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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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Eça de Queiroz chegou à Gulbenkian. E levou tudo o que tinha no saco

Há 130 anos, Eça publicou essa “vaste machine” a que chamou "Os Maias". A Gulbenkian presta-lhe agora homenagem com uma exposição onde coube tudo o que o autor trazia "no saco" — incluindo as lunetas.

Foi no verão de 1888, no mesmo ano em que nasceu o segundo filho de Eça de Queiroz e também Fernando Pessoa, que foi publicado no Porto, em dois volumes, Os Maias. O romance, obra maior do escritor português, tinha sido começado oito anos antes, após Eça abandonar uma outra obra, A Capital, que tinha sido começada depois de deixar um outro projeto, a que se chamou posteriormente A Tragédia da Rua das Flores. Em Os Maias é possível encontrar resquícios destes dois romances, que Eça deixou inacabados antes de se dedicar à sua grande obra-prima, mas nenhum deles chega aos calcanhares dessa “vaste machine com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco, toda trabalhada em tons pardos, pomposa e vã”, onde Eça colocou tudo o que tinha “no saco”.

É desse “saco” que fala a exposição que será inaugurada esta quinta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (a partir desta sexta-feira, dia 30, estará aberta ao público). Intitulada precisamente Tudo o que tenho no saco”. Eça e Os Maias, a mostra, organizada pela Gulbenkian em cooperação com a Fundação Eça de Queiroz, percorre a vida e a obra de um dos nomes grandes da literatura portuguesa, ao mesmo tempo que assinala os 130 anos da publicação da sua obra-prima. Além de fotografias, cartas e pinturas (há três quadros de Paula Rego), esta inclui vários objetos pessoais de Eça (incluindo o famoso monóculo com que o escritor surge em algumas das suas fotografias mais icónicas), que serão mostrados pela primeira vez em Lisboa. E porque há muito que Eça de Queiroz extravasou para fora do papel, a mostra será acompanhada por uma programação paralela que inclui um ciclo de cinema, um espetáculo musical e uma série de “jantares queirozianos”, com uma ementa preparada de propósito para a ocasião pelo chef Miguel Castro e Silva. Não sabemos se esta irá incluir o famoso arroz de favas de A Cidade e as Serras, mas haverá certamente bacalhau, um dos pratos favoritos do escritor.

A ideia para esta exposição nasceu de uma conversa inicial com a Fundação Eça de Queiroz — uma instituição sediada na quinta de Tormes que pertenceu à família da mulher do escritor, D. Emília de Castro Pamplona (Resende) –, criada para divulgar a obra do autor em Portugal e além fronteiras. “Nós acolhemos a ideia e convidámos uma das maiores especialistas em Eça de Queiroz, a professora Isabel Pires de Lima, para fazer a curadoria. E de repente ficou esta maravilhosa exposição que apetece ver”, referiu Maria Helena Melim Borges durante a visita que o Observador fez à mostra antes da sua abertura, quando estava ainda em fase de montagem.

Apesar de a Gulbenkian ser sobretudo associada à pintura e às artes plásticas, esta não é a primeira exposição do género na fundação, que tem vindo a fazer um esforço no sentido de apresentar “os escritores de uma forma multidisciplinar”. A primeira mostra com este formato foi organizada em 2008, e pretendia “mostrar que a literatura portuguesa era uma literatura do mundo”. Depois dessa, seguiram-se outras, como explicou ao Observador a diretora-adjunta do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas, que é também curadora executiva de “Tudo o que tenho no saco”: “Depois tivemos uma exposição sobre Fernando Pessoa, que veio do Museu da Língua [Portuguesa], do Brasil; depois tivemos uma sobre Clarice Lispector e este ano, em março, tivemos nesta mesma sala, uma exposição sobre António Tabucchi, e agora foi a vez do Eça”.

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O Eça chega por ocasião dos 130 anos da publicação de Os Maias, mas a mostra da Gulbenkian tem muito mais do que o romance de Carlos e Maria Eduarda para ver. A data redonda é apenas uma desculpa para se falar de muitas outras coisas, exploradas ao longo dos sete núcleos que compõem “Tudo o que tenho no saco” e que abordam a obra queiroziana no seu todo mas também a vida do escritor português.

Afinal, o que se passa com “o saco”?

