Maria José de Lancastre, viúva de Antonio Tabucchi, não gosta muito de avaliar a importância que o marido tem na literatura. “Porque estou demasiado ligada a ele para fazer uma análise com distância.” Mas não finge que não sabe. “Sei perfeitamente que ele tem um lugar de destaque na literatura mundial, os muitos estudos que têm sido feitos sobre a obra dele assim o demonstram”, disse esta semana ao Observador.

Nascida em Lisboa, foi viver para Itália em 1967 e fez carreira como professora de literatura portuguesa na Universidade de Pisa. Por estes dias é curadora do programa “Galáxia Tabucchi”, que homenageia o escritor que morreu em Lisboa em março de 2012, aos 68 anos. O programa inclui:

  • um colóquio de dois dias com a presença de Eduardo Lourenço, Guilherme d’Oliveira Martins e José Sasportes, entre outros (segunda e terça, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa);
  • a exibição do documentário biográfico “Se de Tudo Fica um Pouco”, de Diego Perucci (este domingo, no Cinema São Jorge)
  • a exibição do filme “Requiem“, de lain Tanner, baseado na obra homónima de Tabucchi (segunda, na Sala Polivalente da Coleção Moderna da Gulbenkian);
  • e ainda uma exposição iconográfica e documental (que abre neste domingo, na Gulbenkian, e se prolonga até 7 de maio).

Maria José de Lancastre guiou o Observador pela exposição, na galeria do piso inferior do edifício principal, e explicou que os objetos e documentos ali apresentados demonstram a ligação de Tabucchi a Portugal e à lusofonia — mesmo se ficou célebre por recusar o que considerava uma utilização política da ideia de lusofonia.

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Maria José de Lancastre, viúva de Antonio Tabucchi (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Alguns documentos são inéditos, o que provavelmente aguçará o interesse do público. Um deles é um poema de 1967 sobre Lisboa, batido à máquina. “Ele escreveu alguma poesia quando era novo, mais tarde terá tentado fazê-lo poucas vezes. Achava que os deuses não lhe tinham concedido esse dom, embora, a meu ver, a prosa dele tenha muitas ligações com a poesia”, avalia Maria José de Lancastre.

A exposição, intitulada “Tabucchi e Portugal”, é de entrada livre e consiste em nove vitrines com objetos, além de reproduções de entrevistas e recensões, que surgem em tamanho aumentado numa das paredes da galeria (perfeitamente legíveis). São também projetados vídeos em “loop” com entrevistas dadas a Maria João Seixas e a António Mega Ferreira pelo escritor e professor universitário nascido na região de Pisa.

[trailer do documentário “Se de Tudo Fica um Pouco. No Rasto de Antonio Tabucchi” (2018), de Diego Perucci]

“Uma das características dele era a curiosidade. Eu própria descobri com ele muitas coisas em lugares que já me eram familiares”, explicou a mulher de Tabucchi perante fotografias a preto e branco que ele captou numa viagem a Braga, Barcelos e à Póvoa de Varzim, nos anos 60, e onde surgem crianças, lavadeiras, cenas do quotidiano e paisagens. “Ia ao fundo das questões, tinha uma facilidade enorme em comunicar com as pessoas, o que lhe vinha de uma enorme curiosidade humana. Não era apenas sociável, como muitos italianos e mais ainda os toscanos, tinha mesmo interesse por tudo o que o rodeava. Por outro lado, não era o tipo de escritor que viajasse para escrever livros. Dizia, até, que nunca tinha feito uma viagem à espera de escrever sobre isso. Ele gozava mesmo a viagem.”

Livros de Tabucchi integram a mostra, incluindo os dois romances mais célebres, “Afirma Pereira” e “A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro”, além do póstumo “Para Isabel”. Um passaporte; um diploma de curso; postais; fotos da viagem ao Brasil durante a qual conheceu, ao lado da mulher, o poeta Carlos Drummond de Andrade; registos de passagens por Goa, Macau, e pelos Açores; um caderno com notas de uma entrevista que fez à neta de Camilo Pessanha; fotos com João Bénard da Costa, Vasco Graça Moura, Fernando Lopes, Gérard Castello-Lopes, Mísia, Graça Morais, tantos outros.

Uma das vitrines documenta a ligação de Tabucchi aos surrealistas portugueses – que, de resto, se iniciou logo na primeira viagem que fez a Portugal ao volante de um Fiat 500, em 1965. Conheceu então Herberto Helder, depois Alexandre O’Neill e Mário Cesariny. Há uma foto de antologia de Tabucchi e Cesariny, de tronco nu, na praia da Fonte da Telha, e excertos de correspondência que trocavam.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Mais tarde, Tabucchi escreveu um ensaio, “La Parola Interdetta: Poeti Surrealisti Portoghesi”, onde incluiu traduções daqueles escritores e ainda de Fernando Pessoa. A ligação ao autor de “Mensagem” marcou a vida de Tabucchi e a forma como se aproximou de Portugal, fortíssima ligação a ponto de se ter nacionalizado português em 2004. “O italiano que sonhava em português” ou “o mais italiano dos escritores portugueses” foram algumas da máximas que lhe atribuíram.

“Foi há cerca de um ano que eu e uma amiga, minha antiga aluna, pensámos numa iniciativa de homenagem, como tinha havido depois da morte do Antonio, no Japão, em Paris e em Bruxelas. Em Portugal, até agora, não tínhamos feito qualquer iniciativa pública”, disse Maria José de Lancastre. “Tem havido muitos artigos a pensar na obra dele, aqui em Portugal, mas não uma iniciativa como esta. Foi necessário o período de luto.”

Todo o material estava em casa da família de Tabucchi, em Lisboa, e foi selecionado por Maria José de Lancastre, segundo a qual alguma produção literária nunca publicada poderá um dia ser publicada. “Com muita calma poderemos pensar nisso”, afirmou, adiantando que em dezembro sairá em itália um romance incompleto de Tabucchi, acompanhado de um ensaio académico interpretativo.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)