O arquivo do fotógrafo Duarte Belo tem quase dois milhões de imagens. Ainda assim, para o livro Paisagem Portuguesa (Fundação Francisco Manuel dos Santos), assinado a meias com o geógrafo Álvaro Domingues, voltou algumas vezes para o campo em busca do disparo que melhor cristalizasse cada um dos 141 retângulos em que dividiu o território nacional. Escolhas, quem sabe, polémicas, mas conhecedoras. O objetivo, explica, sentado de frente para o Tejo, junto ao Pavilhão de Portugal, em Lisboa, foi mostrar a diversidade do país e sublinhar a relação entre o espaço que nos acolhe e o prolongamento humano. “Cada vez mais acho que somos natureza. E somos uma espécie biológica que está a alterar profundamente o mundo em que vive”, diz.
Ao fim de 40 anos a fotografar, o homem que só no final de 2022 lançou três livros – além de Paisagem Portuguesa, Das Pedras, Pão, com Henrique Pereira dos Santos, e Portugal Possível, com Álvaro Domingues e Rui Lage, ambos pelo Museu da Paisagem – e que ao todo conta com participações em “praí 100” publicações, continua a deslumbrar-se com o país. E se a fotografia lhe serve para dar um sentido à vida, é na palavra que encontra a linguagem mais poderosa, um legado em grande parte inspirado pelo pai, o poeta Ruy Belo.
Olhando para este livro, Paisagem Portuguesa, surpreendeu-o de alguma maneira o conjunto final?
Não me surpreendeu nada. Conheço o país como a palma da minha mão. Às vezes, à noite, já depois de apagar a luz, viajo por sítios onde tenho estado. Depois a reação das pessoas é que…
Reações negativas?
Para meu espanto, as reações têm sido bastante positivas. Há ali uma série de posições que eu e o Álvaro Domingues tomámos que podem ser polémicas. Por exemplo, na área que apanha Lisboa, o Estuário do Tejo e uma parte da Margem Sul, o facto de eu ter escolhido uma fotografia da Amadora. É uma imagem em que se vê um mar de urbanização e que, quanto a mim, é das situações que melhor caracteriza aquele pedaço de território onde está Lisboa.
Porquê?
[Nesta zona do país] é muito maior a densidade de espaço pouco qualificado em termos urbanísticos do que aquele que é qualificado. Era mais fácil ir ao Terreiro do Paço ou vir aqui [ao Pavilhão de Portugal] e fazer uma fotografia. Eu acho que a Amadora é muito mais parecida com Almada, com Vila Franca, com a Linha de Sintra. Nesse sentido, parece-me que é mais fiel essa imagem para caracterizar esse rectângulo.
Vem daí a tal surpresa das pessoas ao verem o livro?
As pessoas ficam surpreendidas com a diversidade. É uma diversidade espantosa. Aqui há uns anos, em conversa com a [geógrafa] Suzanne Daveau, a mulher do [geógrafo] Orlando Ribeiro, ela que correu quase o planeta inteiro dizia-me que não conhecia mais nenhum lugar no planeta que numa área tão reduzida tivesse uma diversidade tão grande de paisagens.
Isso vem logo na contracapa do livro, quando se diz que o Gerês é uma das áreas de maior pluviosidade da Europa e a margem esquerda do Guadiana uma das mais áridas.
Ali a zona da Amareleja é uma das zonas com maior incidência solar da Europa, sim.
Como é que começou esta sua relação com a paisagem?
Isso é difícil. Eu em 1986 saí da Linha de Sintra, onde era a casa dos meus pais, e fui estudar arquitetura para o Porto. Na altura, a primeira coisa que fiz foi comprar um mapa de estradas Michelin. Já na altura tinha um grande fascínio por conhecer o espaço português.
Já fotografava?
Comecei em 1982, tinha eu 14 anos, em Vila do Conde, de onde era a minha mãe. Depois tive um professor de História de Arte e Geometria Descritiva no 12º ano, que organizava umas campanhas arqueológicas e umas caminhadas por esse país fora. Limpámos umas antas perto de Mora, em Cabeção. Descemos o Guadiana entre Serpa e Mértola durante 15 dias. Depois mantivemos o contacto e fomos para o Gerês, para a Serra da Estrela, etc. Fazíamos uns registos. A maior obra que lancei com ele foi o Portugal Património, pelo Círculo de Leitores. Chamava-se Álvaro Duarte de Almeida, era pintor de formação e um humanista que ainda admiro imenso embora já não esteja entre nós. Muito do que sou também o devo a ele.
