Reportagem em Brooklyn, Nova Iorque
Má notícia para os fãs de Bowie: a exposição “David Bowie is” está a ser exibida pela última vez em Brooklyn, Nova Iorque. Boa notícia: Brooklyn é mais perto do que Marte. Mesmo que não seja fã de Bowie, a exposição — a que o Observador assistiu um dia antes de ser aberta ao público — é para todos os gostos: de Diogo Piçarra a Elon Musk. E ainda ensina a Janeiro que, na música, comer uma banana não deveria ser apenas comer uma banana. Mas já lá vamos. A exposição primeiro, onde há Bowie por toda a parte. Vários Bowies, aliás: o Major Tom, o Ziggy Stardust, o Aladdin Sane ou The Thin White Duke.
Para entrar no mundo de Bowie sobe-se ao quinto piso do museu de Brooklyn, passa-se por várias relíquias da história americana, até se começarem a ver as paredes cor-de-laranja. Logo à entrada é pedido aos visitantes que coloquem headphones. Tudo certo: se há Bowie, há música. A primeira sala é escura, mas nela brilham cinco letras: B-O-W-I-E. As letras são compostas por lâmpadas que vão acendendo, a espaços, contra um cenário preto. Até essas letras têm uma história. Em 2002, durante uma tour em Nova Iorque, Bowie tocou durante cinco dias em cinco teatros diferentes e as letras foram sendo transportadas de um lado para o outro. Ali estão elas, agora a iluminar a entrada da exposição (vês, Janeiro: não basta comer a banana).
É assim o início da exposição que começou há cinco anos no Victoria and Albert Museum, que entretanto passou por 10 museus nos cinco continentes e que vai acabar onde Bowie queria: Nova Iorque. Foi a cidade que o “camaleão” (parece tão redutor, chamar-lhe assim) escolheu para viver em 1992 e foi lá que morreu há dois anos, a 10 de janeiro de 2016. “David Bowie is” está em exposição no Museu de Brooklyn desde 2 de março e até 15 de julho. O Observador — tal como o New York Times, a Rolling Stone, a Time Out, a Vogue e um número de órgãos que se contam pelos dedos — viu a exposição antes de ser inaugurada.
Os bilhetes vão desde 20 a 2500 dólares (cerca de dois mil euros). Este último preço, como escreveu a edição nova-iorquina da Time Out, é “perfeito” se o fã de Bowie for um “oligarca russo”. Se não for, e viver em Portugal, este dinheiro é mais do que suficiente para ir até Nova Iorque, passar umas férias durante uns dias e dar um pulo a Brooklyn para ver a exposição de David Bowie.
Voltando às lâmpadas, as luzes são acompanhadas por um dos fatos mais icónicos de Bowie, feito de vinyl e desenhado pelo estilista japonês Kansai Yamamoto para a digressão de Aladdin Sane (1973). O fato brilha mais do que as luzes, mas menos que a música. Venha ela. Assim que se dá um passo em frente para a exposição, começam a ouvir-se os primeiros acordes de “Space Oddity”: “Ground Control to Major Tom…” Não é que a exposição seja estritamente cronológica, mas começa com a infância e juventude de Bowie, ainda como David Robert Jones, e termina com a sua morte, quase simultânea com o lançamento do álbum Black Star.
Nessa fase inicial pode assistir-se à primeira vez em que Bowie aparece na televisão, em novembro 1964, quando tinha apenas 17 anos. Ainda com o nome de Davy Jones, o jovem é entrevistado na BBC na qualidade de fundador da “The Society for the Prevention of Cruelty to Long-haired Men”. Sim, leu bem: “Sociedade para a Prevenção da Crueldade para com os Homens de Cabelo Comprido.” David queixava-se, então, dos comentários que ouvia nas ruas de Inglaterra por ter o cabelo comprido na era pós-Beatles.
A ligação a Lennon e o prémio entregue a Aretha
Nas paredes há também uma capa do primeiro disco de Bowie e logo por baixo, simetricamente enquadrado, o mítico Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Não é um acaso: os dois discos, de Bowie e dos Beatles, foram lançados ao mesmo tempo. A ligação de Bowie a John Lennon também vai aparecendo ao longo da exposição. Um dos objetos exibidos pela primeira vez é o fato que Bowie levou aos Grammy Awards de 1975, onde chegou com John Lennon e Yoko Ono — e entregou em mãos o prémio de melhor voz de R&B a Aretha Franklin. Nesse ano, Bowie e Lennon lançaram “Fame”, que chegou ao primeiro lugar dos tops nos EUA.
