O iluminismo teve vários tons ao longo dos anos e vários lugares por onde passou, mas dificilmente podemos considerar que em Inglaterra teve um dos mais brilhantes. Na galeria de grandes filósofos, sátiros, políticos e historiadores, só Edward Gibbon (1737-1794), entre os vários súbditos da coroa britânica, tem um lugar central.
Não porque seja um extraordinário escritor: Gibbon é de facto uma das grandes penas britânicas, mas à maneira clássica, naquela precisão contida do vocabulário e na admirável clareza das ideias que encontramos no Dr. Johnson ou no Lord Clarendon. As efabulações iluministas, a ironia de Voltaire, as metáforas de Diderot, as palavras mais desordenadas de Rousseau, como que a baterem-se contra as amarras das estruturas clássicas, não existem em Gibbon, o verdadeiro expositor da beleza destas estruturas e da elegância que se consegue a partir de um texto com os ritmos organizados, a gramática estendida em toda a sua correção e o uso contido de todo o vocabulário da língua.
Gibbon é um grande escritor, mas é uma figura essencial do iluminismo não na prosa, em que ele é mais forte, mas no tema, em que o iluminismo é mais fraco. Se há uma ideia dominante no iluminismo tal como ele nos chegou é aquela que vem da consciência de que o pensamento é capaz de um progresso que é constantemente travado por convicções obscuras e gerais que impedem o indivíduo de pensar por si. A ideia está tanto nos modos de pensar alargado, de Kant, como nos contos de Voltaire, em que o selvagem chega sempre, a partir da razão natural, a convicções que contrariam o ensinamento de mestres bafientos e dos poderes da monarquia e do clero. A ideia de que a ignorância é um estado causado por pressões vindas de fora, de que a forma de o Homem chegar à verdade implica uma libertação fundou uma espécie de historiografia: trata-se de uma historiografia assente na origem da opressão, da descoberta das grandes causas da prevalência do obscurantismo, na convicção de que, conhecidos os mecanismos opressores, a força destes esvair-se-á.
É fácil perceber que este entendimento da História é profundamente progressista. O mal, a ignorância, o obscurantismo, tudo isso vem de um erro que poderá ser ultrapassado. A partir do momento em que o Homem passar a agir de acordo com a razão, estará imune à influência externa que só sobrevive enquanto persistir a ignorância e a superstição.
Ora, neste quadro, a ideia de decadência, a ideia central da historiografia de Gibbon, é profundamente estranha. Gibbon não identifica os agentes que nos deixam num estado aquém daquele a que podíamos chegar; Gibbon estuda aqueles que nos fazem decair, e a ideia de decadência é um problema para que o iluminismo tem dificuldade em olhar. Como é que, depois do grande século dos Antoninos, Roma mergulha numa tirania que tem poucos paralelos na História da humanidade. Como é que um povo esclarecido, depois de ser governado por Marco Aurélio, aceita o governo opressor do seu filho? Na ideia iluminista, o mal é compreensível na perspetiva de quem nunca viu o bem, mas o retorno ao mal é um problema difícil de resolver, e é a ele que Gibbon se dedica.
Gibbon é o grande historiador da Idade Moderna precisamente porque se dedica ao grande problema da grande filosofia do seu tempo, e isso impede-o de ser simplista. Esta contradição fundamental obriga-o a ver como o progresso não é linear, como há forças que escapam à acção dos governos e ainda assim se confundem com ela, como a prosperidade depende de mais do que a legitimidade ou falta delas dos governos e, em suma, como toda a vida está dependente de mais do que a organização racional de certas leis e como, na mesma pessoa e no mesmo tempo, a razão e a falta dela podem operar tão estreitamente.
Claro que a importância de Gibbon como historiador não vem só deste ponto. O seu conhecimento da cultura Romana é tão assombroso que podemos dizer que Gibbon praticamente definiu as fontes e moldou para sempre as apreciações que se fizeram a partir delas. Ainda hoje a avaliação do governo de Alexandre Severo se faz contra ou a favor de Gibbon, o que demonstra bem a força das suas ideias. Nunca ninguém organizou tanta informação histórica, recorreu a tantas e tão variadas fontes, como Gibbon.