Foi aí que começou a fotografar de forma sistemática?
A registar o espaço português, com essa ambição de ir a todo o lado.
Tinha isso bem claro: “quero ir a todo o lado”?
Queria conhecer tudo.
E neste momento conhece tudo?
Não [ri-se]. Há aquela máxima: quanto mais se conhece, mais há para conhecer. Tenho uma lista de sítios onde quero ir e onde conto ir em breve.
E como é que se faz essa escolha de sítios: é sistemático, intuitivo?
Eu comecei pelas serras. Quando estudava no Porto fotografei as serras quase todas a norte do Douro e algumas a sul. Gostava de paisagens pouco povoadas. Agora essas serras estão quase todas cheias de eólicas. Quando fiz o Portugal Património deixei a arquitetura e fiquei só com a fotografia. Ando sempre a engendrar novos projectos.
Sempre em Portugal.
Sempre em Portugal.
Porquê?
Isto é suficientemente grande para nos ocupar a vida toda. E há um factor que para mim conta muito, que é a língua. Porque o que eu faço é uma coisa um bocado estranha: imagine uma pessoa que ninguém conhece que chega a uma aldeia e faz ali muitas fotografias. É preciso explicar o que se está a fazer. Às vezes estabelece-se ali uma relação com piada. Além disso – e embora eu seja cada vez mais uma criatura planetária – esta é a minha terra. Por fim, também facilita aquela informalidade das deslocações: apetece-me sair uns dias, pego no carro e vou.
E o que é passível de ser objeto do seu olhar?
Gosto particularmente do que está agarrado ao chão. Sinto-me mais livre. No caso das pessoas, aquilo de alguma forma é uma devassa. A fotografia representa uma certa intromissão. Não quer dizer que fotografar uma aldeia não o seja.
São 40 anos a fotografar a paisagem. O que o atrai?
Por um lado, o sentir-me vivo. Entendo a fotografia como uma espécie de conversão de uma linguagem noutra. Isto é, descodifico a natureza, a arquitetura, o espaço urbano e transformo isso em algo mais depurado em termos de comunicação. Eu gosto muito da segunda lei da termodinâmica…
Que é…?
Gosto muito de ciência em geral. Tenho um fascínio enorme pela forma como tudo isto foi evoluindo. A segunda lei da termodinâmica é a lei do caos, que diz que os sistemas tendem para aumentar em complexidade ao longo do tempo. No fundo, o que nós humanos fazemos é isso. Quando trabalhei com o arquiteto José Manuel Nuñez de la Fuente, ele dizia-me muito: “Duarte, a vida não faz sentido”. Na altura, com 20 e poucos anos, nunca tinha pensado naquilo, mas hoje estou um bocado nessa. A vida resulta de seis elementos químicos da tabela periódica que se constituem em moléculas orgânicas e isto vai evoluindo até chegar a este produto acabado que somos nós – e há-de continuar por aí fora. Então eu fotografo para tentar compreender o mundo em que vivo e construir o sentido da minha vida. E gosto de pensar que a fotografia é também arquitetura, que a uso para construir uma casa, que é a minha casa, onde trago os amigos de vez em quando.
Uma casa feita das suas escolhas, do que sente fazer sentido registar e partilhar.
É isso.
Quase dois milhões de escolhas?
Quase dois milhões de fotografias, sim. Às vezes gostava de fotografar mais do que fotografo. Cobrir mais lugares e ter mais tempo para andar no campo.
Quanto tempo passa em campo?
Agora, pouco. Se calhar um ou dois meses durante o ano. Quando andei a fotografar para o Portugal Património era quase metade do ano. As pessoas têm aquela ideia de fazer as coisas mais lentamente. A mim, a voragem do tempo seduz-me imenso. Esta vertigem.
Como assim?