Intitulada “Tudo o que tenho no saco”. Eça e Os Maias, a exposição da Gulbenkian não podia ter um título menos óbvio. Ao Observador, a curadora executiva explicou que o objetivo foi esse mesmo, porque se pretendia que a mostra “fosse de alguma forma misteriosa”. “Se as pessoas quiserem saber porque é que esta exposição se chama ‘Tudo o que tenho no saco’, façam o favor de vir à Fundação Calouste Gulbenkian até dia 18 de fevereiro! Está tudo explicado aqui”, desafiou Maria Helena Melim Borges, enquanto Isabel Pires de Lima ajudou a levantar um pouco do pano: o enigmático título da exposição foi retirado de uma carta enviada por Eça de Queiroz ao escritor e amigo Ramalho Ortigão, a partir de Bristol, onde o autor de O Crime do Padre Amaro ocupava então o cargo de cônsul.

Nessa missiva, datada de 20 de fevereiro de 1882, Eça queixava-se de um “determinado editor”, para o qual “já teria mandado o texto de Os Maias” para impressão. Furioso com o dito editor, Eça garantia a Ramalho que haveria de publicar o romance, que estava praticamente acabado. E mais: haveria de “fazer não só um ‘romance’, mas um romance em que pusesse ‘tudo’” o que tinha “‘no saco’”. “Essa é a razão de ser do título”, afirmou Isabel Pires de Lima, salientando que “o Eça teve várias peripécias editoriais” com Os Maias. Esta foi apenas uma delas.

É precisamente com “uma espécie de entronização de Os Maias”, nas palavras da curadora, que arranca “Tudo o que tenho no saco”. Este primeiro núcleo, intitulado “1888 — A Vasta Máquina” (também numa referência a um comentário de Eça, que chamou ao seu romance uma vaste machine), é inteiramente dedicado a Os Maias e pretende mostrar como, apesar de ter sido um livro que pouco sucesso obteve na altura da sua publicação, acabou por se “tornar num clássico” e por ser traduzido em várias línguas e publicado um pouco por todo o mundo. Duas das peças principais desta primeira sala são um baú, onde o escritor guardava os seus manuscritos, e uma secretária, onde gostava de escrever de pé. Em cima desta foi colocado a carta enviada a Ortigão que dá nome à exposição, junto a tinteiro reluzente, que parece ter sido polido até à perfeição.

Quando o Observador visitou a exposição, ainda estavam a ser montados os últimos pormenores. As ilustrações das personagens de "Os Maias", de Abel Manta, ainda não tinham sido penduradas no teto

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“Na verdade não teve sucesso na época, e recebeu até críticas de pessoas muito próximas dele, como Fialho de Almeida, que era um escritor com várias relações estéticas com o Realismo, mas que reagiu negativamente à publicação de Os Maias”, comentou Isabel Pires de Lima, chamando a atenção para o facto de o grande romance queiroziano nunca ter sido reeditado enquanto o escritor era vivo. A edição original, feita em dois volumes pela antiga Livraria Chardron do Porto, foi a única que existiu durante muito tempo. “Os Maias só foram reeditados depois da morte dele, ao contrário, por exemplo, de O Primo Basílio, que foi publicado dez anos antes — quando Eça era muito pouco conhecido e tinha apenas publicado O Crime do Padre Amaro — e que teve duas edições no mesmo ano [1878]. Teve imenso sucesso, no Brasil também. Os Maias não foram reconhecidos como a grande obra-prima de Eça no momento da publicação.” Mas porquê?

“Por duas ordens de razões”, explicou a curadora. “Razões que decorrem da surpresa do trabalho estilístico de Eça, que é extremamente subversor em relação ao português normativo erudito da época. Quando Eça começa a escrever, o coloquialismo só se tinha manifestado em dois grandes escritores portugueses, no Garrett e no Camilo, de forma muito diversas. Mas no Eça não é só isso, havia um tratamento estilístico extremamente heterodoxo. Por exemplo, a tripla adjetivação, de que Eça usa e abusa, foi chocante para os seus contemporâneos; a forma como usa e abusa do advérbio de modo foi muito chocante; a forma como, por exemplo, usa a hipálage, uma figura retórica que usamos na linguagem quotidiana, mas que ele usa de uma forma extraordinária. Por exemplo, quando ele diz que a Adélia na Relíquia estava a fumar um ‘cigarro lânguido’, este ‘lânguido’ é um adjetivo que, supostamente, não se aplica a cigarro. Há uma desadequação entre o substantivo e adjetivo [e é nisso em que consiste a hipálage], afirmou a especialista. “O Eça faz isso permanentemente, e isso claro que aparecia como alguma coisa perturbante do ponto de vista da limpidez de um português clássico, digamos assim, que não devia abusar de uma figura retórica, da mesma forma que ele abusa da ironia e da caricatura.”

