Passa pouco das 11h e na Via Sacra dos Valinhos são centenas os peregrinos de todo o mundo que, em grupos de várias dimensões, percorrem esta sexta-feira o caminho que Lúcia, Jacinta e Francisco fizeram inúmeras vezes, antes e depois das visões que colocaram Fátima no mapa da fé católica.
Uns caminham em silêncio, outros rezam coletivamente, e depois há os latinos, com os mexicanos à cabeça, que fazem uma festa da peregrinação ao longo das 14 estações que reproduzem o caminho de Jesus em direção à cruz, oferecidas por católicos húngaros refugiados após a invasão soviética, e vão entoando cânticos, acompanhados de guitarras, bombos, pandeiretas.
Sentada num dos muros que serpenteiam ao longo de todo o percurso, com o olhar perdido na direção do lugar de Valinhos, casa dos Três Pastorinhos, Bronagh McGlinchey destoa. Está sozinha, a pele irlandesa, quase transparente, a começar a dar sinais de escaldão, apesar de à saída do hotel até ter tido o cuidado de por protetor solar. Em silêncio, vai rezando, o lenço com que ainda há pouco enxugou as lágrimas amarfanhado numa mão.
Não é a primeira vez que aqui está. Na passada segunda-feira, quando chegou a Fátima, onde vai estar instalada ao longo de nove dias, com viagens de ida e volta diárias de autocarro para Lisboa, percorreu o caminho com o grupo de que faz parte, da diocese de Raphoe, no noroeste da Irlanda. Esta sexta-feira, horas antes de embarcar para Lisboa, para participar com o Papa Francisco na celebração da Via Sacra no Parque Eduardo VII, sentiu necessidade de regressar, desta vez sozinha.
“Sempre tive uma fé forte em Deus, mas não cresci com Maria, conhecendo Maria. As pessoas diziam-me que este sítio era poderoso mas não sabia o que esperar. Assim que cheguei, foi como se os meus ombros tivessem caído e tive uma sensação de paz incrível”, começa por dizer, para logo a seguir assegurar que até há quatro dias nem sequer “acreditava em Maria” ou nas aparições de Fátima. “Fui atraída para aqui, senti que tinha de voltar e de ter este tempo para mim, para refletir e ter paz. Nunca experimentei nada disto antes e achei que não me ia acontecer, mas foi revelador”, justifica, explicando que continua “a processar” aquilo que lhe aconteceu e as histórias que ouviu, mas que à partida não lhe parece que “as crianças pudessem ter tido alguma razão para mentir sobre o que lhes aconteceu”.
Mauro e Maria Jose também não são particularmente devotos de Nossa Senhora ou dos Três Pastorinhos, mas na manhã desta sexta-feira também fizeram questão de percorrer a Via Sacra dos Valinhos — em contra-relógio, porque o grupo com que vão partir rumo a Lisboa, para participar na Via Sacra do Parque Eduardo VII, está com pressa de seguir caminho.
Venezuelanos, vivem atualmente em Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. A participar pela primeira vez numa Jornada Mundial da Juventude, trazem um “pedido especial, como casal”, que Mauro faz questão de fazer “com peso”, carregado com uma mochila às costas e outra na frente. “Queremos ter um filho ou uma filha”, revela ele e, à simples menção das palavras, ela emociona-se e debulha-se em lágrimas. Têm 28 anos, estão casados há três, desde então que estão a tentar engravidar “de forma natural”.
Ainda não procuraram ajuda médica, não porque a Igreja Católica seja avessa a tratamentos ou fertilizações in vitro, mas, confessa Maria Jose, porque não consegue sequer ter forças para dar esse passo. “Tenho vergonha de falar com os médicos, acho que existe alguma coisa errada comigo”, começa a explicar, e os olhos voltam instantaneamente a marejar.
“Quero que seja de maneira natural, mas não digo que não aos tratamentos… Talvez uma opção seja adotar”, diz, indo ao encontro do Catecismo da Igreja Católica, que não considera a “esterilidade física” um “mal absoluto” — “Os esposos que, depois de esgotados os recursos médicos legítimos, sofrem de infertilidade, associar-se-ão à cruz do Senhor, fonte de toda a fecundidade espiritual. Podem mostrar a sua generosidade adotando crianças abandonadas ou realizando serviços significativos em favor do próximo”.