Hoje em dia, particularmente na cidade, há aqueles conceitos de viver a vida mais devagar. O lifestyle. Eu gosto da aceleração do tempo. Trabalhar intensamente em determinados projetos dá-me um significado à vida.
E de que forma é que a fotografia o faz sentir-se vivo?
É muito curioso porque sinto-me completamente integrado. Perco a noção de mim. Sinto-me quase como se fosse uma raposa ou um lobo a fazer o que tem de fazer para continuar a viver. Sem qualquer espécie de tédio ou angústia existencial. Aquelas coisas que às vezes afetam os humanos.
Então e o que é uma “boa foto”?
É aquela que chama a atenção por alguma coisa. A minha fotografia acho que nunca ganharia um concurso. Às vezes há fotografias que faço que já têm aqueles artifícios instagramáveis e eu ponho de parte porque não quero que essa fotografia ganhe ascendência sobre outras que estão ao lado.
O que é um “artifício instagramável”?
São aquelas fotografias que resultam muito bem e têm muitos likes no instagram.
É um cliché?
Um cliché, exato. Fotografias que muitas vezes não dizem nada a ninguém. As minhas também acho que muitas vezes não dizem – têm poucos likes. Eu tenho uma ideia perversa e arriscada que é começar a pôr fotos que vão ter o mínimo número de likes possível.
Mas das quais gosta.
Gosto delas e fazem sentido no meu trabalho.
No fundo, tentar uma subversão do Instagram.
Alargar o âmbito da ferramenta.
Numa referência incontornável, há um poema muito bonito do Ruy Belo, “Elogio de Maria Teresa”, em que ele fala de uma fotografia [“um retrato de passe anos atrás tirado/no sítio suburbano onde primeiro vivemos”] e depois diz: “Conheço outros retratos teus onde também estás viva”. É isto uma boa fotografia, uma imagem que captura a vida?
A fotografia tem essa particularidade de prolongar a vida, particularmente a de quem nos é querido. Uma coisa de que eu gosto na fotografia é que ela é extremamente difícil de definir enquanto objeto da semiologia. Por exemplo: ninguém sabe o que é uma fotografia ao certo. E acho que pode ter muito essa função de preservação da memória, quase de petrificação.
Cinco pessoas podem tirar uma fotografia ao mesmo sujeito e uma pode ter uma força que as outras não têm.
É uma grande verdade, mas não sei por que é que acontece. Tudo isto não passa de algum modo de um jogo da respiração.
Como assim, “um jogo da respiração”?
A vida tem muito de jogo. Arriscamos e às vezes ganhamos, outras perdemos. Tudo é abstrato e de alguma maneira sem sentido. Vamos construindo o sentido que as coisas possam ter. Aquela caminhada de 500 km que eu fiz. Aquilo é uma espécie de absurdo. Não faz sentido uma pessoa sujeitar-se a uma dureza tão grande para ter uma experiência de comunicação.
Essa caminhada está fixada num livro, Caminha Oblíquo, editado pelo Museu da Paisagem. Foi muito dura?
Caminhei do Penedo Durão, perto de Freixo de Espada à Cinta, até ao Cabo da Roca. É o eixo que divide, segundo Orlando Ribeiro, o Portugal Atlântico a norte, do Portugal Mediterrânico, a sul. De uma forma mais simples: a salsa a Norte e os coentros a Sul. Foram 15 dias sozinho, de mochila às costas, a dormir no campo, sem apoio de ninguém. O primeiro reabastecimento alimentar foi ao nono dia. Andava sempre em pontos altos, sem apoio de ninguém. Daria para outra conversa. Tal como a questão do meu pai, que também é muito importante na minha vida.
Ia perguntar isso: importante de que forma?
O meu pai morreu tinha eu 10 anos; só comecei a fotografar quatro anos depois. E este meu interesse pela terra não tem antecedentes na família. Mas há um legado relacionado com a palavra que tem nele uma grande inspiração.
A fotografia é uma arte visual.
Acho que o meu pai nunca pegou numa câmera fotográfica. Eu comecei com a câmera da minha mãe que também gostava muito de fotografia. Uma Voigtländer. Quase todas as fotografias do meu pai foram tiradas pela minha mãe.
Voltando ao seu pai.