Outra “ordem de razões” tem a ver com o tema central de toda a obra queiroziana — Portugal. “Em última análise, ele está sempre a escrever, obsessivamente, sobre Portugal. Ele está sempre a pensar Portugal. E o Portugal que nos é mostrado nos Maias é um Portugal extremamente desagregado, sem rumo, desencantado, em que as elites saem muitíssimo maltratadas. No início do romance, Carlos da Maia é-nos apresentado como um príncipe da Renascença — tem tudo para ser um caso de sucesso, e termina não muito diferente do Euzebiozinho, tão ridicularizado pelo próprio Carlos em vários momentos do romance. No fundo, ele não se distingue muito do resto da ‘choldra ignóbil’, para usar a expressão do Eça. Quem é o Carlos da Maia no fim do romance? É um tipo que, na verdade, não faz nada, passeia-se no Bois de Boulogne e pouco mais do que isso.”

Eça de Queiroz chamou a "Os Maias" uma “vaste machine com proporções enfadonhamente monumentais de pintura a fresco". É essa expressão que dá título ao primeiro núcleo da exposição

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Foi precisamente contra essa imagem do Portugal “desencantado” que Fialho de Almeida reagiu. A resposta que Eça lhe deu — e na qual se mostrou indignado por Fialho achar que Lisboa era uma “virgem impoluta” de quem não se podia dizer mal, interrogando-o, em tom de brincadeira, se também ele andava envolvido com a mulher de uma qualquer figura pública importante — também surge na primeira sala da exposição. “Ele brinca com essa situação porque na verdade a crítica do Fialho é uma crítica escandalizada desse ponto de vista”, disse Isabel Pires de Lima.

De “1888 — A Vasta Máquina” segue-se para os outros núcleos, através de um longo corredor onde foi colocada uma tábua bio-bibliográfica que se estende para lá da morte de Eça de Queiroz, não só porque a sua obra continuou a ser republicada depois de 1900, mas também porque alguns dos seus romances só viram a luz do dia após essa data, como é o caso de A Capital, o volume inaugural da edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (que já vai em 17 volumes), e de A Tragédia da Rua das Flores, publicado apenas em 1980. O caminho vai ser feito ao som de uma banda-sonora especial, selecionada pelo musicólogo Rui Vieira Nery e inspirada na obra queiroziana, que tantas referências musicais têm.

O segundo núcleo da exposição chama-se “Aprendizagens” e explora os anos de vida universitária do escritor em Coimbra, os curtos períodos passados em Lisboa, de profunda aprendizagem literária e ideológica, a viagem ao Oriente, que serviu de inspiração a romances como A Relíquia O Mandarim, e a outras paragens menos exóticas, como Leiria, onde o escritor ocupou o cargo de Administrador do Concelho. O núcleo seguinte, “Guerra ao Romantismo”, fala de como Eça de Queiroz, educado no pensamento romântico, acaba por se deixar absorver pelo espírito realista depois da vivência coimbrã. No centro da sala será possível ver um exemplar de As Farpas, publicadas por Eça e Ramalho Ortigão em 1871, ano da realização das Conferências do Casino, e em 1872.

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Um realista diferente e revolucionário

Apesar de ser em torno de Os Maias que gravitam os diferentes núcleos da exposição, Isabel Pires de Lima acredita que as salas “Norma e Desejo” e “Olhares Cruzados”, que não são especificamente sobre o romance, são as mais importantes. A primeira destas — que terá em exposição ilustrações, filmes, nomeadamente uma adaptação de O Crime do Padre Amaro do tempo do cinema mudo, e fotogramas — diz respeito a um aspeto da obra de Eça de Queiroz que sempre foi fortemente criticado, pelos seus contemporâneos (e não só). “Eça era um realista muito singular, muito heterodoxo”, começou por explicar a especialista, chamando a atenção para o facto de o escritor sempre ter teorizado o Realismo “de uma perspetiva muito pessoal” desde as Conferências do Casino. “Ele que é um realista que, teoricamente, devia estar preocupado em construir um romance de tese. O romance realista é um romance que tenta demonstrar uma determinada tese e encaminhar o leitor no sentido de ler o mundo daquela forma. É normativo.” Só que não era bem isso que Eça de Queiroz tentava fazer: apesar de Os Maias ser um romance “que procura ser moralizador”, Eça “mostrou como toda a normatividade do mundo é perturbada por uma força que é seminal — o desejo”.