Nesse sentido, é curioso perceber, a partir da sua autobiografia, como Gibbon se considerava, ele, o grande erudito do seu tempo e dos outros, tão insuficientemente preparado para o trabalho intelectual. Edward Gibbon foi, na sua infância, um rapaz com uma saúde frágil o que o obrigou a passar vários períodos em casa, onde a sua educação era deixada ao compreensível desleixo de tias pouco rígidas. Só em Oxford é que a curiosidade de Gibbon começa a tornar-se mais forte, mas mesmo assim o grande objeto da sua atenção é religioso.
Ainda adolescente, Gibbon converte-se ao catolicismo, conversão essa que, embora pouco duradoura, será decisiva para a sua vida. Isto porque, perante a notícia da conversão do jovem Edward, o pai decide afastá-lo da influência perniciosa de Oxford e manda-o para uma pequena terra na Suíça, onde a sua educação anti-católica será mais cuidada. Gibbon bebeu bem os ensinamentos, como aliás é óbvio pela pouca simpatia que, ao longo de Declínio e Queda do Império Romano, vai demonstrando pela Igreja; além disso, porém, é na Suíça que vêm os seus primeiros contactos com o Iluminismo e, mais importante, o fascínio pelas línguas que o tornarão o latinista que possibilitou o grande trabalho de pesquisa histórica.
Gibbon nunca deixou verdadeiramente a Suíça. Embora tenha participado na guerra dos Sete Anos e tenha passado com pouco êxito pela política, embora tenha, obviamente, viajado até Roma, foi na Suíça que escreveu a maior parte do seu trabalho monumental.
O título do livro é enganador. A divisão do Império não conta para Gibbon como o seu fim, pelo que, no fundo, a sua é uma história do mundo Antigo de Domiciano até ao século XV. A quantidade de informação sobre Constantinopla que Gibbon reuniu, o à vontade com que vagueava pelas intrincadas lutas dos Paleólogos, a precisão com que conheceu a vida e as políticas de Constantinos e Justinianos, a facilidade com que explica as subtilezas das querelas teológicas e eclesiásticas, com que explica o crescimento da influência dos patriarcas de Constantinopla, de João Crisóstomo a Fócio, nada disso encontrou sucessor ainda sucessor à altura: nem Norwich, nem Herrin, nem ninguém conseguiu ainda igualar sequer o conhecimento que Gibbon demonstra sobre o Império Romano do Oriente.
De Augusto a Marco Aurélio: como funcionava o governo do Império Romano
Acontece, porém, que a decisão de Gibbon de escrever sobre os dois lados do Império também tornou a sua uma História fundamental de outro ponto de vista. Embora já houvesse uma quase infinita quantidade de Histórias Eclesiásticas, e várias delas importantes, como a de Eusébio de Cesareia, Gibbon é o primeiro historiador a tratar o surgimento da Igreja de um ponto de vista puramente secular. O contraste entre a História de Gibbon e a gloriosa ascensão das grandes doutrinas e dos grandes santos, tal como ela nos vem contada noutros lugares, é quase chocante. Gibbon olha para a História da Igreja como uma luta de poder — embora sem aquela condescendência moderna que olha para todos os agentes como hipócritas ou devassos — e o modo como uma doutrina marginal se consegue infiltrar no mundo Antigo, narrada com o brilhantismo e com a cópia de informação que Gibbon domina, é uma das grandes maravilhas da historiografia.
Ler Gibbon não é só depararmo-nos com um texto com a beleza dos grandes clássicos ou com uma erudição impressionante; aquela argúcia dos grandes textos históricos, de Tácito a Tito Lívio, faz da História do Declínio e Queda do Império Romano a grande obra da Historiografia moderna.