Enquanto grava com Lennon, Bowie escreve no diário: “‘Fame’ é uma composição maravilhosa. É o meu primeiro escrito em co-autoria com Lennon, um beatle, sobre o meu futuro”. Um pouco mais abaixo, Bowie escreve: “Estou feliz”. A Rolling Stone questiona: Porque razão faz Bowie questão de dizer que Lennon é “um beatle”? Possivelmente, porque nunca conseguiu conter o deslumbramento com os seus ídolos.
A exposição “David Bowie is” tem cerca de 500 objetos, sendo que 100 deles estão a ser exibidos pela primeira vez em Brooklyn. Além do fato que levou à edição de 1975 dos Grammys — que se realizou em Nova Iorque — há mais ligações à cidade. O pano de fundo da peça “The Elephant Man”, que Bowie interpretou na Brodway, em 1980, é outro dos objetos em destaque e nunca antes exibidos. O pano não seguiu para outros países onde esteve a exposição “David Bowie is” por estar demasiado frágil para ser transportado.
Na exposição é ainda exibido um desenho que Lennon fez para Bowie, com a dedicatória: “For Video Dave, with love.” Está igualmente exposto um telefax da Western Union que Elvis Presley enviou para Bowie em 1976: “Desejo-lhe o melhor para o seu tour. Cumprimentos, Elvis e o Coronel”.
Em Marte é que se está bem
Já no fim da exposição, na parte dedicada à morte, é possível ver os desenhos que Bowie fez para o álbum Blackstar, que lançou no dia em que completou 69 anos — precisamente dois dias antes de morrer. A venda com que aparece no videoclip de Lazarus é um dos desenhos que aparece nos esboços de David Bowie expostos pela primeira vez em Brooklyn (ver primeira imagem da galeria em baixo). Numa altura em que já sabia que morreria em breve, o primeiro verso dessa música é precisamente: “Look up here, I’m in heaven.”
Mas tal como na história da vida de Bowie, na exposição há muito para percorrer antes de chegar à morte. Há uma secção (são 26 ao todo) dedicada só para a música e ao videoclip de “Life On Mars“. Nessa sala, é exibido o vídeo desse êxito de 1973 num televisor disposto ao lado de um manequim com o fato azul turquesa que Bowie vestiu no videoclip. Na descrição da peça, é revelado que Bowie fez a “música num dia”. Começou ao piano a trocar as notas de “My Way”, de Sinatra, e foi construindo a melodia final de “Life on Mars”. Nas notas que estão junto à letra, Bowie escreve “Inspired by Frankie”.
Bowie nunca teve problemas em assumir as suas referências, as suas inspirações, nem as suas imitações. E também não hesitava em reconhecer que tinha ídolos, inspirações ou pessoas que deliberadamente imitava, como Little Richard, Lou Reed, Elvis Presley, Sonia Delaunay, Tristan Tzara ou Velvet Underground. Por falar em Velvet Underground, se Bowie comesse uma banana — como o concorrente Henrique Janeiro fez numa meia-final do Festival da Canção — teria certamente um significado. E, sim, os Velvet Underground têm uma das capas de disco mais famosas da história da música e, por arrasto, a banana mais famosa do mundo da música. Autor dessa capa? Andy Warhol, mais um pai artístico de Bowie, que a exposição de Brooklyn não esquece.
Na canção “Life On Mars”, que a BBC2 descreveu um dia como uma “mistura de uma peça da Broadway com um quadro de Dalí” há muito de Andy Warhol. Nas referências, por exemplo, ao Mickey Mouse — que Warhol tanto usou, tal como à Coca-Cola ou à sopa Campbell. Em “Life On Mars”, quando Bowie fala num Mickey Mouse que cresce e se vende, há também uma crítica velada ao capitalismo.
Bowie exalta o entusiasmo pela conquista espacial. Para essa fase há também uma secção na exposição. Recentemente, Elon Musk, no seu programa espacial, enviou um carro da Tesla para o espaço com um manequim ao volante e chamou-lhe “Starman”, canção de Ziggy. Enquanto o foguetão seguia para o espaço, tocou o “Life On Mars”. Chegou a estar previsto que, num segundo momento da subida, tocasse “Space Oditty”, o que não aconteceu. Na exposição de Brooklyn — que tem a vantagem de estar no planeta Terra — é possível ver as pautas de violino e de guitarra de “Space Oditty”, da autoria de Paul Buckmaster.
“Space Oditty” foi lançado pela primeira vez em julho de 1969, para coincidir com a aterragem na lua da Apollo 11. O produtor do disco, o incontornável Tony Visconti, recusou-se a produzir este single, pois considerou que seria um truque comercial, uma espécie de publicidade enganosa só para atrair o público. O single chegou ao 5º lugar do top de vendas no Reino Unido em 1969 e ao primeiro lugar num maxi-single de 1975.