O desejo — que “no universo queiroziano é quase sempre demonstrado numa tensão muito violenta de encarceramento”, como explicou Isabel Pires de Lima — é quase sempre de índole erótica, mas também pode ser social. “A Juliana de O Primo Basílio torna-se numa chantagista por um desejo de ascensão social”, exemplificou a especialista. “Essa tensão provocada pelo desejo é uma força motora do romance queiroziano e perturba a normatividade do mundo. Isto tudo para dizer o quê?”, interrogou a curadora. “Ele fez um romance que, visando ter um objetivo moralizador, não é um romance moralista. Pelo contrário: é um romance que na época, e até 100 anos depois, foi tido como imoral.” E isso, no que toca ao Realismo, é profundamente revolucionário.

Mas há ainda outro lado inovador na obra de Eça, apresentado no núcleo seguinte, “Olhares Cruzados”, onde se mostra como na obra de Eça de Queiroz não é possível encontrar apenas um ponto de vista, mas vários olhares diferentes sobre uma mesma realidade. Além de revolucionário, este aspeto é também profundamente distintivo — é por isso que a obra de Eça de Queiroz é diferente, não só da dos outros escritores portugueses, seus contemporâneos, mas também dos outros realistas europeus. “O mundo que ele nos mostra não é nunca um mundo a preto e branco”, afirmou Isabel Pires de Lima, acrescentando que é por isso mesmo que “nós o estamos permanentemente a reinterpretar e é por isso que ele é atual — porque nós o lemos e relemos de forma sempre diferente”. Isto acontece devido a “três conceitos, que vão perturbar a prática realista de Eça e provocar perspetivações múltiplas e cruzadas sobre a realidade”.

No núcleo "Norma e Desejo", é possível ver pinturas de Paula Rego inspiradas em "O Crime do Padre Amaro". A sala inclui também um estudo de uma das obras

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“Estes três conceitos são fundamentalmente a ironia, o excesso e a narrativa histórica”, explicou a curadora. “Isto é: ele perturba uma prática realista usando do excesso, e o excesso pode ser dado pela caricatura, pelo maravilhoso que de repente irrompe, pelo fantástico, por certos traços de carácter que são excessivos e até estilisticamente. A ironia é outra prática que perturba imenso um realismo que quiséssemos ver como linear. Porquê? Volto ao romance de tese, que procura conduzir o leitor para uma certa leitura: se ironizo, estou a perturbar essa transparência de leitura, a captação do real. Torno a situação muito mais complexa, e a perceção por parte do leitor também.” É isso que acontece quando Ega tenta contar a Carlos que Maria Eduarda é sua irmã mas é constantemente interrompido pelo feitor da casa, Vilaça, que entra duas vezes na sala para procurar o chapéu de que se esqueceu. “Este gesto de interrupção é um gesto de perturbação também irónica, que nos ajuda a desobstruir a tragédia do incesto. Esta começa a ser percecionada pelo leitor como outra coisa além de uma fatalidade.”

E depois há a questão da narrativa histórica, que o Eça, enquanto realista, devia renegar. “O Realismo em geral, mas o queiroziano em particular, afirma-se sempre contra o Romantismo, e uma das tradições que o Romantismo transportava era o romance histórico à [Alexandre] Herculano, à Walter Scott. Uma das sentenças de Eça nas Conferências do Casino é a de que o Realismo tinha de ter a vida contemporânea como tema. O Realismo é do seu tempo.” Só que, como em muitas outras coisas que à literatura realista dizem respeito, Eça praticou “o pecado do romance histórico” mais do que uma vez. “Só que praticou-o subvertendo-o”, afirmou a curadora. Exemplo disso é a obra A Relíquia, que conta a história da viagem de Teodorico à Terra Santa em busca de uma relíquia sagrada. Segundo Isabel Pires de Lima, esta está mais próxima “daquilo a que hoje chamamos romance histórico pós-moderno”, como o Memorial do Convento de José Saramago, do que de um romance realista por se tratar de “uma desconstrução da versão canónica da História”. Contudo, ao fazê-lo Eça não se afastou “de um projeto realista e o leitor também não”.

