na 25.ª edição da conhecida feira de antiguidades LAAF (Lisbon Art and Antiques Fair), que abriu do dia 10 na Cordoaria Nacional e que termina na segunda-feira, 19. É comercializada pelo antiquário lisboeta Galeria de São Roque.

O preço não foi divulgado ao Observador pelo responsável, Mário Roque, mas este explicou que “uma salva desta qualidade e importância é valiosíssima”. “Seguramente tem um preço inferior ao da tiara de D. Maria II”, acrescentou, referindo-se à peça arrematada há quatro meses num leilão em Genebra por 1,3 milhões de euros e que o Estado português tentou então disputar, sem êxito.

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Tiara de D. Maria II é arrematada por 1,3 milhões num leilão em Genebra, mas não vem para Portugal

“Fazia todo o sentido que a peça viesse a pertencer ao Estado, até porque faz parte de um conjunto de 23 peças, das quais 22 vão figurar no Museu do Tesouro Real”, disse Mário Roque. “No início do ano passado, enviei uma carta à senhora ministra da Cultura, mas até agora não houve manifestação de interesse. Não sei qual é a intenção do Estado”, garantiu.

Ao Observador, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) confirmou ter recebido uma proposta da Galeria de São Roque em 2020. Porém, contou outra versão acerca do preço e da reação expressa. “Houve unanimidade em considerar excessivo o valor de aquisição proposto”, o qual ascendia a 1,5 milhões de euros, alegou a DGPC, organismo tutelado pelo Ministério da Cultura e responsável pela gestão do património português e de museus, palácios e monumentos públicos.

“A referida proposta de aquisição foi objeto de uma cuidada avaliação, levada a cabo pela conservadora especializada em ourivesaria do Palácio Nacional da Ajuda e complementada por dois pareceres externos solicitados pela DGPC a consultores independentes. Todos os especialistas sublinharam a singularidade e a raridade da peça em questão, reconhecendo o seu elevado valor patrimonial e histórico”, explicou a DGPC ao Observador. “Tendo por base os pareceres obtidos, que apontavam para um valor bastante inferior ao pedido pela galeria, em maio de 2020 a DGPC, através do diretor do Palácio Nacional da Ajuda, informou a Galeria de Arte São Roque sobre a decisão de não aquisição.”

Aquele organismo não rejeita nova ponderação de uma eventual nova proposta de preço, desde que este se “aproxime dos valores considerados adequados pelos avaliadores”.

De Lisboa para o Rio de Janeiro, de Inglaterra para França

A bacia de águas-às-mãos é descrita pelo vendedor como uma “peça de aparato de três círculos concêntricos, com medalhão central ricamente lavrado e aba ornamentada”. Na faixa exterior surgem figuras humanas, criaturas fantásticas e animais, além de motivos vegetalistas. Junto ao anel central veem-se representações de soldados e cavaleiros. Era utilizada em banquetes, casamentos ou batizados e servia para os convidados lavarem as mãos antes das refeições.

O histórico de uma peça e neste caso a proveniência real determinam em muito o valor de mercado e o simbolismo da antiguidade. Daí que Mário Roque tenha feito um levantamento detalhado do percurso da salva de prata que agora está a vender. “Esta salva esteve sempre com a coroa a seguir a 1755”, começou por dizer a o Observador.

“Vai para o Brasil com D. João VI, regressa a Portugal e fica ao uso de D. Pedro I. Chegou a ser utilizada no batismo da futura rainha D. Maria II. Depois é dada como garantia de um empréstimo junto do Banco de Inglaterra. Quando D. Maria II já é rainha, acaba por licitar e comprar a salva, que assim regressa a Portugal”, contou Mário Roque, segundo o qual todo este percurso está documentado.

“Os bens da coroa são inalienáveis, mas este, por algum motivo, acabou por aparecer na casa do Marquês da Foz. Quando ele abre falência, os bens são leiloados em 1892 na Christie’s, em Inglaterra, e a salva vai ser comprada por um Mr. Cooper. Não se sabe quem era o Mr. Cooper. Finalmente, nos anos 1960, a peça vai aparecer na Kugel, o mais importante antiquário francês. Um colecionador português compra-a nos anos 80 e vai mantê-la em casa até eu a ter adquirido há dois anos”, relatou o antiquário.

Segundo Delacroix de Philippe Mendes

A bacia integra um conjunto de 23 peças chamadas Prata do Lava-Pés ou dos Batizados, que a coroa portuguesa comprou a famílias nobres portuguesas a seguir a 1755, na sequência da destruição, pelo terramoto, do Palácio da Ribeira (no Terreiro do Paço), segundo o antiquário Mário Roque. “Toda a prataria foi também destruída e como a coroa deixou de ter peças de aparato para as grandes cerimónias e festas, que eram momentos em que se mostrava o fausto, a família real decidiu adquirir peças à nobreza”, explicou. “Algumas foram feitas em Portugal, outras são estrangeiras. Esta de que estamos a falar data de cerca de 1500 e é portuguesa.”

A Galeria de São Roque, fundada em Lisboa há 30 anos pela mãe do atual proprietário, é um dos 24 expositores da LAAF, cuja organização pertence à Associação Portuguesa dos Antiquários (APA). Além da salva manuelina, tem sido muito notada no certame uma pintura atribuída a Delacroix, do antiquário luso-francês Phillippe Mendes. Trata-se de um “Cristo no Horto”, óleo de pequena dimensão que terá sido criado em 1827 pelo mestre do romantismo francês Eugène Delacroix (1798-1863).

O quadro serviu de estudo para uma outra pintura, de grandes dimensões, que Delacroix assinou mais tarde e que hoje está na igreja de Saint-Paul-Saint-Louis em Paris, disse Phillippe Mendes ao Observador. É a segunda vez que o galerista comercializa um Delacroix, depois de  “Femmes d’Alger”, em 2019. Segundo ele, a obra deverá ser adquirida por um colecionador particular norte-americano, mas ainda irá estar presente na feira Fine Arts Paris, que começa a 6 de novembro.