Ainda sobre Warhol, o artista está representado noutros momentos da exposição. Em “David Bowie is” podem ver-se imagens raras da visita de Bowie à Factory de Warhol, em setembro de 1971, naquela que foi a única vez que o músico privou com “o” nome da Pop Art. Durante o encontro, Bowie tenta de uma forma exagerada agradar a Warhol — a quem já tinha dedicado uma música — que limitou-se praticamente a mastigar pastilha.
São ainda disponibilizadas algumas imagens do fotógrafo Mick Rock — que acompanhou a ascensão de Bowie nos anos 70 — e que conta com mais de cinco mil imagens no seu espólio. Rock costuma dizer: “David não tem nenhum ângulo mau (…) nasceu extremamente fotogénico”.
https://www.youtube.com/watch?v=cYMCLz5PQVw
Outra das atrações da exposição é um baú, com os livros de David Bowie, onde se destaca 1984, de George Orwell. Bowie sempre teve o desejo de colocar em música a distopia de Orwell, chegou a fazer uma tema com esse título espécie de homenagem a uma obra e a um autor que sempre o influenciaram (já ouviram Diamond Dogs, o álbum de 1974?). Pelas paredes há ainda um fato do Major Tom, uma foto de Little Richard (que Bowie levava no bolso para as gravações quase como amuleto) ou o desenho original da capa do álbum Aladdin Sane (com o mítico raio azul e vermelho).
A exposição tem também uma grande sala escura, igual há de tantos outros museus, onde passam videoclips de Bowie. Aí, pela primeira vez, os visitantes do museu podem tirar os headphones e desfrutar da música de forma mais livre. A acústica é ótima, como Bowie gostaria. As músicas, idem. “Rebel, Rebel”; “Heroes”; “Starman”; “China Girl” (e estão por ali as chaves do apartamento que partilhava com Iggy Pop em Berlim). Naquela sala, é possível ficar ali só a contemplar a arte de Bowie. A vê-lo e ouvi-lo. A ele que não é só músico, é também, como gostava de dizer: um ator. Um artista completo.
Como uma tela num museu de arte contemporânea é também exibida uma “Tabela Periódica de Bowie”, com várias das pessoas com quem se cruzou, com quem compôs ou que o influenciaram. Bob Dylan, Pablo Picasso, Luís Buñuel, Barack Obama, Marlene Dietrich, Mick Jagger, Jimmy Page, Stanley Kubrick, Freddie Mercury, Oscar Wilde, Marcel Duchamp, Fritz Lang, Iggy Pop, Andy Warhol ou William Burroughs (está na exposição a transcrição da famosa entrevista de Bowie com o escritor na Rolling Stone, em 1984).
Mesmo no fim da exposição, antes de chegar à parte da loja (onde os preços são mais para o “oligarca russo” do que para um comum visitante), há um pequeno painel luminoso que completa o nome da exposição: “David Bowie is someone else”. Tradução: David Bowie é outra pessoa. Bowie sempre disse que queria ser mais do que humano e foi várias coisas além de Bowie. Em 1973, Bowie disse numa entrevista televisiva (reproduzida no episódio sobre Bowie da série “Video Killed the Radio Star“): “Faço o que faço, porque gosto de chocar as pessoas”. O maior choque da exposição é talvez uma colher de cocaína, que é apresentada, de forma fria, como tal: “Colher de cocaína, 1976”.
https://www.youtube.com/watch?v=9G4jnaznUoQ
A exposição pode ser vista, em Brooklyn, Nova Iorque, até 15 de julho. Nas dez cidades por onde passou, “David Bowie is…” foi visto por 1,8 milhões de pessoas. Nos primeiros dias já acorreram milhares de pessoas ao Museu de Brooklyn. Na semana em que a exposição a faz a última paragem, o baterista dos Rolling Stones, Charlie Watts, disse em entrevista ao The Guardian que ficou surpreendido com a reação do mundo à morte de Bowie, já que era um “lovely guy” e escreveu “algumas boas músicas”, mas que “não era nenhum génio”. A exposição desmente Watts e, para isso, conta com o videoclip de Dacing In The Street, que Bowie gravou com Jagger.
Sobre a exposição, a Vogue escreveu: “Vá. Simplesmente, vá”. O The New York Times escolheu para título: “David Bowie como nunca o viu”. Escolha qualquer um dos temas e passe por lá, pode ser a última vez que vê David Bowie. Pelo menos assim.