Eu vivi sempre com a obra dele. Sinto-me muito privilegiado porque nasci numa casa forrada a livros e em que os meus pais valorizavam muito a cultura, a palavra, a expressão visual. A minha mãe particularmente. Quando se segue uma vida relacionada com a criatividade, os rendimentos são muitas vezes precários e difíceis. E ter uns pais que nos incentivam a seguir aquilo de que gostamos é um grande privilégio.
De que forma está a palavra presente no seu trabalho?
Acontece muitas vezes estar a fotografar e haver coisas que não consigo dizer com imagens. Aí recorro à palavra, que eu acho que é a linguagem mais poderosa que temos. Vou muito da terra para a fotografia e da fotografia para a palavra. Mas gosto muito de pensar que no meu trabalho tudo nasce da terra, desta tentativa de tentarmos compreender o espaço em que nos movemos.
Sente mesmo essa ligação à terra?
Muito. De fazer parte disto tudo. Quando vou sozinho, raramente fico em hotéis ou pensões. Gosto de dormir onde o sol se põe. Chego ao final do dia derreado. Depois levanto-me muito cedo – gosto imenso de ouvir o chilrear das aves mesmo antes de o sol nascer – e começo logo a trabalhar.
Nunca tem medo?
Só tenho medo dos humanos e em sítios pouco povoados não há que ter esse medo. Agora há os ursos, mas os ursos em princípio têm mais medo de nós do que nós deles. Acho que o maior susto que apanhei foi um enxame de abelhas que me passou por cima uma vez no Douro internacional. Tinha ido desde Barca D’Alva a Miranda do Douro e estava a arrefecer os pés. Comecei a ouvir um ruído estranhíssimo e passa por mim uma nuvem preta. Cinco, seis metros, Parecia um ovni.
E coisas maravilhosas que retenha.
Tenho sempre dificuldade em responder a uma pergunta dessas. Às vezes há uns encontros muito curiosos com gente do povo. Há tempos tive um encontro com javalis à noite. E durante a pandemia ia com o meu filho mais novo na Serra do Caramulo, ele vê uma cobra e diz: “Pai, está aqui uma cobra, posso pegar?”. Disse: “Nem penses nisso”. Tivemos sorte. Podia ter corrido mal. Era uma víbora cornuda. Agora, cenas de ficar absolutamente deslumbrado, isso é praticamente todos os dias. Em Serras, no Douro… é aí que eu carrego as baterias.
Mesmo ao fim destes anos todos?
Mesmo sítios que já conheço e onde vou de novo.
Tem uma zona preferida do país?
Tenho. Esta zona do Douro Internacional, o Planalto Mirandês, as Terras do Riba-Côa… Depois o Parque da Peneda Gerês, que acho lindíssimo. A Serra da Estrela. A Costa Vicentina. As ilhas… Mesmo nos sítios mais densamente povoados como Lisboa há situações que vale a pena conhecer. Por exemplo, a Praia da Ursa, que é para mim um dos sítios mais bonitos do litoral português. O Cabo Espichel, o Santuário de Nossa Senhora do Carmo, o Pavilhão de Portugal, que é uma peça sublime da arquitetura portuguesa de todos os tempos.
E, tentando reduzir o leque, sítios que normalmente passem despercebidos?
Há tantos, tantos. Por exemplo, as construções em falsa cúpula na Serra Amarela. Mesmo a Cova do Vapor, que passou a ser famosa, com soluções de arquitetura notáveis.
Então e paisagem natural? Por exemplo, este livro Das Pedras, Pão é sobre a paisagem abandonada.
São sobretudo terras do xisto. Gosto muito dessa zona. A Serra de Alvoaça, por exemplo, que liga a Serra da Estrela à Serra do Açor. Quando fiz a tal caminhada dos 500 quilómetros, foram poucos os sítios em que não havia estradões ou estradas ou caminhos. Na Serra da Alvoaça não havia trilhos nem marcas fortes de povoamento. E depois quem se põe por aí a andar encontra sempre recantos incríveis. Por exemplo no litoral, de Setúbal ao Cabo Espichel, há praias absolutamente notáveis.
Isto é uma conversa interminável.
Interminável. Tenho o país todo na cabeça.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Observador Lifestyle n.º19, lançada em março de 2023.