“Acho que está a acontecer um ressurgimento da fé”
Se há muito quem defenda que é o facto de ela própria não se ter sabido atualizar que mantém os jovens afastados da Igreja Católica, a irlandesa Bronagh, assumidamente anti-aborto e contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, faz questão de garantir que essa assunção está errada — logo a partir da premissa desse afastamento que, considera, não é real.
“As notícias dizem que temos de desmantelar a Igreja, que é uma instituição que só quer poder e é má, mas isso não é verdade. Um milhão de pessoas não se reúne assim, com os corações cheios de paz, só porque alguém quer poder. Tem sido comovente ver a verdade e perceber que os jovens ainda estão na fé católica, não estão a fugir dela. Pelo contrário, estamos a crescer, suave e tranquilamente, mas estamos a crescer”, diz, explicando que na sua própria pequena comunidade há neste momento três jovens em vias de se tornar padres.
O feito será tanto mais assinável se recordarmos que a Irlanda, outrora considerado o país mais católico do mundo, foi fortemente abalada pelo escândalo dos abusos sexuais quando, em 2018, foi tornado público que, apenas desde 2002, tinham sido mais de 14.500 as pessoas vítimas de abuso sexual por parte de padres e outros membros do clero.
“Nas últimas décadas, muita gente perdeu a confiança na Igreja. No passado, eram os irlandeses que iam para todos os países do mundo espalhar a palavra de Deus, agora precisamos que venham missionários da América para fazer isso no nosso país“, contextualiza Bronagh, para dizer depois que, se por um lado são cada vez menos as missas celebradas e mais as fusões de paróquias, por outro são também cada vez mais os jovens irlandeses que regressam ou chegam à Igreja pela primeira vez. “Acho que está a acontecer um ressurgimento da fé.”
Em plena Via Sacra dos Valinhos, tal é o corrupio de rapazes e raparigas que se cruzam, de bandeiras ao alto ou até cruzes às costas, joelhos no chão a cada uma das 14 estações, dá para perceber que a tendência talvez não se circunscreva apenas ao país anteriormente conhecido como o mais católico do mundo.
Arturo Diaz tem 28 anos, vive na Florida, nos Estados Unidos, é catequista, licenciado em estudos religiosos, e acompanha um grupo de 7 jovens peregrinos, consideravelmente mais novos, cujas orações vai orientando ao longo da Via Sacra. Entre a quinta e a sexta estação, aquela em que Verónica limpa o rosto a Jesus, acede em conversar, mas muito brevemente, o caminho deve ser de introspeção e oração. “Hoje é a primeira sexta-feira do mês, estamos a recordar a Paixão do Senhor, queremos acompanhá-lo no seu sofrimento, queremos ser como ele.”
Parte do Youth 2000, movimento internacional para jovens católicos entre os 16 e os 35 anos criado em 1990 no Reino Unido, como resposta a um repto de João Paulo II, Bronagh McGlinchey diz que os retiros e grupos de oração em que tem participado mostram que são cada vez mais os jovens com esse objetivo — e a fazer frente aos que descreve como “ataques do Diabo”, que “quer destruir o que Deus criou”.
Aponta ao aborto — “Dizem que é liberdade e que é um direito das mulheres, que não lhes faz mal, mas faz”—, à polarização das sociedades, e ao feminismo, que “diminui a masculinidade dos homens” ao tentar fazer crer que “as mulheres são independentes, podem fazer tudo e não precisam de ninguém”. “Não é que isso não seja verdade, só acho que precisamos de um equilíbrio”, diz. “Os homens bons fazem vir ao de cima o melhor das boas mulheres, e as boas mulheres fazem vir ao de cima o melhor dos bons homens. Hoje em dia, estamos todos contra todos, géneros contra géneros, raças contra raças — isso é o mal.”
Quase a chegar à Loca do Anjo, o lugar onde em 1916, contaram Lúcia, Francisco e Jacinta, um anjo lhes tinha aparecido pela primeira vez, perto da 11.ª estação da Via Sacra, Bronagh despede-se finalmente, precisa de mais algum tempo a sós, antes de voltar a entrar no autocarro e no “buzz” que diz que é a Jornada Mundial da Juventude.
A da tarde, antecipa, será uma Via Sacra diferente. “A Jornada é como um festival ou como um jogo de futebol, mas é sobre fé. É excitante, rejuvenescedor e estimulante”, tenta descrever, garantindo que só tenciona parar na próxima terça-feira, quando for finalmente hora de regressar à Ilha Esmeralda. “Só temos esta oportunidade uma vez, quando chegar a casa logo durmo.”