Foi também mais ou menos isso o que Eça de Queiroz fez em A Ilustre Casa de Ramires, sobre Gonçalo Ramires, “um protagonista do século XIX”, que decide escrever uma novela histórica sobre os seus antepassados. “A forma como ele cria a novela histórica é uma crítica implícita à forma de fazer um romance histórico à maneira romântica. Há claramente uma auto-reflexão sobre o que é escrever uma novela histórica”, afirmou ainda a curadora.

Eça de Queiroz tinha uma atração pelo dandismo, evidente em algumas das personagens que criou nas últimas duas décadas de vida. Esta é explorada no núcleo "A Arte é Tudo"

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Ao abordar todas estas questões, o quinto núcleo, “Olhares Cruzados”, mostra também que “Eça manteve sempre muito viva uma interrogação estética ao longo da vida”. Em momento algum o escritor deixou de se interrogar sobre o Realismo e sobre a maneira de fazer o Realismo, experimentando várias formas de o fazer. É por essa razão que Isabel Pires de Lima acredita que, no caso de Eça de Queiroz, é “mais legítimo falarmos em Realismos porque, na verdade, foi isso que ele foi tentando. E foi tentando com uma obsessão estética porque ele considera-se, desde muito cedo e antes de mais, um artista”.

É sobre essa obsessão estética em busca da perfeição que trata o penúltimo núcleo da exposição, “A Arte é Tudo”. O título é mais uma vez uma referência a uma frase de Eça que, por altura da produção de Os Maias, afirmou: “A arte é tudo – tudo o resto é nada”. Essa preocupação era especialmente visível no cuidado que o escritor tinha na revisão dos seus livros, à qual dedicava uma pequena eternidade. De tal forma que, quando ele e Ramalho Ortigão se preparavam para reeditar O Mistério da Estrada de Sintra, uma das primeiras obras que escreveram em conjunto, Ramalho, desesperado pela demora, acabou por avançar com a publicação sem as emendas de Eça. O autor de As Cidades e As Serras ficou furioso. “Ele revia e voltava a rever, e revia mais uma vez”, disse Isabel Pires de Lima. “Ele devia ser odiado pelos tipógrafos, porque na altura não havia copy & paste”, brincou a curadora.

A mania da perfeição era também visível no cuidado que Eça de Queiroz tinha na forma de vestir e também na sua atração pelo dandismo, evidente em algumas das personagens que criou nas últimas duas décadas de vida, sobretudo a partir de “Os Maias”. “O dandismo é uma atitude estética que revela essa preocupação pela busca da perfeição na falsa naturalidade. É através de uma pose artificial que se pretende que se finja o natural”, definiu a curadora, dando como exemplo as personagens Carlos da Maia, Jacinto, de A Cidade e As Serras, e Carlos Fradique Mendes, de A Correspondência de Fradique Mendes, que “são, no fundo, dandys ou proto-dandys, figuras que têm uma componente de busca obsessiva da perfeição, com manifestações diferentes nos vários textos”. A exposição tem várias fotografias onde se poderá ver Eça “em atitude dandy” e alguns objetos que usava com regularidade, com o famoso monóculo, umas lunetas e também dois monogramas, com as iniciais “EQ”. Em “A Arte é Tudo” haverá também um dispositivo, ao centro da sala, criado a pensar sobretudo nos mais novos, que possibilitará aos visitantes tirarem fotografias com um “adereço dandy”.

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O Eça de Lisboa, do mundo e de sempre

A exposição termina com um núcleo dedicado aos lugares de Eça de Queiroz, biográficos e ficcionais, ilustrados através de várias fotografias dispostas ao longo das três paredes que circundam o espaço. Haverá uma referência a Havana, onde o autor ocupou o seu primeiro posto consular, e também a Paris, onde ocupou o último e morreu, aos 54 anos. Os Estados Unidos da América, a Palestina, países que visitou, e Inglaterra, onde viveu durante muito tempo, também estarão devidamente representados. Mas haverá dois espaços que serão privilegiados pelo lugar que ocupam na vida e também na obra do escritor português. “Um deles é Lisboa”, referiu Isabel Pires de Lima. “Cidade queiroziana por excelência”, a capital portuguesa é talvez o lugar onde Eça passou menos tempo mas a onde voltava sempre que estava em Portugal. O outro é Santa Cruz do Douro, em Baião, “lugar mítico” onde hoje fica sediada a Fundação Eça de Queiroz, na quinta que pertenceu à família da mulher e que esta depois herdou.

Foi da Tormes de Eça de Queiroz que vieram muitas das peças expostas na Gulbenkian, em cada núcleo, e em especial neste último, mas também ao longo do corredor, em pequenas vitrinas. Uma delas, uma masseira bretã, foi-lhe oferecida por Ramalho Ortigão por altura do seu casamento com D. Emília de Castro Pamplona (Resende), em 1886. A última sala inclui também uma mesa larga, onde o escritor terá comido o famoso arroz de favas, um cadeirão antigo, conhecido por cadeira de Jacinto (personagem de A Cidade e As Serras), que Eça herdou juntamente com a casa e que quis manter, e algum mobiliário que surge em algumas fotografias de Eça sentado no seu escritório, como é o caso de um arquivador e de uma estante giratória, também dispostos neste núcleo final, intitulado simplesmente “Lugares”.

À saída da última sala, onde o corredor termina, é possível encontrar uma pequena evocação aos vários escritores contemporâneos que se inspiraram em Eça de Queiroz, na sua vida ou na sua obra, para criarem a sua ficção. Isabel Pires de Lima acredita que, mais do que uma homenagem a autores como José Régio, Mário de Carvalho, Mário Claúdio ou José Eduardo Agualusa, esta trata-se de uma homenagem ao próprio Eça, cuja obra “é seminal”. “Ele continua a produzir leituras”, afirmou. Isso acontece porque há uma faceta de constante atualidade em tudo o que produziu — 118 anos após a sua morte, Eça de Queiroz ainda tem alguma coisa para nos dizer.

A cadeira de Jacinto (personagem de "A Cidade e as Serras"), muito antiga, trazida de Tormes para a exposição

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Não foi, contudo, apenas na literatura que Eça de Queiroz inspirou outros artistas — são várias as adaptações cinematográficas das suas que foram feitas ao longo dos séculos. Algumas delas serão exibidas durante o ciclo de cinema organizado paralelamente à exposição, que estará patente na Gulbenkian a partir desta quinta-feira até 18 de fevereiro de 2019 (de entrada livre). No dia 3 de dezembro, pelas 18h30, será exibido no Auditório 3 da fundação “Amor & Companhia”, de Helvécio Ratton. A 28 de janeiro, no mesmo sítio e à mesma hora, será a vez de “Singularidades de Uma Rapariga Loura”, de Manoel de Oliveira, e a 16 de fevereiro, pelas 15h, de “Os Maias”, de João Botelho, também no Auditório 3.

As conversas e mesas redondas, uma parte importante do programa paralelo, que pode ser consultado aqui, vão arrancar no dia 10 de dezembro com “Os Maias na Geração de 70: O Jantar do Hotel Central”, que vai juntar Guilherme d’Oliveira Martins e Carlos Reis, responsável pela edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda das obras do escritor. A última, “Ilustradores das Obras Queirozianas no fundo Documental da B.A.”, está marcada para 5 de fevereiro. Além dos “jantares queirozianos”, que acontecerão nos dias 5 de dezembro, 15 e 22 de janeiro e 16 de fevereiro, na Sala do Foyer (a entrada é 25 euros, o preço de um livro de receitas queirozianas), haverá ainda uma leitura encenada na escadaria da zona de congressos e um espetáculo musical no mesmo local, já em 2019.

Há um “constante desafio à interpretação, porque no fundo as obras de Eça não são obras que nos dão uma chave para abrir a porta”, afirmou Isabel Pires de Lima no final da visita do Observador. “Temos de ser nós a experimentar novas chaves. E cada época vai experimentar obras diferentes. quando uma obra desafia o tempo, é porque ela é atual. Há épocas que valorizam mais este escritor e épocas que valorizam mais aquele, mas a minha convicção é a de que um escritor é tanto ou mais atual quando tem capacidade para gerar leitores, porque é desafiante do ponto de vista da interpretação.” Portugal teve outros realistas para além de Eça de Queiroz, mas que hoje são lidos “sobretudo por pessoas que trabalham na área” e que se interessam por ficção da segunda metade do século XIX. “Alguns tiveram sucesso na época, mas na verdade não tinham uma arte da palavra que fosse original, que só os grandes artistas têm”, afirmou ainda Isabel Pires de Lima. São esses que “ficam”. “Os outros passam.”

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